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OPINIÃO
2020, o ano da reconquista do espaço público urbano
Vivemos tempos de mudança de paradigma: da “rua da
estrada” para a “rua das pessoas”. A mudança não vai ser nem fácil, nem rápida,
nem sem conflitos. Se a evidência empírica científica não tem sido (ainda)
suficiente para mudar o paradigma da mobilidade automóvel, esperemos que a
covid-19 seja.
Patrícia Melo
4 de Agosto de
2020, 0:40
https://www.publico.pt/2020/08/04/opiniao/opiniao/2020-ano-reconquista-espaco-publico-urbano-1926796
A afirmação do
automóvel ao longo do século XX alterou a organização, bem como a percepção, do
espaço público urbano e dos seus usos, guardando para si o papel de ator
principal. A crescente dominância do automóvel levou também a que a rua fosse
perdendo a sua função de socialização, tornando-se cada vez mais num lugar cuja
função principal é servir o fluxo de tráfego motorizado. O paradigma da “rua da
estrada” que caracteriza as nossas áreas urbanas é uma herança de várias
décadas de afirmação de uma cultura rodoviária promovida por gerações de arquitetos
urbanistas, engenheiros rodoviários e decisores políticos, que favoreceu as
estradas e o automóvel como soluções para o crescimento urbano, em detrimento
do transporte público, o andar a pé e de bicicleta. Uma herança que nada tem de
natural nem de inevitável. Para se compreender a afirmação do sistema
sociotécnico da automobilidade em Portugal durante o século XX, recomendo
fortemente a leitura dos trabalhos da investigadora Maria Luísa Sousa,
nomeadamente sobre a forma como o “lobby” automóvel influenciou a reformulação
da rua e das estradas do ponto de vista do automobilista tanto através da
regulação da circulação como do planeamento e construção da infraestrutura
rodoviária.
A maioria do
espaço da via pública nas cidades está alocado ao automóvel sob a forma de
estradas e estacionamento, ficando os restos deste espaço para os outros
utilizadores da via pública, nomeadamente os peões, que são nada menos que a
maioria. A supremacia do automóvel exigiu como condição necessária de
auto-reprodução um exuberante investimento em infraestrutura rodoviária, que
por sua vez contribuiu para o acentuar de um modelo de ordenamento do
território altamente desequilibrado e ineficiente, caracterizado por uma
urbanização dispersa e suburbanização. No caso de Lisboa e do Porto, o
investigador Miguel Padeiro estimou que as duas áreas metropolitanas estão
entre os aglomerados urbanos europeus mais bem dotados de infraestrutura
rodoviária – com um possível sobredimensionamento de 35-42% –, o que agrava a
dependência do carro à escala metropolitana.
O excesso de
oferta de espaço público para o automóvel – em estradas e estacionamento – é
agravado pela existência de um sistema de incentivos financeiros à posse e uso
do mesmo, entre as quais o preço reduzido, quando não mesmo gratuito, do
estacionamento na via pública. A evidência científica indica que o preço do
estacionamento é um dos fatores que mais influencia a posse e uso do carro
(sendo por isso o seu aumento uma das medidas de mobilidade menos populares e
mais caras em votos para os decisores políticos). A este respeito, os dados do
Inquérito à Mobilidade nas Áreas Metropolitanas do Porto e de Lisboa, realizado
pelo INE em 2017, ilustram bem a forte subsidiação da via pública para
estacionamento de automóveis privados. No caso da Área Metropolitana de Lisboa
(AML), mais de 60% dos veículos ligeiros de passageiros têm estacionamento
gratuito na rua na área de residência, sendo o valor de 41% para o concelho de
Lisboa. É importante notar que estes valores não incluem os dísticos de
residente, cujo preço é também fortemente subsidiado (e.g. em Lisboa, o
primeiro veículo paga apenas uma taxa administrativa de 12 euros/ano). Se
considerarmos o estacionamento no local de trabalho, verificamos mais uma vez
um forte incentivo ao uso do carro: na AML, quase 90% da população empregada
que se desloca de carro para o local de trabalho tem estacionamento gratuito no
espaço público (47%) ou no local de trabalho (41%). Os valores para Lisboa
relativamente ao estacionamento gratuito no local de trabalho são 27% em espaço
público e 50% no local de trabalho.
Não é, portanto,
surpresa que o automóvel seja o principal meio de transporte utilizado,
representando 59% das deslocações na AML. Embora o peso do carro seja menor em
Lisboa cidade, com 47% de todas as deslocações realizadas, estamos ainda assim
perante um valor muito acima do que seria desejável, especialmente se
considerarmos que 68% das deslocações são inferiores a 5 km, podendo uma boa
parte delas ser transferida para meios de transporte mais eficientes como seja
a bicicleta. Reconhecer que a bicicleta é uma opção viável em relação ao carro
porque é mais eficiente em termos de tempo de viagem, de custo e de utilização
do espaço público é importante porque evita que o discurso de promoção da
mobilidade ciclável se foque “apenas” na questão da compensação das
externalidades negativas do carro. A mobilidade ciclável é desejável, não só
pelos seus benefícios ambientais e de saúde, mas também porque é o meio de
transporte mais eficiente para uma grande parte das deslocações urbanas. Como
tal, deve ser considerada pelos planeadores urbanos e de transportes como uma
alternativa necessária, acabando com o enviesamento que existiu durante décadas
nas metodologias de apoio à decisão de investimento utilizadas por estes profissionais.
A pandemia da
covid-19 provocou fortes mudanças nos padrões de mobilidade urbana. Durante a
fase inicial de confinamento e teletrabalho generalizados, a mobilidade foi
fortemente reduzida, com implicações muito visíveis nas emissões de poluentes.
A atual fase de pós-confinamento com a necessidade de distanciamento social
impõe fortes limitações ao uso do transporte público, enquanto ao mesmo tempo
os níveis de uso do carro aumentam significativamente. As medidas de
distanciamento social e a percepção de um maior risco de contágio contribuiem
para diminuir a atratividade do transporte público, o que poderá levar ao
aumento do uso do carro. O desafio com que as autoridades locais e nacionais se
deparam é por isso duplo. Por um lado, é preciso evitar que as pessoas que se
afastam dos transportes públicos usem o carro, optando antes por andar a pé e
de bicicleta, o que implica dar mais espaço a estes utilizadores. Por outro
lado, pretende-se que a reformulação do espaço público seja também uma forma de
promover a transferência de viagens do carro para modos mais eficientes e mais
sustentáveis.
A Câmara
Municipal de Lisboa (CML) tem vindo a implementar várias medidas de
transformação do espaço público através dos programas “A Rua é Sua”, “Lisboa
Ciclável” e a Zona de Emissões Reduzidas (ZER) Avenidas Baixa Chiado, com vista
ao aumento do espaço pedonal, o aumento da rede ciclável, e a redução do
tráfego automóvel. Estas medidas são prova de que vivemos tempos de mudança de
paradigma: da “rua da estrada” para a “rua das pessoas”. A mudança não vai ser
nem fácil, nem rápida, nem sem conflitos. Perdemos tempo demais a tomar
decisões erradas, mesmo quando já se sabia melhor. Se a evidência empírica
científica não tem sido (ainda) suficiente para mudar o paradigma da mobilidade
automóvel, esperemos que a covid-19 seja.
A autora escreve
segundo o novo acordo ortográfico
Desconfinar o urbanismo
Tiago Mota Saraiva
OPINIÃO
CORONAVÍRUS
https://www.publico.pt/2020/06/04/opiniao/opiniao/desconfinar-urbanismo-1919291
Passando os olhos pelas ambiciosas iniciativas
urbanísticas de Milão, Vilnius, Barcelona, Paris ou São Francisco, percebe-se
quão irrelevantes são as respostas urbanísticas apresentadas para Lisboa e para
o Porto.
Milão foi uma das
cidades europeias mais afectadas pela pandemia, com consequências dantescas
para a forma como as pessoas viveram os últimos meses. Ainda assim, a 24 de
Abril, o município colocou a discussão pública um robusto e radical plano de
desconfinamento urbanístico pedindo aos cidadãos que se mobilizassem na
discussão e acrescentassem propostas.
Em Portugal, a
Câmara Municipal do Porto apresentou a 29 de Maio um plano que anuncia para
meados de Junho o encerramento ao automóvel de catorze ruas da Baixa e do Cento
Histórico ao fim-de-semana e, até ao final do ano, a construção de mais 35 kms
de rede de ciclovias ou percursos cicláveis, sem especificar onde. Em Lisboa,
iniciativas como a Capital Verde ou a ZER (Zona de Emissões Reduzidas), que
deveriam ter ganho um novo impulso, parecem suspensas. A estratégia do
município anunciada a 20 de Maio contempla a criação de um grupo de trabalho
que agilize “intervenções no espaço público que facilitem a mobilidade
pedonal”, a autorização para o aumento das áreas de esplanada, o aumento da
rede de ciclovias e o alargamento de passeios.
Posteriormente, a
3 de Junho (Dia Mundial da Bicicleta), Fernando Medina apresentou uma
estratégia um pouco mais ambiciosa do ponto de vista da utilização da
bicicleta, com algumas intenções mais interessantes do ponto de vista
urbanístico. Para complementar, anunciou a criação de um fundo público para
aquisição de bicicletas próprias – abdicando de lançar uma importante medida de
economia circular que pudesse passar pela reparação de bicicletas antigas que
tantos e tantas têm em casa e pela criação de emprego para as boas dezenas de
mecânicos despedidos pelas multinacionais de partilha de bicicletas que
desapareceram da cidade.
Não obstante, à
data em que escrevo e num momento em que se pede às pessoas que recuperem as
suas vidas diárias na medida do possível e do que é seguro, ainda nada foi
implementado e tudo parece muito “poucachinho”, conforme expressão celebrizada
por um antigo presidente da Câmara Municipal de Lisboa.
É importante
notar que as respostas urbanísticas que se derem a esta realidade
pós-quarentena serão decisivas para a forma que as cidades irão tomar nos
próximos anos. Entenda-se, de uma vez por todas, que o problema da habitação ou
das inúmeras desigualdades e exclusões não se resolvem, de uma forma
estrutural, com regulamentos ou medidas paliativas, por maior robustez
financeira que aparentem. É necessário desenhar outras formas de construção de
cidade, mais heterogéneas e com maior envolvimento das pessoas.
Passando os olhos
pelas ambiciosas iniciativas urbanísticas de Milão, Vilnius, Barcelona, Paris
ou São Francisco, percebe-se quão irrelevantes são as respostas urbanísticas
apresentadas para Lisboa e para o Porto. Não obstante algumas excepções, isso
também se deve a uma administração local demasiadamente hierarquizada,
burocratizada e pouco aberta a estímulos externos. Isso é ainda mais agravado
nos sectores no qual se decide as formas de produção de cidade particularmente
vocacionados para receber, ouvir e dar cumprimento às ambições de fundos
imobiliários, sociedades de advogados ou grandes promotores imobiliários
menosprezando e atrasando tudo o que diga respeito a iniciativas de cidadãos,
associações de moradores ou instituições de defesa do interesse público e bem
comum.
Comecemos pelo
transporte público. Sim, o transporte público também constrói cidade, na medida
em que garante o direito à cidade de todos e todas quando, inevitavelmente, se
aumentam as restrições à circulação do automóvel. Importa aumentar as condições
de segurança de quem é transportado. A equação é simples: mais unidades, maior
circulação, menos transportados por unidade e o estabelecimento de restrições
de distanciamento físico determinadas por um trabalhador – nem motorista nem
polícia – exclusivamente dedicado ao tema da segurança.
Desconfinar o
urbanismo parece-me fundamental para que se cumpram outras abordagens ao
território. Da criação de novas formas de construção de cidade dependerá a
nossa capacidade de resposta aos problemas da saúde, da educação e da habitação
que temos pela frente
Cumprido o
primeiro garante do direito à cidade, podemos seguir para acções rápidas e por
proposta dos cidadãos, a partir de tantos exemplos que temos pelo mundo fora de
placemaking e urbanismo táctico aumentando os passeios e áreas de esplanada, criando
novas ciclovias ou reduzindo a velocidade do trânsito automóvel. É certo que
estas acções devem ser robustecidas a médio e longo prazo por um plano de ruas
lentas, pela estruturação de uma rede de ciclovias úteis ao fruir da cidade
abarcando, designadamente, os circuitos casa-escola-trabalho e pelo aumento da
acessibilidade pedonal geral. Na prática, o urbanismo e o planeamento devem
olhar e aprender a partir do que se experimentou no terreno.
Por fim, é cada
vez mais importante desenhar a cidade a partir de quem a vive. É fundamental
que cada cidadão, residente ou trabalhador, sinta que num raio de circulação
pedonal relativamente curto consegue cumprir todas as suas necessidades básicas
– sobre este assunto, extensamente debatido fora de Portugal, aconselho a
leitura de Doughnut Economics, de Kate Raworth, e a proposta da presidente de
Câmara de Paris, Anne Hidalgo, “15-minute city”.
Concluo com um ponto
que tenho vindo a defender. O futuro das nossas cidades dependerá muito do que
fizermos nestes próximos meses. Desconfinar o urbanismo parece-me fundamental
para que se cumpram outras abordagens ao território identificando novos e mais
representativos actores no terreno. Da criação de novas formas de construção de
cidade – mais cooperativas do que competitivas, mais destinadas à produção do
bem público e comum do que de proveitos privados – dependerá a nossa capacidade
de resposta aos problemas da saúde, da educação e da habitação que temos pela
frente.
Arquitecto
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