quarta-feira, 8 de julho de 2020

Mário Centeno para o Museu do Aljube, e já / Historiadores e museólogos contestam escolha de Rita Rato para direcção do Museu do Aljube / O governador Centeno versus o ex-ministro Centeno

OPINIÃO
Mário Centeno para o Museu do Aljube, e já

Em Portugal tanto se arranja um lugar no aparelho do Estado para quem tem currículo e conflitos de interesse, como se arranja um lugar no aparelho do Estado para quem não tem conflitos de interesse nem currículo.

JOÃO MIGUEL TAVARES
9 de Julho de 2020, 0:00

Em Portugal, há sempre solução para tudo. Tanto se arranja um lugar no aparelho do Estado para quem tem currículo e conflitos de interesse, como se arranja um lugar no aparelho do Estado para quem não tem conflitos de interesse nem currículo. A única coisa que se tem de ter é isto: uma relação de amizade ou de dependência estratégica com quem está no poder. Garantido isto, há sempre tacho e há sempre justificações para o tacho, por mais estapafúrdias que elas sejam.

Tacho 1: governador do Banco de Portugal. António Costa tinha prometido que ia escutar todos os partidos antes de nomear o próximo governador do Banco de Portugal – e escutou. Mário Centeno esteve no Parlamento para prestar contas aos deputados – e prestou. Com esta originalidade: não interessou para nada aquilo que António Costa ouviu, porque a decisão estava tomada; nem interessou para nada aquilo que Mário Centeno disse, porque o cargo estava garantido. Tirando isso, a coreografia democrática foi linda.

Além dos solistas, a companhia de dança também é digna de nota. A maioria dos deputados estava contra a nomeação, mas também estava contra a lei que impede a nomeação. Recusava em simultâneo a lei ad hominem e o hominem. Ora, como menos com menos dá mais, a conclusão daquele sarau foi que Mário Centeno não devia ir para o Banco de Portugal, mas que podia ir à vontade.

Com este bónus: quando questionado sobre potenciais conflitos de interesse, por terem sido mais numerosas as decisões que tomou sobre o sistema bancário do que as histórias que Xerazade contou ao sultão Xariar, Centeno disse: “Se eu usasse o seu raciocínio não conseguia encontrar emprego em Portugal nas próximas décadas.” Qualquer português imaginou de imediato o pobre de pedir a vaguear pelas ruas de Lisboa de mão estendida, como se já não tivessem bastado cinco anos a estender a mão em Bruxelas. De facto, que outro cargo poderia merecer este mártir, que não o de governador do Banco de Portugal?

Só se fosse – tacho 2 – o de director do Museu do Aljube. Mário Centeno não tem currículo para isso, mas Rita Rato, ex-deputada do PCP, também não. Rita Rato pertence à geração do comunista com ignorância autoinfligida: de cada vez que um jornalista lhe pergunta sobre Estaline, a China ou a Coreia do Norte, não é seu desejo defender abertamente tais coisas, mas como teme que se quebre a ampola de cicuta ao criticá-las, a solução é alegar a mais profunda ignorância (vejam o que António Araújo escreveu sobre o tema no blogue Malomil). Rita não leu, não estudou, não conhece – é jovem.

Demasiado jovem para ler sobre o Gulag, claro está, mas não para dirigir o Museu do Aljube, cargo que Rita Rato acaba de conquistar, apesar de conhecer apenas um tipo específico de tortura – a fascista, porque a comunista, infelizmente, não estudou. O que até se compreende. Rita Rato tem currículo em História? Não tem. Tem currículo em Museologia? Também não. Tem currículo em quê, afinal? Tendo em conta que entrou para a Assembleia da República com 26 anos e ficou por lá uma década, tem currículo em política e em comunismo. E isso bastou e sobrou para ser a melhor entre várias dezenas de candidatos ao cargo.

O marxismo cultural é apenas uma ficção da direita? Só se a nomeação de André Ventura para director do museu do Estado Novo, em Santa Comba, causar a mesma indignação. Ontem foi mais uma quarta-feira no país do vale-tudo. Passo a passo, o regime vai cavando o buraco onde um dia se irá sepultar.

Jornalista



HISTÓRIA
Historiadores e museólogos contestam escolha de Rita Rato para direcção do Museu do Aljube

Ex-deputada do PCP não terá um currículo adequado ao cargo nem cumpre os requisitos do perfil pedido pela própria EGEAC, argumentam. Júri do processo de selecção não incluiu qualquer membro independente.

Isabel Salema
Isabel Salema 8 de Julho de 2020, 21:32

Está a criar polémica a selecção de Rita Rato, ex-deputada do Partido Comunista Português (PCP), para directora do Museu do Aljube – Resistência e Liberdade, um equipamento da Câmara Municipal de Lisboa criado em 2015 numa antiga prisão da polícia política PIDE.

A escolha foi anunciada na terça-feira pela Empresa de Gestão de Equipamentos e Animação Cultural (EGEAC), que gere os equipamentos culturais da Câmara de Lisboa, num comunicado que adianta que Rita Rato se destacou entre várias candidaturas “pelo projecto apresentado e pelo desempenho nas entrevistas realizadas com o júri”. Licenciada em Ciência Política e Relações Internacionais pela Universidade Nova de Lisboa, a militante do PCP substituirá o historiador Luís Farinha, que se reformou em Abril.

A desadequação do currículo de Rita Rato aos principais requisitos solicitados pela EGEAC no processo de recrutamento e o eventual peso da sua militância no PCP na decisão final são alguns dos argumentos invocados pelos especialistas ouvidos pelo PÚBLICO e que também têm sido discutidos nas redes sociais.

Para a historiadora Irene Pimentel, com várias obras publicadas sobre a PIDE, o que se sabe do currículo da ex-deputada não se adequa ao que era pedido para a direcção do Museu do Aljube: “Que eu saiba, não tem nenhuma experiência na área da museologia, não é historiadora, nem de história contemporânea nem de história cultural. Não é curadora, não é museóloga.”

Tal como já tinha escrito na sua página de Facebook, Irene Pimentel diz também ao PÚBLICO conhecer vários candidatos que estariam muito mais de acordo com o perfil divulgado pela EGEAC: “São excelentes historiadores de história contemporânea com experiência em museologia.”

No referido aviso de recrutamento, a EGEAC colocava em primeiro lugar três pontos mais específicos: “Formação superior adequada à função (preferencialmente na área de história política e cultural contemporânea); Experiência em funções similares (preferencialmente na área dos museus); Experiência em programação e produção de exposições”.

Irene Pimentel pergunta ainda, no Facebook, por que razão não há concurso público para museus camarários — “a escolha é por camaradagem?” Ao PÚBLICO, a historiadora assume entender que a filiação política de Rita Rato “é capaz de ter tido um papel importante”. “Há aspectos da geringonça que ainda se mantêm. E eu até era favor da geringonça, mas falta de transparência em concurso é que jamais. Esta pessoa não parece ter minimamente os pontos principais do perfil que eles próprios conotaram. Além disso, houve presos de vários partidos políticos [nas prisões da PIDE] e é preciso ter muito cuidado. Há o perigo de o [PCP] hegemonizar o património dessa memória. Sempre levantei muito essa questão.”


Antigo director estava no júri

Ao que o PÚBLICO apurou, a EGEAC (que não está obrigada a fazer concursos públicos) recebeu cerca de 60 candidaturas à direcção do Museu do Aljube. Seguiram-se duas fases de selecção que passaram por entrevistas aos concorrentes. O júri foi composto por Luís Farinha, o anterior director, e mais três chefias da EGEAC: Joana Gomes Cardoso (presidente), Manuel Bairrão Oleiro (assessor para a área do património e dos museus) e Joaquim René (director de recursos humanos).

Segundo Joana Gomes Cardoso, “o processo de recrutamento contou com a participação activa do anterior director do Museu do Aljube” porque se “pretende uma continuidade do projecto desenvolvido nos últimos cinco anos”, entendendo-se embora necessário reforçar a área da comunicação e captar novos públicos. Em resposta enviada ao PÚBLICO por email, a presidente da EGEAC esclareceu que “a candidata seleccionada defendeu uma visão integrada para o museu, incluindo uma proposta de programação relacionada com temáticas de liberdades contemporâneas, como as questões de género ou a inclusão social”, destacando-se nessa abordagem na segunda ronda de entrevistas. Quanta à falta de currículo académico da nova directora, Joana Gomes Cardoso desvaloriza-a: “O Museu do Aljube conta com uma equipa com sólida formação académica e científica que continuará a apoiar a nova direcção, assim como o Conselho Consultivo do Museu, do qual fará parte Luís Farinha.” Refutando qualquer sugestão de esta ter sido uma escolha política, afirma ainda que a EGEAC “é uma instituição plural onde convivem as mais diversas correntes políticas”.

Contactado pelo PÚBLICO, o presidente do Conselho Internacional de Museus (ICOM Europa), Luís Raposo, diz não conhecer os outros candidatos, nem, em pormenor, o currículo de Rita Rato. Não acha mal “que os directores de museu tenham alguma notoriedade pública, como a ex-deputada do PCP, e não sejam apenas tecnocratas cinzentos que ninguém sabe que são”, mas admite que “é uma escolha controversa”, ainda que não considere obrigatória uma formação específica em museologia. O mais importante, defende, é o conhecimento da colecção e a capacidade de a fazer falar.

Já em relação ao processo, Raposo diz que lhe “parece mal que os júris de selecção de directores de museus públicos, ou de empresas e fundações com dinheiros públicos, sejam constituídos apenas ou sequer maioritariamente por ‘gente da casa'”. “Devem existir e ser maioritários membros independentes”, acrescenta.

Também o historiador António Araújo, no seu blogue Malomil, considerou que Rita Rato não tem competência para dirigir o Museu do Aljube: “Nomeá-la é um insulto grave aos historiadores e investigadores portugueses, a gente competente e independente, aos cidadãos desta Lisboa, aos resistentes e às vítimas pela liberdade, a todas elas, sem excepção, aos que lutaram e sofreram no Tarrafal, em Auschwitz, no gulag, na Coreia do Norte, em Hong-Kong, em muitos lugares.” O também conselheiro do Presidente da República aludiu ainda a uma célebre entrevista que Rita Rato deu em 2009 ao Correio da Manhã, e em que a jovem deputada recém-chegada à Assembleia da República mostrava desconhecer a existência dos campos de trabalho forçados da antiga URSS, numa resposta alinhada com o discurso comunista mais ortodoxo.

“Porquê Rita Rato?” — continuava António Araújo, que publicou recentemente um livro sobre os últimos dias da PIDE. “Tem formação académica ou outra em História? Nop. Tem obra publicada ou investigação feita nesse domínio? Nada, absolutamente nada. Tem alguma experiência curricular para o cargo? Niet, nenhuma, zero.”

Numa carta que será publicada na edição impressa de quinta-feira do PÚBLICO, o historiador de arte Miguel Soromenho vai ainda mais longe, escrevendo que “a escolha da ex-deputada Rita Rato para a direcção do Museu do Aljube é uma vergonha”. O também museólogo diz que a EGEAC ignorou o perfil que exigiu aos candidatos, acrescentando que o júri “embarcou diligentemente neste simulacro concursal”. “Dos nove requisitos exigidos, à deputada Rita Rato faltam pelo menos três, e logo aqueles, cruciais, relativos à proficiência técnica exigida à coordenação superior de um equipamento desta natureza.”


EDITORIAL
O governador Centeno versus o ex-ministro Centeno

Centeno vai ter de caminhar num pântano onde – como aconteceu com Carlos Costa – faça tudo ou o seu contrário será sujeito a dúvidas, a críticas e a suspeitas. Só uma absoluta distância do passado político e da história recente da banca o salvaria da suspeição.

MANUEL CARVALHO
9 de Julho de 2020, 0:19

A audição de Mário Centeno na Assembleia da República foi uma boa mostra das dificuldades que terá nos momentos difíceis que se antevêem no seu cargo de governador do Banco de Portugal (BdP). Todas as reservas e críticas que a oposição em bloco fez à sua nomeação foram legítimas e pertinentes. E todas as respostas do ex-ministro das Finanças foram evasivas ou insuficientes na argumentação. Mário Centeno acredita que a sua competência e a sua experiência no governo ou na frente europeia são razões suficientes para ser governador. Sê-lo-iam, se o cargo fosse isento de atritos políticos ou blindado quanto ao clima de suspeição que o condiciona. Sê-lo-iam também se quem está nesses lugares assumisse de forma clara e transparente as suas responsabilidades. Portugal, para o bem e para o mal, não é assim.

Como os deputados da oposição provaram, a nomeação de Centeno carrega o pesado fardo do seu passado político. Quando, e se, Mário Centeno tiver de decidir sobre a CGD, na qual interveio como agente do accionista Estado, quando, e se, for obrigado a intervir no Novo Banco, em cuja venda participou mesmo que só ao nível do aval político, é óbvio que o fará sob a condição de ex-ministro. Quando, e se, o fizer, será lógico que se invoque o código de conduta do BdP na parte em que se avisam os seus dirigentes sobre a sensibilidade de “interesses pessoais” que resultem de “anteriores experiências profissionais”. No caso de ter de decidir sobre a Caixa, o Novo Banco ou o Montepio, é lícito considerar que Centeno se empenhará em proteger o seu passado político enquanto ministro.

Na audição desta terça-feira, Centeno percebeu todos esses riscos e salvou-se com a bóia que tinha à mão: dizendo que nada teve que ver com o que se passou nos bancos enquanto foi ministro. É pouco. Mas ninguém acredita que ficasse congelado no momento em que, por exemplo, o BdP vendeu o Novo Banco à Lone Star.  

Mário Centeno dá-nos garantias de competência e honorabilidade para decidir em nome do interesse público. Mas a questão que a sua nomeação coloca vai muito para lá da sua honorabilidade, competência ou sentido de serviço público. Centeno vai ter de caminhar num pântano onde – como aconteceu com Carlos Costa – faça tudo ou o seu contrário será sujeito a dúvidas, a críticas e a suspeitas. Só uma absoluta distância do passado político e da história recente da banca o salvaria da suspeição. Centeno não terá essa bóia. É mau para ele. E mau para a credibilidade da supervisão do sistema financeiro.

Sem comentários: