A saída limpa... da Europa
BOAVENTURA SOUSA
SANTOS 17/05/2014 - PÚBLICO
Portugal sai da Europa seguro pela trela curta do euro e do tratado
orçamental. Não pode ir muito longe.
No período pós-25
de Abril de 1974, a
mistificação política nunca atingiu os níveis que hoje atinge. Mistificação
consiste em fazer alguém acreditar numa mentira. A mentira é que o processo da
troika terminou com êxito, que Portugal tem hoje melhores condições para se
desenvolver como país europeu e que a reforma do Estado proposta garante a
criação de uma sociedade mais equitativa.
Que o sucesso da
troika seja o outro lado da hecatombe social que se abate sobre os portugueses
empobrecidos; que as novas condições de desenvolvimento sejam as típicas de um
país subdesenvolvido (emigração, trabalho e velhice sem direitos) que tínhamos
deixado de ser; que a reforma do Estado proposta seja aquela que os países
latino-americanos rejeitaram nos últimos 15 anos precisamente para construir
sociedades mais equitativas – nada disso é relevante para os media ou entra no
discurso político. No momento em que o país vive um momento político idêntico
ao do Verão quente de 1975, só que de sentido político oposto, o PS, sem a
coragem de então, pede que seja tornado público o conteúdo da carta de
intenções com que se concluem os trabalhos da troika. Não se trata de enfrentar
a mentira com a verdade, mas antes de certificar que a mentira é verdadeira. Com
razão, Passos Coelho responde que a carta não contém nada de novo nem de
extraordinário. Basta consultar a letter of intent da Irlanda de 29 de Novembro
de 2013. A
carta é a expressão do compromisso do país a aceitar como verdades as mentiras
que acima referi e de agir em conformidade nas próximas décadas.
Para entender a
força da mistificação em curso é preciso situar o actual momento no contexto
histórico mais amplo. Talvez por durante séculos ser uma entidade frágil face
ao Império Otomano, a Europa sempre foi muito ciosa dos seus centros, que
idolatrou, e desdenhosa das periferias, que demonizou. No início do seculo XIX,
o chanceler da Áustria, Metternich, proferiu uma frase famosa – "Asien
beginnt an der Landstrasse" – a Ásia começa na Landstrasse, que era então
uma rua dos subúrbios de Viena. Aí viviam os emigrantes dos Balcãs que,
obviamente para os austríacos, não eram europeus. Para entender isto é
necessário recuar alguns séculos mais e observar a relativa rigidez histórica
das relações entre centros e periferias dentro da Europa. Um centro
mediterrânico que não durou muito mais do que século e meio (século XVI e
metade do século XVII) foi suplantado por um outro que acabou durando muito
mais e tendo um muito maior impacto estrutural. Este último foi um centro com
raízes na Liga Hanseática dos séculos XII e XIII, um centro virado para o
Atlântico Norte, para o mar do Norte e o Báltico, e englobando as cidades do
Norte da Itália, França, Países Baixos e, no século XIX, Alemanha. Um centro
sempre rodeado de periferias: no Norte, os países nórdicos; no Sul, a Península
Ibérica; no Sudeste, os Balcãs; no Oriente, territórios considerados feudais (o
Império Otomano e a Rússia semieuropeizada desde Pedro, o Grande). Ao fim de
cinco séculos, só as periferias do Norte tiveram acesso ao Centro, o mesmo
Centro que é hoje o coração da União Europeia
Este dualismo
está mais arreigado na cultura europeia do que se poderia pensar e pode bem
explicar algumas das dificuldades no modo como está a ser abordada a actual
crise. O que parece ser só um problema financeiro e económico é também um
problema cultural e sócio-psicológico. Um exemplo poderá ajudar. Entre o século
XV e o século XIX são muitos os relatos de viajantes e comerciantes do Norte da
Europa sobre os portugueses e espanhóis e as condições de vida prevalecentes no
Sul da Europa. O mais surpreendente nesses relatos é que atribuem aos
portugueses e espanhóis as mesmas características que, na mesma época, os
colonizadores portugueses e espanhóis atribuíam aos povos
"primitivos" e "selvagens" das suas colónias. Eis algumas
citações do século XVIII: “O português é mandrião, nada industrioso, não
aproveita as riquezas da sua terra, nem sabe fazer vender as das suas
colónias”; “os portugueses são altos, bem-parecidos e robustos, na sua maior
parte muito morenos, o que resulta do clima e ainda mais do cruzamento com
negros". Ou seja, a miscigenação, que os portugueses consideravam o sinal
benevolente da sua colonização, virava-se contra eles por via do preconceito
colonial e racista. Quando hoje lemos na imprensa alemã notícias e comentários
sobre os países do Sul da Europa, é fácil verificar que o preconceito colonial
e racista ainda está bem presente.
No caso
específico de Portugal, o seu estatuto de país periférico na Europa teve até
agora três fases. O momento europeu de rejeição (1890-1930) foi concomitante
com a partilha de África no final do século XIX (Conferência de Berlim,
1884-85, o Ultimato Inglês, em 1890), tendo pretendido tornar claro que
Portugal era um país sem qualquer poder para influenciar o momento imperialista
da Europa, mesmo sendo detentor do maior e mais antigo império colonial. Portugal
era o centro de um império integrado noutro muito maior de que o Império
Português era apenas uma periferia. O segundo momento pareceu ter um sinal
contrário. Ocorreu no final do século XX, tendo como precedente a Revolução do
25 de Abril de 1974 e, como início, a adesão à então Comunidade Económica
Europeia em 1986, hoje União Europeia (1974/1986-2011). Foi um momento
exaltante para as elites portuguesas e para os portugueses que nelas confiaram.
Portugal tinha sido finalmente aceite pela Europa depois de séculos de rejeição
e agora, em pleno fim da história, era só esperar pela convergência total com o
Centro desenvolvido da Europa. E o movimento de convergência pareceu ser real
até 2000. Digo “pareceu”, porque dados fiáveis do Deutsche Bank (Discussion
Paper No 28/2013) mostram que nos últimos 40 anos não houve nenhuma
significativa convergência de rendimentos no interior da UE, ainda que sejam
identificáveis algumas variações. Depois de 2000, a ignorância
militante dos nossos governantes e a insidiosa penetração do neoliberalismo no
coração das instituições europeias fizeram com que as correntes subterrâneas da
história voltassem à superfície. O terceiro momento europeu, iniciado com a
vinda da troika e concluído com a sua saída (2011-Maio de 2013), pareceu ser de
início um novo momento europeu de rejeição disfarçada de aceitação, mas acabou
por ser o momento de rendição com prisão preventiva e saídas precárias. Do
Deutsche Bank ao FMI, os relatórios são unânimes em mostrar que Portugal, longe
de convergir, vai continuar a divergir da Europa desenvolvida. Ou seja, o
objectivo da integração na UE fracassou, um fracasso que, com doses brutais de
mistificação, se apresenta como êxito. Depois da Guerra do Vietname, nunca uma
derrota se disfarçou tão bem de vitória. Dado o seu novo estatuto, Portugal,
para não estorvar, tem de ser mantido dentro, mas do lado de fora, e vigiado.
Portugal sai da
Europa seguro pela trela curta do euro e do tratado orçamental. Não pode ir
muito longe. Arranjará um lugarzito na soleira da porta da Europa, um país
sem-abrigo por onde passarão regularmente as carrinhas da sopa humanitária. É
digno de nós, como portugueses e como europeus, que não haja alternativas a
este estado de coisas? Claro que não. Estará o actual sistema
político-partidário em condições de explorar essas alternativas? Claro que não.
Como em democracia há sempre alternativas, o regime actual é democrático? Claro
que não. Haverá então alternativas democráticas, quer a nível nacional, quer a
nível europeu, a este regime autoritário? Claro que sim. Para isso, é
necessário que a jangada de pedra, tão premonitória, se afaste o suficiente
para romper com a trela ou para forçar que ela seja refeita de modo a dar mais
margem de liberdade ao movimento da jangada. Não esqueçamos que os cães são os
melhores amigos dos homens. O cão de Saramago, Constante, no momento crucial de
ter de decidir, optou pela Península Ibérica.
Director do
Centro de Estudos Sociais, Laboratório Associado, da Universidade de Coimbra
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