OPINIÃO
Mário Centeno para o Museu do Aljube, e já
Em Portugal tanto se arranja um lugar no aparelho do
Estado para quem tem currículo e conflitos de interesse, como se arranja um
lugar no aparelho do Estado para quem não tem conflitos de interesse nem
currículo.
JOÃO MIGUEL
TAVARES
9 de Julho de
2020, 0:00
Em Portugal, há
sempre solução para tudo. Tanto se arranja um lugar no aparelho do Estado para
quem tem currículo e conflitos de interesse, como se arranja um lugar no
aparelho do Estado para quem não tem conflitos de interesse nem currículo. A
única coisa que se tem de ter é isto: uma relação de amizade ou de dependência
estratégica com quem está no poder. Garantido isto, há sempre tacho e há sempre
justificações para o tacho, por mais estapafúrdias que elas sejam.
Tacho 1:
governador do Banco de Portugal. António Costa tinha prometido que ia escutar
todos os partidos antes de nomear o próximo governador do Banco de Portugal – e
escutou. Mário Centeno esteve no Parlamento para prestar contas aos deputados –
e prestou. Com esta originalidade: não interessou para nada aquilo que António
Costa ouviu, porque a decisão estava tomada; nem interessou para nada aquilo
que Mário Centeno disse, porque o cargo estava garantido. Tirando isso, a
coreografia democrática foi linda.
Além dos
solistas, a companhia de dança também é digna de nota. A maioria dos deputados
estava contra a nomeação, mas também estava contra a lei que impede a nomeação.
Recusava em simultâneo a lei ad hominem e o hominem. Ora, como menos com menos
dá mais, a conclusão daquele sarau foi que Mário Centeno não devia ir para o
Banco de Portugal, mas que podia ir à vontade.
Com este bónus:
quando questionado sobre potenciais conflitos de interesse, por terem sido mais
numerosas as decisões que tomou sobre o sistema bancário do que as histórias
que Xerazade contou ao sultão Xariar, Centeno disse: “Se eu usasse o seu
raciocínio não conseguia encontrar emprego em Portugal nas próximas décadas.”
Qualquer português imaginou de imediato o pobre de pedir a vaguear pelas ruas
de Lisboa de mão estendida, como se já não tivessem bastado cinco anos a
estender a mão em Bruxelas. De facto, que outro cargo poderia merecer este
mártir, que não o de governador do Banco de Portugal?
Só se fosse –
tacho 2 – o de director do Museu do Aljube. Mário Centeno não tem currículo
para isso, mas Rita Rato, ex-deputada do PCP, também não. Rita Rato pertence à
geração do comunista com ignorância autoinfligida: de cada vez que um
jornalista lhe pergunta sobre Estaline, a China ou a Coreia do Norte, não é seu
desejo defender abertamente tais coisas, mas como teme que se quebre a ampola
de cicuta ao criticá-las, a solução é alegar a mais profunda ignorância (vejam
o que António Araújo escreveu sobre o tema no blogue Malomil). Rita não leu,
não estudou, não conhece – é jovem.
Demasiado jovem
para ler sobre o Gulag, claro está, mas não para dirigir o Museu do Aljube,
cargo que Rita Rato acaba de conquistar, apesar de conhecer apenas um tipo
específico de tortura – a fascista, porque a comunista, infelizmente, não
estudou. O que até se compreende. Rita Rato tem currículo em História? Não tem.
Tem currículo em Museologia? Também não. Tem currículo em quê, afinal? Tendo em
conta que entrou para a Assembleia da República com 26 anos e ficou por lá uma
década, tem currículo em política e em comunismo. E isso bastou e sobrou para
ser a melhor entre várias dezenas de candidatos ao cargo.
O marxismo
cultural é apenas uma ficção da direita? Só se a nomeação de André Ventura para
director do museu do Estado Novo, em Santa Comba, causar a mesma indignação.
Ontem foi mais uma quarta-feira no país do vale-tudo. Passo a passo, o regime
vai cavando o buraco onde um dia se irá sepultar.
Jornalista
HISTÓRIA
Historiadores e museólogos contestam escolha de Rita Rato
para direcção do Museu do Aljube
Ex-deputada do PCP não terá um currículo adequado ao
cargo nem cumpre os requisitos do perfil pedido pela própria EGEAC, argumentam.
Júri do processo de selecção não incluiu qualquer membro independente.
Isabel Salema
Isabel Salema 8
de Julho de 2020, 21:32
Está a criar
polémica a selecção de Rita Rato, ex-deputada do Partido Comunista Português
(PCP), para directora do Museu do Aljube – Resistência e Liberdade, um
equipamento da Câmara Municipal de Lisboa criado em 2015 numa antiga prisão da
polícia política PIDE.
A escolha foi
anunciada na terça-feira pela Empresa de Gestão de Equipamentos e Animação
Cultural (EGEAC), que gere os equipamentos culturais da Câmara de Lisboa, num comunicado
que adianta que Rita Rato se destacou entre várias candidaturas “pelo projecto
apresentado e pelo desempenho nas entrevistas realizadas com o júri”.
Licenciada em Ciência Política e Relações Internacionais pela Universidade Nova
de Lisboa, a militante do PCP substituirá o historiador Luís Farinha, que se
reformou em Abril.
A desadequação do
currículo de Rita Rato aos principais requisitos solicitados pela EGEAC no
processo de recrutamento e o eventual peso da sua militância no PCP na decisão
final são alguns dos argumentos invocados pelos especialistas ouvidos pelo
PÚBLICO e que também têm sido discutidos nas redes sociais.
Para a
historiadora Irene Pimentel, com várias obras publicadas sobre a PIDE, o que se
sabe do currículo da ex-deputada não se adequa ao que era pedido para a
direcção do Museu do Aljube: “Que eu saiba, não tem nenhuma experiência na área
da museologia, não é historiadora, nem de história contemporânea nem de
história cultural. Não é curadora, não é museóloga.”
Tal como já tinha
escrito na sua página de Facebook, Irene Pimentel diz também ao PÚBLICO
conhecer vários candidatos que estariam muito mais de acordo com o perfil
divulgado pela EGEAC: “São excelentes historiadores de história contemporânea
com experiência em museologia.”
No referido aviso
de recrutamento, a EGEAC colocava em primeiro lugar três pontos mais
específicos: “Formação superior adequada à função (preferencialmente na área de
história política e cultural contemporânea); Experiência em funções similares
(preferencialmente na área dos museus); Experiência em programação e produção
de exposições”.
Irene Pimentel
pergunta ainda, no Facebook, por que razão não há concurso público para museus
camarários — “a escolha é por camaradagem?” Ao PÚBLICO, a historiadora assume
entender que a filiação política de Rita Rato “é capaz de ter tido um papel
importante”. “Há aspectos da geringonça que ainda se mantêm. E eu até era favor
da geringonça, mas falta de transparência em concurso é que jamais. Esta pessoa
não parece ter minimamente os pontos principais do perfil que eles próprios
conotaram. Além disso, houve presos de vários partidos políticos [nas prisões
da PIDE] e é preciso ter muito cuidado. Há o perigo de o [PCP] hegemonizar o
património dessa memória. Sempre levantei muito essa questão.”
Antigo director
estava no júri
Ao que o PÚBLICO
apurou, a EGEAC (que não está obrigada a fazer concursos públicos) recebeu
cerca de 60 candidaturas à direcção do Museu do Aljube. Seguiram-se duas fases
de selecção que passaram por entrevistas aos concorrentes. O júri foi composto
por Luís Farinha, o anterior director, e mais três chefias da EGEAC: Joana
Gomes Cardoso (presidente), Manuel Bairrão Oleiro (assessor para a área do
património e dos museus) e Joaquim René (director de recursos humanos).
Segundo Joana
Gomes Cardoso, “o processo de recrutamento contou com a participação activa do
anterior director do Museu do Aljube” porque se “pretende uma continuidade do
projecto desenvolvido nos últimos cinco anos”, entendendo-se embora necessário
reforçar a área da comunicação e captar novos públicos. Em resposta enviada ao
PÚBLICO por email, a presidente da EGEAC esclareceu que “a candidata
seleccionada defendeu uma visão integrada para o museu, incluindo uma proposta
de programação relacionada com temáticas de liberdades contemporâneas, como as
questões de género ou a inclusão social”, destacando-se nessa abordagem na
segunda ronda de entrevistas. Quanta à falta de currículo académico da nova
directora, Joana Gomes Cardoso desvaloriza-a: “O Museu do Aljube conta com uma
equipa com sólida formação académica e científica que continuará a apoiar a
nova direcção, assim como o Conselho Consultivo do Museu, do qual fará parte
Luís Farinha.” Refutando qualquer sugestão de esta ter sido uma escolha
política, afirma ainda que a EGEAC “é uma instituição plural onde convivem as
mais diversas correntes políticas”.
Contactado pelo
PÚBLICO, o presidente do Conselho Internacional de Museus (ICOM Europa), Luís
Raposo, diz não conhecer os outros candidatos, nem, em pormenor, o currículo de
Rita Rato. Não acha mal “que os directores de museu tenham alguma notoriedade
pública, como a ex-deputada do PCP, e não sejam apenas tecnocratas cinzentos
que ninguém sabe que são”, mas admite que “é uma escolha controversa”, ainda
que não considere obrigatória uma formação específica em museologia. O mais
importante, defende, é o conhecimento da colecção e a capacidade de a fazer
falar.
Já em relação ao
processo, Raposo diz que lhe “parece mal que os júris de selecção de directores
de museus públicos, ou de empresas e fundações com dinheiros públicos, sejam
constituídos apenas ou sequer maioritariamente por ‘gente da casa'”. “Devem
existir e ser maioritários membros independentes”, acrescenta.
Também o
historiador António Araújo, no seu blogue Malomil, considerou que Rita Rato não
tem competência para dirigir o Museu do Aljube: “Nomeá-la é um insulto grave
aos historiadores e investigadores portugueses, a gente competente e
independente, aos cidadãos desta Lisboa, aos resistentes e às vítimas pela
liberdade, a todas elas, sem excepção, aos que lutaram e sofreram no Tarrafal,
em Auschwitz, no gulag, na Coreia do Norte, em Hong-Kong, em muitos lugares.” O
também conselheiro do Presidente da República aludiu ainda a uma célebre
entrevista que Rita Rato deu em 2009 ao Correio da Manhã, e em que a jovem
deputada recém-chegada à Assembleia da República mostrava desconhecer a
existência dos campos de trabalho forçados da antiga URSS, numa resposta
alinhada com o discurso comunista mais ortodoxo.
“Porquê Rita
Rato?” — continuava António Araújo, que publicou recentemente um livro sobre os
últimos dias da PIDE. “Tem formação académica ou outra em História? Nop. Tem
obra publicada ou investigação feita nesse domínio? Nada, absolutamente nada.
Tem alguma experiência curricular para o cargo? Niet, nenhuma, zero.”
Numa carta que
será publicada na edição impressa de quinta-feira do PÚBLICO, o historiador de
arte Miguel Soromenho vai ainda mais longe, escrevendo que “a escolha da
ex-deputada Rita Rato para a direcção do Museu do Aljube é uma vergonha”. O
também museólogo diz que a EGEAC ignorou o perfil que exigiu aos candidatos,
acrescentando que o júri “embarcou diligentemente neste simulacro concursal”.
“Dos nove requisitos exigidos, à deputada Rita Rato faltam pelo menos três, e
logo aqueles, cruciais, relativos à proficiência técnica exigida à coordenação
superior de um equipamento desta natureza.”
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