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OPINIÃO
A fragilidade da
União Europeia face à Turquia
Consumida em
questiúnculas internas com a nomeação de novos comissários, intermináveis
negociações com os britânicos para a sua saída, e sem meios eficazes de
política externa e segurança, a União Europeia mostra-se perigosamente frágil
num mundo hostil.
José Pedro
Teixeira Fernandes
16 de Outubro de
2019, 6:52
1. Os ideais
europeus de um mundo pacífico, democrático e respeitador dos direitos humanos e
das minorias, na lógica dos valores da União Europeia, esbarram com a realidade
nas suas fronteiras Leste e Sul. A Rússia já provocou vários choques de
realidade mostrando, na Geórgia, na Crimeia e na Ucrânia, que não era esse o
mundo que pretendia construir no século XXI. Nos últimos dias a Turquia, ao
invadir a região curda do Nordeste da Síria, provocou um novo e doloroso choque
de realidade à União Europeia. Ao contrário da Rússia, historicamente avessa
aos valores europeus e ocidentais, problemática e por vezes ameaçadora — seja
no passado soviético, seja no seu ressurgimento com Vladimir Putin —, a Turquia
parecia destinada à europeização e a pôr em prática os valores europeus num
contexto multicultural e muçulmano. Assim, em 1999, foi atribuído à Turquia o
estatuto de candidato oficial à adesão à União Europeia e em 2005 deu-se a
abertura oficial de negociações entre ambas partes. O objectivo era, no espaço
de uma década, tornar a Turquia um Estado-membro da União Europeia. Mas os
europeus estavam impregnados de um optimismo exagerado, desfasado da realidade
geopolítica do Mediterrâneo Oriental e do Médio Oriente. Sobrestimaram, também,
a sua própria capacidade de integração de um Estado com essa dimensão e
características.
2. Um dos maiores
equívocos face à Turquia foi os europeus convencerem-se de que Recep Tayyip
Erdoğan e o seu Partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP), no poder desde
finais de 2002, seriam o interlocutor ideal para a adesão. Hoje é nítido que
foi uma avaliação errónea, onde o wishful thinking dominante levou a subestimar
as tendências negativas latentes na sua personalidade e governo. O modelo de
Recep Tayyip Erdogan para a Turquia sempre foi o da grandiosidade do Império
Otomano — e de um Estado iliberal e impregnado de valores islâmicos sunitas —,
não o modelo secular de democracia, de direitos humanos e de protecção das
minorias da União Europeia. Na realidade, Erdoğan nunca escondeu isso, bastava
olhar bem para o que este dizia e fazia internamente.
Há um preocupante
desalinhamento dos interesses nacionais de segurança da Turquia com a União
Europeia e a NATO. A invasão do Nordeste da Síria, feita sob a crítica e
oposição dos europeus e distanciamento ambíguo dos EUA, mostra isso com crueza
Todavia, os
europeus, queriam acreditar que estavam perante um reformador, genuinamente
empenhado em aproximar a Turquia dos valores europeus. O resultado paradoxal
foi alimentarem o sentimento de rejeição europeia na Turquia. Na prática,
ajudaram, ainda que involuntariamente, a criar uma Turquia que ignora a União
Europeia. Ao mesmo tempo, coloca delicadíssimos problemas humanitários e de
segurança nas suas fronteiras, os quais vão desde o fluxo de refugiados ao
possível ressurgimento do Daesh.
3. A tentativa de
golpe de Estado de 2016, bastante obscura nos seus contornos exactos, deu a
Recep Tayyip Erdoğan o pretexto ideal para se livrar dos seus opositores
políticos e controlar o aparelho estadual. Foram detidos em massa membros da
oposição, jornalistas e juízes. Milhares de funcionários públicos foram
varridos dos seus cargos. A incapacidade de pressionar a Turquia para repor os
mecanismos normais de um Estado de direito e o respeito dos direitos humanos
mostrou a fragilidade da União Europeia.
Os Estados
candidatos têm de cumprir determinados critérios previstos nos Tratados. Esses
critérios incluem, conforme já referido, a estabilidade das instituições
democráticas, o Estado de direito, os direitos humanos e o respeito pelas
minorias. A realidade é que o Governo do AKP e Recep Tayyip Erdogan fizeram
tábua rasa deles e nada aconteceu. Com esse precedente, a fragilidade da União
Europeia influenciar o mundo envolvente tornou-se (demasiado) óbvia, quer para
a Turquia, quer para qualquer observador atento dos acontecimentos
internacionais. Se, apesar da sua dimensão e poder económico, a União Europeia
não tem meios efectivos para pressionar um candidato à adesão, então certamente
não conta na política internacional. Só os europeus não viram isso.
4. Pelo histórico
descrito, não surpreende que ignorar a União Europeia seja a atitude de
política externa normal na Turquia de hoje. Afinal, o desrespeito pelos valores
europeus no passado foi inconsequente. Mas Recep Tayyip Erdogan faz mais do que
ignorar as declarações europeias. Ameaça a própria União: “ se tentarem
descrever a nossa operação como uma invasão faremos o que é mais fácil para
nós: abriremos as portas e enviaremos 3,6 milhões de refugiados” para a Europa
(ver Turkish op to avoid a terror state in Syria in Hürriyet Daily News,
10/10/2019).
O único
instrumento de política externa que a União Europeia parece ter é usar dinheiro
para tentar resolver problemas, como fez com os acordos para manter os
refugiados da guerra da Síria no território da Turquia, pagando-lhe para o
efeito. Todavia, essa diplomacia tem os seus limites como mostra a incursão
militar turca no Nordeste da Síria
Assim, o único
instrumento de política externa que a União Europeia parece ter é usar dinheiro
para tentar resolver problemas, como fez com os acordos para manter os
refugiados da guerra da Síria no território da Turquia, pagando-lhe para o
efeito. Todavia, essa diplomacia tem os seus limites como mostra a incursão
militar turca no Nordeste da Síria. Acossado por problemas económicos internos
e perda de apoio político, Recep Tayyip Erdoğan apostou em mobilizar o
nacionalismo curdo contra os curdos. Não vai ser a União Europeia que o vai
fazer recuar, pois não tem meios político-militares, nem sequer económicos,
para o pressionar eficazmente. E a candidatura da Turquia à União Europeia nada
vale, pois o objectivo último de Erdoğan provavelmente nunca foi a adesão, mas
tirar vantagens das negociações.
5. Há um
preocupante desalinhamento dos interesses nacionais de segurança da Turquia com
a União Europeia e a NATO. A invasão do Nordeste da Síria, feita sob a crítica
e oposição dos europeus e distanciamento ambíguo dos EUA, mostra isso com
crueza. A Turquia de hoje não é a fundada por Mustafa Kemal Atatürk em 1923,
nem a que se tornou membro da NATO em 1952, nem a que iniciou negociações de
adesão à União Europeia em 2005. A sua actual política externa pode ser
sintetizada numa estratégia tríplice: jogar com os EUA/NATO, a Rússia e a União
Europeia à medida dos seus interesses nacionais, procurando afirmar-se como
grande potência regional. Assim, actua algumas vezes como Estado amigo e
aliado, outras vezes como Estado rival e quase inimigo.
Nos últimos
tempos a Turquia comprou, ou pretendeu comprar, caças furtivos F-35 de última geração
aos EUA. Paralelamente, comprou sofisticados mísseis anti-aéreos S-400 à
Rússia. Como já notado, ignorou ainda ostensivamente os valores europeus,
apesar de se manter como candidata à adesão. Se a União Europeia já tinha um
problema sério na sua fronteira Leste com a Rússia, agora tem outro não menos
delicado na sua fronteira Sudeste com a Turquia. Basta pensar nos membros do
Daesh que estão de novo à solta na Síria. Consumida em questiúnculas internas
com a nomeação de novos comissários, intermináveis negociações com os
britânicos para a sua saída, e sem meios eficazes de política externa e
segurança, a União Europeia mostra-se perigosamente frágil num mundo hostil.
Investigador do IPRI-NOVA
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