"Uma das coisas que mais me impressionou nesta crise desde 2008 é... por exemplo, ouvi o António Costa dizer: nós gastámos na exacta medida em que fomos estimulados para isso. Nunca ouvi uma declaração de irresponsabilidade com essa franqueza. O liberalismo sempre assentou em dois pressupostos. Um, o de que as pessoas eram racionais. Dois, o de que as pessoas eram responsáveis."
"Há uma relação entre pós-modernismo e neoliberalismo. O neoliberalismo corrói e opõe-se à social-democracia e à democracia-cristã. O pós-modernismo é a outra lei da selva, é a lei da selva no campo cultural e intelectual. Não é por acaso que surgem, alastram e invadem ao mesmo tempo. Eu sou muito conservadora, mas não subscrevo, nem nunca subscreveria, a tese de que a vida em sociedade está sujeita à lei da selecção natural dos mais fortes e que os mais fracos podem rebentar contra a parede."
Fátima Bonifácio admite que a UE irá "evaporar-se" por causa da "falência do euro". Considera que a Europa está a "passar por uma mutação telúrica" onde "nada mais será como dantes" e advinha uma sociedade conflitual e dominada pelo desemprego
A "principal preocupação" de Cavaco "é ficar sempre bem na fotografia"
Por São José Almeida in Público
Aos 64 anos, a historiadora Fátima Bonifácio é investigadora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e membro do conselho científico da Fundação Francisco Manuel dos Santos. Começou na extrema-esquerda e hoje assume-se como conservadora e defende abertamente a preservação de um legado cultural humanista da Europa. E teme pelo fim das democracias liberais e o regresso a regimes autoritários.
Vai servir para quê a presença da troika?
Não tenho dúvida nenhuma de que foi e seria absolutamente indispensável. As pessoas já se esqueceram que Portugal estava completamente falido, que o Estado português não tinha dinheiro para pagar salários e pensões e hospitais e escolas. Foi imprescindível. Agora se, chegados a este ponto, o caminho que levamos nos vai levar a alguma coisa, vai, mas ninguém sabe o que é. É muito assustador e quem disser que sabe onde isto leva não está a falar verdade.
Acredita em soluções como a de cortar 4 mil milhões na despesa do Estado?
Não.
Como fazer a reforma do Estado?
Era necessário fazer um levantamento do que é o Estado. Tenho dúvidas que alguém tenha feito o levantamento do que é o Estado português. Dizer é preciso cortar 4 mil milhões, a mim, choca-me, por que é algo ditado por necessidades financeiras do Estado e pouco tem a ver com a reforma deste.
Limitam-se a cortar nas prestações do Estado social.
Mas isso não é reforma do Estado. Pode fazer parte, mas reforma do Estado é, primeiro, saber o que é o Estado e, segundo, fazer a definição do que devem ser as suas funções e as que devem ser entregues a privados.
Por que acha que o Governo não faz isso?
O Governo não quer fazer reforma nenhuma, quer é arranjar dinheiro, nem que seja na cabeça de um tinhoso.
O que propõe é que se encontre um novo desígnio nacional? Uma nova ideia de Portugal?
Sim, absolutamente. Interpretou-me lindamente. Sabe? Nada mais será como dantes. As pessoas pensam que passando a crise - chamemos-lhe assim, pois é mais do que uma crise - se volta a uma coisa parecida com o que havia antes. Nem pensar. O mundo que se seguiu à revolução industrial não tinha comparação possível com o que o precedeu. E estamos a passar por uma mutação telúrica.
Uma revolução científica e tecnológica?
E não só. Também social, que mexe com a estrutura do emprego, com a maneira como as pessoas vivem, com a estrutura de gastos e de rendimentos das pessoas. Para Portugal, isto é particularmente difícil, dada a estrutura empresarial portuguesa.
Que é atrasada.
É obsoleta. Mas era um tecido empresarial que dava trabalho, ou seja, rendimento, a 80% das pessoas em idade de trabalho. Se daqui emergir uma estrutura económica nova, modernizada, liberta dessa canga obsoleta, que era o tecido empresarial português, isso significa que vamos ter 60 a 70 % dos actuais desempregados que nunca mais vão ter emprego, porque não têm formação. E o que vamos fazer dessas pessoas?
Dependerão da assistência do Estado?
Exactamente. Ao mesmo tempo que estamos a diminuir os subsídios de desemprego.
Acha que está a ser criada uma sociedade de conflito social?
Acho.
As manifestações que têm existido enquadram-se já nisso?
As manifestações que temos tido não têm a ver com o cenário que estou a equacionar, ainda se enquadram num cenário em que as pessoas pensam que depois voltamos ao mesmo. Nunca mais haverá o statu quo ante. E não é só em Portugal. É na Europa.
Com os políticos e partidos que há é possível envolver o povo português num novo desígnio para o país?
Neste momento, como a classe política se apresenta - envolvo aí a oposição, que de resto não é homogénea, e o Governo -, não. Se alguma coisa as manifestações mostram, é que há uma total inadequação dos aparelhos políticos, que não têm já capacidade de comunicação e de envolvimento da sociedade portuguesa. As pessoas não se sentem representadas. Mas isso não é um fenómeno exclusivamente português.
Como vê a manutenção de Miguel Relvas no Governo e a nomeação de José Sócrates para um alto cargo numa farmacêutica?
Espanta-me mesmo que Passos Coelho não se dê conta a que ponto é que a conservação de Miguel Relvas no Governo corrói a imagem dele e o descredibiliza. Ou então tem e nós temos o direito de pensar que ele lhe deve favores de tal ordem que não pode correr com ele. E isso é outra maneira de minar completamente a sua imagem. É um dos maiores erros políticos de Passos Coelho. É incrível como aquele sempre-em-pé do Miguel Relvas ainda está no Governo. Até é ofensivo, ter um governo com Miguel Relvas.
E José Sócrates?
Acho um caso suspeito. É certo que ele já não está na política, mas ninguém pode deixar de estabelecer uma relação entre o papel político que ele teve e esta contratação. É automático. É inevitável. Se ele tivesse um bocadinho mais de brio e de respeito por si próprio, evitava situações que se prestassem a interpretações deste tipo.
Como vê o papel do Presidente da República?
Cavaco Silva revelou ao longo do primeiro mandato e continuou a revelar no segundo que a sua principal preocupação é proteger-se, é ficar sempre bem na fotografia. Eu tenho simpatia pessoal pelo senhor, mas realmente analisando a actuação dele, ele protege-se o mais possível. Também tem poucos meios de intervenção política.
Começou a implosão da União Europeia?
A única coisa que me parece com alguma probabilidade é que daqui a meia dúzia de anos não há euro, portanto não há União Europeia. Neste momento, tal como as pedras estão dispostas é o que me parece. Então com as eleições em Itália, com os italianos a elegerem dois palhaços.
Acha mesmo que os italianos elegeram mesmo dois palhaços?
Acho. O Berlusconi, além de palhaço, é um indivíduo perseguido e com muitas contas a ajustar com a polícia, que quer estar no governo para ter imunidade e não se sentar no banco dos réus. O Beppe Grillo é um palhaço, é um indivíduo irresponsável.
Mas as pessoas não votaram neles por serem anti-sistema?
De formas diferentes, sim. Mas olhe que os italianos são particularmente propensos. Repare que o Mussolini era um palhaço, ninguém levava aquilo a sério. Há um lado apalhaçado, chamemos as coisas pelos nomes, teatral, burlesco. Mas há um voto contra o sistema, o sistema na União Europeia e o sistema no que é o domínio nacional. E ouço dizer que a solução para a Europa está numa maior integração política, estão a ver a Catalunha a ser governada por Bruxelas? Ou a França - La France! - governada por um governo supranacional? Isso é uma utopia.
Vivemos um fim de época histórico?
A crise é na base económica, a Europa não cresce. A Europa está numa fase de declínio político e militar. E está a braços com o conflito que é o desfasamento entre aquilo que os Estados podem dar às pessoas e os meios disponíveis. Uma das coisas que mais me impressionou nesta crise desde 2008 é... por exemplo, ouvi o António Costa dizer: nós gastámos na exacta medida em que fomos estimulados para isso. Nunca ouvi uma declaração de irresponsabilidade com essa franqueza. O liberalismo sempre assentou em dois pressupostos. Um, o de que as pessoas eram racionais. Dois, o de que as pessoas eram responsáveis.
Mas as pessoas não são nem uma coisa nem outra e o racional é profundamente emocional, o Manuel Damásio demonstrou-o...
Mas há quem esteja convencido disto. E se estes dois pressupostos não se verificam, qual é o destino do liberalismo? A minha resposta é: não sei.
Vivemos uma falência da democracia liberal?
A democracia liberal está a atravessar uma profundíssima crise e quero crer, rezo todos os dias e acendo velinhas, para que essa crise seja ultrapassada sem nós perdermos a democracia e a liberdade, porque podemos perder.
Tudo indica que a União Europeia e o seu projecto poderá...
Evaporar-se...
Vamos regressar a uma Europa de Estados-nação?
Penso que a Europa está condenada a desagregar-se por causa da falência do euro. A alternativa seria criar uns Estados Unidos da Europa, eu não acredito nisso. A história da Europa é de guerras, isso deixa sequelas. A Europa no mundo todo é uma gota de água no oceano. A Europa vai entrar num declínio sob todos os aspectos - económico, cultural, intelectual. Aliás, se se vir a evolução das universidades na Europa, é aterradora. Não na parte das ciências exactas, mas no que era o chamado "ramo das humanidades" - e que infelizmente se passou a chamar "ciências sociais" - as universidades entraram numa decadência aflitiva. A universidade pública tem desprezado esse ramo do saber. Como é que se alimenta cultura e os valores da cultura, se se nega pertinência, validade e interesse àquilo que são saberes não científicos, mas que são saberes à mesma? Então a Guerra e Paz do Tolstoi, O Vermelho e o Negro do Stendhal, o D. Quixote do Cervantes, um trio do Schubert, a Filosofia, não interessam para nada? Todo este ramo do saber está descuidado e pervertido pelos estudos culturais e pelo pós-modernismo. Daqui vem uma ameaça à sanidade cultural do pensamento do Ocidente.
A ligação entre pós-modernismo enquanto destruição e o neoliberalismo como fase destrutiva da democracia liberal pode ser feita?
Há uma relação entre pós-modernismo e neoliberalismo. O neoliberalismo corrói e opõe-se à social-democracia e à democracia-cristã. O pós-modernismo é a outra lei da selva, é a lei da selva no campo cultural e intelectual. Não é por acaso que surgem, alastram e invadem ao mesmo tempo. Eu sou muito conservadora, mas não subscrevo, nem nunca subscreveria, a tese de que a vida em sociedade está sujeita à lei da selecção natural dos mais fortes e que os mais fracos podem rebentar contra a parede.
Podemos falar em decadência europeia?
O Império Romano também acabou. As civilizações vão e vêm.
O humanismo viveu sempre da dimensão ética do projecto político...
Cívica, que engloba a ética e a solidariedade.
Nessa dimensão, até que ponto inclui como sintoma de fim de época a renúncia do Papa? O que Bento XVI faz é o regresso a uma ética humanista e cristã europeia, um regresso às suas convicções íntimas de europeu e de humanista para recusar a actual sociedade eclesial?
Ele teve, primeiro que tudo, uma atitude laicizante, que não choca, se pensarmos que ele é um intelectual versado na herança da cultura renascentista e iluminista. Diz-se que vai haver um antes e um depois de Bento XVI na História da Igreja. Não só do ponto de vista de restabelecer alguma sanidade de costumes, não apenas sexuais, mas de costumes morais - aquela confusão do papado com o banco e a Loja P2, tudo aquilo está podre e tão podre como na sociedade profana. Mas a Igreja mostrou que pode ser governada como uma república.
É como o imperador do Japão poder ser sujeito a intervenção médica...
Exactamente, há uma dessacralização. Pode ser que seja recomposta na sua integralidade, mas, neste momento, essa dimensão sagrada está um pouco beliscada ou abalada.
Faz alguma ligação entre a rejeição do Papa e a rejeição que os cidadãos fazem do sistema?
Não, não vejo na abdicação do Papa o contraponto da derrocada dos sistemas demoliberais. Vejo uma relação num aspecto. No mundo demoliberal, o potencial inquisitivo dos media adquiriu uma força tal que penetrou na podridão mais secreta da Igreja, - estou-me a referir aos escândalos da pedofilia, aos escândalos dos dinheiros. Ficou impossível à Igreja manter tudo isso secreto, como até hoje.
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