Paulo Rangel ao i. "O Eurogrupo não percebeu o que qualquer aprendiz de política era capaz de perceber"
Por Isabel Tavares, publicado em 22 Mar 2013 in (jornal) i online
O advogado considera que a Europa humilhou Chipre e esqueceu que daí pode vir uma escalada de retaliações
A conversa com Paulo Rangel foi marcada para as oito da noite, depois das votações e das reuniões dos diversos grupos parlamentares, numa semana de azáfama em Estrasburgo. O fumo branco em Roma, pouco antes dessa hora, veio alterar os planos: por coincidência, assistiu em directo à proclamação dos três últimos papas, quatro com Francisco - e, claro, também havia o jogo do FC Porto. Mas a ter em conta aquilo que se está a passar na Europa, salvar a União Europeia e o euro só mesmo com intervenção divina.
Martin Shulz mostrou lucidez quando anunciou que o estado do deputado grego Papastamkos [caiu inconsciente em plena sessão de votos] era grave. Alguns deputados queriam fazer rolar cabeças…
É tudo um disparate. O Parlamento Europeu tem um lado histérico, talvez por durante muito tempo não ter tido poderes, coisa que hoje já não é assim. Criou--se uma certa cultura, há imensos assuntos laterais que são discutidos, é capaz de ver aí pessoas vestidas de tubarão, lóbis para isto e para aquilo, a favor da pesca, contra a pesca… Um certo folclore, que desde 2009 está em franca diminuição, mas que continua muito presente.
O que aconteceu foi um acidente...
Sim, mas se visse os emails trocados internamente a propósito do acidente... A certa altura uns diziam que tinha a ver com a duração da votação, que não podia ser tão longa, por exemplo. Um disparate, porque uma coisa destas [embolia cerebral] não acontece porque uma pessoa está numa votação, exausta, há um conjunto de antecedentes. Mas os britânicos vieram logo dizer que a Europa não funciona porque alguém precisou de água e não é permitido distribuir águas no hemiciclo. Há este lado folclórico, mas também há o outro: as decisões são tomadas com um elevadíssimo grau de conhecimento, de seriedade e de tecnicicidade.
O presidente do Parlamento Europeu pediu serenidade.
Shulz tem muito jeito para a comunicação social, sabe muito bem a mensagem que interessa fazer transmitir, mas às vezes é um bocadinho disparatado. Faz muitas observações que o presidente de um parlamento não pode fazer, que dão número, mas não são institucionalmente aceitáveis.
Por exemplo?
Até a forma como às vezes trata os deputados, se são mais pró ou antieuropeus... E não tem nada que fazer juízos de valor sobre isso. Ainda agora estive na comissão dos Assuntos Constitucionais e há ali dois ou três alemães que querem à viva força que se proíbam os partidos que são contra a União Europeia. Eu sou um federalista, ao contrário de muita gente, mas não quero uma União Europeia onde os partidos antieuropeus não têm lugar, isso é um disparate completo. Temos de ter um espectro em que todos são ouvidos.
Todos os partidos são financiados pela Europa…
Todos. Até o Farage [inglês membro do EFD], que faz este discurso e que é um fascista - esta é que é a verdade -, fez uma declaração a dizer que as estatísticas demonstram que dos não sei quanto romenos que estão em Inglaterra 17 mil já foram presos só na zona metropolitana de Londres e que 15% do crime está ligado a romenos e é por isso que não querem romenos ou búlgaros no Reino Unido.
Isso não se pode dizer?
Pode dizer-se, agora o que não podemos é deixar de fazer juízos sobre quem diz. Ou seja, que há um problema na Roménia e na Bulgária com o crime organizado e com o tráfico de pessoas em particular, toda a gente sabe. Como há uma máfia em Itália. Cada país tem as suas idiossincrasias, ninguém pense que nos países do Norte não há problemas ou que a natureza humana lá é diferente. Mas é como dizia um deputado espanhol a propósito do que aconteceu com o vice--presidente Papastamkos: se tivesse acontecido em Lisboa ou em Madrid, o que não estaria já nos jornais europeus sobre a desorganização, isto, aquilo e aqueloutro. Assim, pronto, aconteceu...
Que dossiês tem em mãos a comissão do Assuntos Constitucionais?
O dossiê mais importante até agora, que culminou a semana passada e no qual estive directamente muito envolvido, foi o da composição do Parlamento, saber quantos deputados tem cada país, tendo em conta a entrada da Croácia. Outro assunto é a discussão do estatuto dos partidos políticos europeus, como deve ser feito o seu financiamento, o seu registo, que instituições o devem fazer.
É nesta comissão que são tratadas questões de forma que têm a ver, por exemplo, com a união bancária...
Tivemos aqui assuntos muito importantes nessa matéria. Fui relator desses pareceres, que são tratados na Comissão de Economia, mas que põem em causa algumas questões institucionais. O Banco Central Europeu não tinha competências de supervisão, era preciso saber quem devia fazê-lo, se ficam só os países do euro ou também os que estão fora. Esta era a grande questão quando a Alemanha queria que fossem só os grandes bancos europeus a ficar sob a supervisão do BCE, é que isso ia criar bancos de primeira e bancos de segunda. Estavam para ser 6 mil bancos, que não são todos mas já é alguma coisa. No caso dos portugueses cobre todos os relevantes. Então criou- -se um conselho de supervisão onde eles têm votos.
Quem desenhou as soluções propostas?
Fui eu, e a primeira vitória importante foi que a supervisão ficasse entregue ao BCE. Isso deu um sinal de que o euro é a moeda da União Europeia e que o BCE pode ter outras funções que não apenas a do controlo da inflação. Meter-lhe a supervisão é um primeiro tiro no porta--aviões para que o BCE venha a desempenhar as funções próprias de um banco central normal, e já não as funções de um banco central amputado. E se lhe conseguimos meter agora esta competência, então a prazo conseguiremos meter-lhe outras.
Se o BCE tivesse mais poderes não tínhamos chegado à situação actual?
Em parte chegámos aqui porque o BCE não pode intervir e os pilares constitucionais da zona euro não estão devidamente construídos, criámos uma moeda comum mas não constituímos as instituições respectivas. Como a coisa foi correndo bem, isto foi andando.
Portugal é criticado por excesso de burocracia e quando se chega a Bruxelas a pressão legislativa é ainda maior. Tem de ser assim?
No caso português existe sem dúvida um caso de inflação legislativa, mas o que se passa hoje é que vivemos numa sociedade complexa, altamente dirigida, com enorme intervenção dos poderes públicos e parapúblicos, reguladores, etc. Mas a inflação legislativa não é uma doença, é uma mutação genética: já não podemos viver de outra maneira.
É impossível partir de uma espécie de grau zero?
Penso que sim. Há uma coisa que é possível: fazer uma constituição muito mais simples do que a que temos hoje, mais escorreita. Só não sei se isso resolveria muitos problemas, se mudava alguma realidade… Não é possível ter não sei quantas coisas da Segurança Social, não sei quantas autarquias e tudo o resto e deixar de ter um ordenamento legal complexo. Mas não estou de acordo que a Europa produza muitas leis e seja muito burocrática. A Câmara de Paris tem tantos funcionários como a Comissão Europeia, que trabalha de uma forma substantiva para 500 milhões de habitantes, e não para 3 ou 4 milhões. É preciso termos noção destas realidades. Há aqui 23 línguas e tem de haver uma burocracia associada a isso, porque os cidadãos não podem ter uma participação verdadeira se não falarem na sua língua.
Para que serve a Constituição?
Enquanto conceito tem determinadas funções. Se a portuguesa é aquilo que nós julgamos que é, isso é outra questão.
O que pergunto é se é garantia de alguma coisa ou se é só um documento. Hoje muitos não se vêem protegidos pela Constituição...
O Estado não pode garantir uma casa a todas as pessoas, basta olhar para a Suécia e para o Burundi. Mas há um problema de base do direito constitucional e da teoria da constituição, que deve ser dinâmica. Os direitos sociais são direitos sob reserva de possível, não podem estar garantidos a priori.
Mas cabe ao Estado criar condições para que essas coisas sejam possíveis, ou não?
Mas como é que o Estado cria condições que não pode criar? Essa é que é a questão. Um estado não é todo-poderoso!
Mas pode tomar medidas activas de emprego, favorecer o investimento... Tal como a Europa. Faz isso?
Essa é outra questão. No fundo temos duas retóricas políticas diferentes, a propósito do direito ao emprego. Há aqueles que entendem que para ter mais emprego a economia tem de ser mais competitiva - e portanto é preciso fazer uma espécie de sangria para isso acontecer a médio prazo - e os que entendem que o Estado deve gastar muito mais dinheiro agora justamente para garantir o curto prazo.
Com qual das duas concorda?
Julgo que temos de pensar mais a médio prazo que a curto prazo. Acho que é indispensável fazer a sangria, o que não quer dizer que concorde com tudo o que até agora temos feito, em termos europeus em particular. O que acho é que os problemas portugueses, hoje, como aliás os da maioria dos estados europeu, não se resolvem sem a União Europeia. O nosso grau de integração já é tal que não é possível de outra forma. Mais, seria assim mesmo que não estivéssemos na União Europeia, porque no fundo a influência deste espaço sobre nós seria tal que é preferível estarmos na UE. Ao menos sabemos o que se está a passar e mesmo que a nossa influência seja diminuta, mesmo que as medidas sejam adversas, estamos a participar no processo de decisão.
Porque considera que o problema é sobretudo europeu?
Só quando a Europa, nomeadamente a partir da moeda única, for capaz de fazer uma mutualização da dívida e uma integração bastante maior, operando algumas transferências e tendo políticas activas de emprego - o que passa por um maior gasto dos estados que têm superavit ou que têm superavit comercial externo, como a Alemanha ou a Finlândia -, é que as economias mais frágeis ganharão algum dinamismo. É preciso fazer, num certo sentido, uma política contracíclica.
E a disciplina orçamental?
Estou totalmente de acordo que no caso português temos de fazer um esforço de disciplina. Agora se tem de ter estes pressupostos ou não, isso é outra coisa. Por exemplo, penso que a carga fiscal é excessiva. A partir do momento em que aumentamos impostos e a receita cai, não vale a pena aumentar mais impostos. Isto é de tal maneira evidente que não compreendo como é que não é tido em conta. Tem-se falado muito na subida do salário mínimo... A mim parece-me mais importante aliviar a carga fiscal. Se se aumenta o rendimento disponível, não se põem custos sobre as empresas maiores.
A culpa é da Europa?
O que eu acho é que a Europa devia estar a impor esta disciplina. Por um lado, porque mesmo sem Europa teríamos de estar a fazer isto. Mas é útil para nós que seja a Europa a impor, porque é mais fácil fazer isto como uma questão externa que como autodisciplina.
Mas nem todas as decisões são responsabilidade da Comissão Europeia ou da troika...
Há aqui competências dos dois lados. Há pouco em que Portugal possa fazer alguma coisa, mas devia fazê-lo muito activamente. Por exemplo, tentar mudar algumas políticas europeias, porque seria muito mais fácil aceitar esta disciplina se estivessemos a caminhar para uma mutualização das dívidas, para uma união bancária (que ainda está a dar os primeiros passos e só ao nível da supervisão). Bastava que houvesse uma política nacional em que os estados fossem mais activos, em que houvesse maior entrosamento… Até poderíamos viver em austeridade, mas pelo menos seria uma austeridade esperançosa.
É difícil ter esperança quando se falham todas as previsões?
Não sou tão crítico do nosso plano de austeridade, embora ache, como já disse, que os impostos poderiam ser mais baixos - e poderia falar sobre um milhar de coisas que podiam ser afinadas. Já temos experiência acumulada deste processo de ajustamento e portanto temos alguma informação para perceber que certas coisas são contraproducentes. Mas não é isso que vai resolver o nosso problema, o que resolvia o nosso problema era a solução europeia noutro plano. Porque dava um sentido à austeridade, que não é um caminho individual, que não sabemos exactamente o que é. Mas em termos internos temos de nos preparar para um choque competitivo e temos de estar a sofrer esta sangria, que seria muito mais suportável e teria outros resultados se houvesse uma política europeia destinada a fomentar o emprego nestes países.
A Europa está refém de si própria?
Sim. Há para começar um problema cultural. A Europa funde culturas muito diferentes e não era de esperar que o processo de integração fortíssimo que o continente europeu está a sofrer fosse feito sem dificuldades. A cultura dos países do Norte não é, de facto, a cultura dos países do Sul. E a cultura dos países do Leste não é a cultura dos países do Ocidente. Mas vistos de fora somos mais parecidos uns com os outros do que julgamos.
Mas o que pergunto é se a Europa não está demasiado voltada para si própria.
Para ser diferente era preciso que houvesse dinâmicas menos nacionais e uma política mais europeia. Paradoxalmente, o Tratado de Lisboa - e essa é outra questão que estamos a discutir nos assuntos constitucionais - deveria europeizar a Europa e acabou por intergovernamentalizá-la. Ao dar mais poder ao Conselho prevalecem as vozes nacionais. Há uma visão da Alemanha do que deve ser o crescimento económico e do que deve ser a saúde financeira, que é muito marcada pela história alemã. A Alemanha acha, convictamente e não maquiavelicamente, ao contrário do que muita gente julga (o que não quer dizer que os efeitos não sejam altamente perversos, porque são), que se todos os países fizerem o mesmo que ela fez vão chegar aos mesmos resultados. Acha que está a fazer um favor aos outros povos, tem uma visão paternalista e totalmente errada, porque a mesma receita não resulta para culturas diferentes - portanto, não vai resultar.
Se não vai resultar, o que é que nos espera?
...e não é só isso, há um preço a pagar para liderar. Se se quer liderar tem de se perder alguma coisa, e a Alemanha nem sempre quer pagar esse preço.
Faz sentido a Europa estar suspensa até às eleições alemãs?
A Europa fica suspensa em todas as eleições, não é só nas eleições alemãs. E isto é impensável. Acontece que não temos estruturas europeias que aguentem - porque é que as eleições regionais, ou nacionais, têm repercussões desmedidas sobre a União? Porque as entidades em Bruxelas não têm o poder suficiente para serem elas próprias a receber essas tensões. Por isso temos de reforçar os poderes de Bruxelas, ao contrário do que muita gente imagina - do Parlamento, do Conselho e da Comissão. Os problemas são postos à escala europeia, mas neste momento estão a ser resolvidos por eleições à escala nacional. Um dos grandes problemas das democracias actuais, gravíssimo, é o desajustamento entre os ciclos eleitoriais e os ciclos de decisão. Votamos num círculo, que é Portugal, mas as decisões são tomadas fora. O mesmo acontece com os outros países. Usando uma expressão que usou, a Europa fica refém de um processo eleitoral mínimo, que pode ser um referendo na Irlanda ou na Dinamarca ou as eleições na Grécia ou na Finlândia. Se fossem só as eleições na Alemanha que suspendessem a Europa... mas temos isto a toda a hora.
Como ultrapassar esta questão?
Com mais federalismo, mais integração a nível europeu para que estes problemas passem a ser drenados e absorvidos pela esfera europeia. As pessoas precisam de perceber que quando estão a votar nas eleições europeias é que estão a resolver os seus problemas.
É isso que nos mostra aquilo que se está a passar com Chipre?
A questão de Chipre é muito grave e revela que não aprendemos nada com a crise das dívidas sobreanas. Não ponho em causa que há dinheiro russo no país e que têm de ser os cipriotas a pagar o seu resgate, em primeira linha, como acontece com os portugueses e os gregos. Mas há duas coisas que qualquer aprendiz de política era capaz de perceber e o Eurogrupo não percebeu: o perigo de contágio, a partir do momento em que se viola uma garantia, que até pode ser considerada injusta. Em segundo lugar, a vertente política, a humilhação de uma decisão tomada de madrugada, quando um país não tem capacidade de reacção. Esta questão é estritamente política e altamente perturbadora e vai alimentar quem entende que a UE está a instaurar uma tutela internacional.
E está?
Há uma questão de tutela, de protectorado, que não quer dizer que as pessoas estão protegidas, mas sim limitadas na sua capacidade de acção. E a tutoria não pode ter este sentido. A soberania hoje não é igual à de ontem. A perda de fronteiras, a internet, são factores de permeabilidade, de porosidade da soberania. O que se passa em Chipre tem consequências na Europa.
A Europa ponderou todos os factores de risco da sua decisão?
O aspecto geopolítico é muito importante e é preciso ver porque é que a Rússia está em Chipre. Os dois países têm uma ligação histórica e a Rússia está a fazer isto porque perdeu as suas bases no Médio Oriente e a Turquia é uma potência emergente. Estamos a falar de geopolítica pura. O que é estranho é que o Eurogrupo e a UE tomem decisões sem perceber isto. A Alemanha depende da Rússia do ponto de vista energético e a Rússia pode ter respostas firmes, tem meios para isso. Depois é entrar num processo de escalada em que cada um retalia contra o outro. Um gesto deste teor, seguido por outras potências, assustadas com a questão dos depósitos, pode ter efeitos sérios no quadro das relações de paridade do euro. Preocupa-me que tomemos decisões deste alcance e profundidade com base em regras de mercado. Não podemos continuar a responder à crise apenas com base em parâmetros económicos e financeiros, tem de haver outras considerações em jogo. A Grécia chegou a ponderar sair do euro, por isso tem este tratamento melhor do que seria de esperar. E não queria sair porque era melhor, mas porque não tinha condições políticas para prosseguir.
Volto a perguntar: o que podemos esperar da Europa?
Não se espera nada de bom. A médio prazo isto vai prejudicar toda a gente, mesmo aqueles que agora querem tomar estas medidas.
Que garantia existe de que o mesmo não possa vir a suceder em Portugal?
Garantia, garantia não há nenhuma. Em princípio pensamos que não vai acontecer, mas não posso garantir a 100%. Até há uns dias diria que não, agora... Mas a questão de Chipre está mais próxima da situação irlandesa, o problema em Portugal não tem a ver com os bancos.
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