“Os judeus húngaros são malucos,
como eu. Aceitam tudo”
MARIA JOÃO
GUIMARÃES (texto) e JOANA BOURGARD (fotos e video, em Budapeste)
PÚBLICO
Um judeu, duas sinagogas. Dois judeus, três opiniões. Este dito tem alguma
verdade também em Budapeste, mas numa coisa todos concordam – há bem pouco
tempo, ninguém pensou que o anti-semitismo na Hungria fosse chegar a este ponto.
O que é este ponto? Aí já pode haver várias opiniões.
Tamás Vero,
rabino da sinagoga da Rua Frankel Leó, em Buda, do “outro” lado do Danúbio,
conta que, quando sai de casa com a mulher, já sabe que vai ouvir um pedido:
que ponha um boné por cima da kippa, ou solidéu. Para que não seja óbvio que é
judeu. Isto mesmo quando saem de carro. É este o ponto de que fala Vero.
Robert Frölich é
o rabino da maior sinagoga da Europa, a grande sinagoga da Rua Dohany, que está
no centro de qualquer roteiro turístico de Budapeste, e isso nota-se na sua
postura – ele é maior, mais redondo, e mais grave. Nas ruas em volta do grande
edifício há lojas com produtos kosher, restaurantes com especialidades
judaicas, e ninguém diria que na Hungria um insulto comum é “porco judeu”. Mas
é, e este é o ponto de que fala Frölich.
“Aqui estamos no
centro do gueto, do bairro judaico. Aqui [o anti-semitismo] é muito menor do
que no resto da cidade, ou do país”, diz o rabino. “Mas as pessoas com quem
falo dizem-me que é incrivelmente alto: ouve-se nas ruas, nos mercados. Se
alguém quer insultar outra pessoa diz ‘porco judeu’.”
Tamás Vero também
diz que vive “numa bolha”: “Não consigo ver o que é a vida real: eu trabalho na
sinagoga, a minha mulher com a comunidade judaica, as minhas filhas na escola
judaica...” Mesmo assim, quando sai, se passa por três pessoas, já sabe que não
vai demorar muito que uma o insulte e diga: “Vai para Israel, vai para a tua
terra.”
Mas ambos
concordam: desde que o partido Jobbik, de extrema-direita, elegeu deputados em
2010 ouvem-se tiradas anti-semitas no Parlamento. Por isso, “porque não na
rua?”. Os judeus são um dos grupos para quem se atiram culpas – pela má
situação económica, pela falta de emprego, etc. Outro são os ciganos.
A sinagoga do
rabino Tamás Vero é muito diferente da de Frölich. Vero abre um portão para um
pátio, a sinagoga está no meio do pátio com as varandas dos prédios à volta.
Foi feita assim para cumprir uma muito antiga lei húngara: as sinagogas não
podiam ser vistas da rua. Os problemas dos judeus na Hungria vêm de muito longe.
À frente do
portão da sinagoga, todas as sextas-feiras à noite, vem um grupo de pessoas
gritar. Não atacam, mas assustam. “O cantor é um homem mais velho e já deixou
de vir à sexta-feira. Porque tem medo. Tem medo de que algo aconteça quando
voltar para casa.”
Um dia, um
vizinho chamou a atenção de Vero para uma suástica gravada no elevador do
prédio ao lado. Desde então já aconteceu mais uma vez, e outra.
“Os judeus
húngaros são malucos, como eu. Aceitam tudo”, diz Tamás Vero. “Se nos dissessem
que a situação ia ficar assim há dez anos, eu diria que não, que não podia
acontecer. Ou se acontecesse, que me ia embora. Mas ainda estou aqui.”
A linha vermelha
Para cada um há
uma linha vermelha que ditaria a decisão radical de deixar o seu país. A sua
mulher já a passou, e os sogros também: foram no ano passado para Israel. “Por
ela, já estaria no avião.” Ele, não – ainda. A filha mais nova já está a
estudar numa escola em que se fala inglês, caso seja preciso.
Nesta congregação
muitas famílias foram para Israel, para a Alemanha, para a Áustria, diz Vero.
“No último ano, foram mais do que cinco ou seis famílias, com filhos pequenos,
que saíram. Porque a situação está cada vez menos democrática, a par do
anti-semitismo.”
“Tenho muitos
amigos no Facebook”, diz Frölich, comentando com um ar divertido que esta é “a
nova plataforma da comunidade”, e “muitos escrevem que querem ir embora – não
por eles, mas pelos filhos”.
Katalin Pécsi,
académica da Universidade Central de Budapeste dedicada a questões de judaísmo,
que encontrámos depois de uma conferência no Instituto Alemão de Budapeste
sobre a questão judaica, desvaloriza um perigo real, tangível. “A situação
política é terrível, mas os judeus estão numa situação boa – que não é o caso
dos ciganos, dos sem-abrigo ou dos homossexuais”, nota. Mas sublinha, como
Vero, a falta de democracia: “O maior perigo para os judeus húngaros não é o
anti-semitismo”, diz, “é não haver democracia.”
A Hungria “é
formalmente uma democracia”, sentencia Frölich.
“Quando
começaram, esta era a República da Hungria”, diz o rabino, e está a falar do
Governo do primeiro-ministro Viktor Orbán, no poder desde 2010. “Agora é
Hungria”, nota, referindo-se às alterações constitucionais de 2012. Faz uma
pequena pausa: “Vai ser república de novo.”
Mas perante o
ambiente claramente mais desconfortável, muitos judeus têm-se reunido – na
sinagoga, em centros judaicos. “A vida judaica está mais viva”, diz o rabino
Vero.
Zsuzsa Fritz,
directora do centro comunitário judaico Balint, nota também que “as pessoas têm
aparecido mais porque têm necessidade de pertença”.
O desafio do
centro que Fritz dirige é criar algo que falta aos judeus húngaros, diz: “Ser
positivamente judeu.” A identidade dos judeus da Hungria está ainda muito
marcada pelo Holocausto, em que morreram cerca de 600 mil judeus, a maioria em
dois meses de 1944. Quando terminou a II Guerra, havia cem mil judeus em Budapeste,
hoje, com mais de cem mil pessoas, a Hungria tem uma das maiores comunidades
judaicas da Europa.
Esta tentativa do
centro de redefinir o que é ser-se judeu nota-se em pormenores como as portas
das casas de banho do centro: a das mulheres tem uma fotografia de Barbra
Streisand, a dos homens a imagem de um jovem Woody Allen.
Fritz diz que o
anti-semitismo está no ar, mas que a questão não são os judeus. “Actua sobre a
auto-estima e a atmosfera da comunidade judaica”, sim. “Mas não é pessoalmente
contra os judeus.” E ela não quer estar sempre a falar nisso. “Aumenta o nosso
desafio de construir uma identidade positiva. Não ajuda estarmos sempre a
focar-nos no anti-semitismo, eles a dizer ‘judeus’ e nós a dizer
‘anti-semitas’.”
Frölich diz que o
primeiro-ministro, Viktor Orbán, não é racista nem anti-semita, “é político”.
Tem de seguir os seus interesses como político, que neste momento é fazer
gestos à extrema-direita. “O problema é que quando o génio está dentro da
garrafa, tudo está bem. Se ele sai, já não se pode voltar a pôr. E está fora.”
"Vamos atirar os gays e os judeus ao
Danúbio"
Para Frölich, uma
das coisas mais perigosas é a “violência verbal e ideológica”. Ele dá um
exemplo: “Na escola ensinam escritores nazis – o Governo incluiu nos programas.
Sim, escritores nazis da II Guerra fazem parte da literatura húngara que as
crianças têm de ler. Isto é violência ideológica, é mais perigoso.”
Katalin Pécsi
conta que muitas famílias estão a mandar os seus filhos estudar em escolas
judaicas por estas serem “um lugar seguro”, a salvo de intervenções ideológicas
nos programas e de uma atmosfera nociva. “Ainda no outro dia no autocarro um
jovem foi apanhado sem bilhete. Quando o revisor lhe pediu o dinheiro da multa,
ele retorquiu: ‘Não pago nada aos judeus’”, diz, sacudindo os volumosos cabelos
ruivos em desaprovação não muito séria. “Para ele, os judeus são quem está numa
posição acima, representam o poder”, explica.
Pécsi fala ainda
de um apoio frequente entre minorias, como, por exemplo, a participação dos
judeus nas marchas de orgulho gay. Numa das últimas, houve um ataque contra a
marcha. O slogan era: “Vamos atirar os gays ao Danúbio e os judeus a seguir.”
O que dá arrepios
é que já foram atirados judeus a este Danúbio. Num dos mais comoventes
memoriais a vítimas da Cruz de Ferro, o partido húngaro que defendia as mesmas
ideias do Partido Nazi da Alemanha, há uma série de sapatos à beira do rio, um
pouco à frente do Parlamento. Os sapatos, apesar dos modelos antiquados,
parecem ter sido acabados de deixar ali, e não em 1944-45, quando os milicianos
juntavam judeus e os punham ali em fila, obrigando-os a descalçarem-se antes de
os atingirem a tiro e eles caírem ao Danúbio.
Segundo a
Enciclopédia do Holocausto, entre Dezembro de 1944 e Janeiro de 1945, os
partidários da Cruz de Ferro levaram cerca de 20 mil judeus do gueto de
Budapeste para as margens do Danúbio, onde os mataram e atiraram os seus corpos
ao rio.
O memorial do
realizador Can Togay e do escultor Gyula Pauer foi erguido em 2005. Foi há
menos de dez anos. Budapeste parece estar tão diferente agora.
“Não me atrevo a
pensar no que vai acontecer”, diz Frölich. “Temos um exemplo e sabemos onde
acabou. Agora, a única esperança é que o mundo de 2014 não é o mundo de 1944.”
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