sexta-feira, 17 de julho de 2020

Tudo bons rapazes / BES sugou mais de 5% do PIB: os portugueses vivem abaixo das suas possibilidades .


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OPINIÃO
BES sugou mais de 5% do PIB: os portugueses vivem abaixo das suas possibilidades

Se os reguladores, o sistema judicial e os responsáveis políticos fizessem o seu trabalho, estes buracos negros aspiradores de valor não apareciam por aí como cogumelos.

SUSANA PERALTA
17 de Julho de 2020, 0:10

Para quem, como eu, gosta de seguir as novelas da corrupção e da fraude no nosso jardim à beira mar plantado, os últimas tempos têm sido animados. Na semana passada, tivemos a suspensão de António Mexia e Manso Neto da EDP e o juiz Rui Rangel voltou à ribalta quando o Supremo Tribunal de Justiça confirmou a decisão da sua expulsão, com descrições da vida de luxo do juiz impagáveis com um salário de magistrado. A cereja em cima do bolo chegou esta semana, com a acusação de Ricardo Salgado e de outras pessoas do universo dos negócios da família Espírito Santo, culminando uma investigação de seis anos ao colapso do grupo.

Segundo o PÚBLICO, os procuradores responsáveis pela investigação contabilizaram 11,8 mil milhões de euros de “produto de crimes e prejuízos com eles relacionados”. Vamos então fazer umas contas. O produto interno bruto português foi em 2019 pouco mais de 212 mil milhões de euros. Logo, o valor da fraude do caso GES/BES representa 5,6% do PIB. É muito dinheiro para se evaporar assim. Mas será que o dinheiro se evapora mesmo? A Transparência Internacional publicou a 30 de abril de 2019 um relatório cujo título dá mesmo a ideia de que o dinheiro dos grandes processos de corrupção desaparece no vazio: Into the Void: the EU’s strugle to recover the proceeds of grand corruption’. Este relatório estima que a atividade criminal na União Europeia representava em 2010 1% do PIB. A fraude do BES é um buraco cinco vezes superior na economia nacional. É colossal.

Uma parte destes milhares de milhões desapareceu nos investimentos ruinosos do Grupo Espírito Santo. Mas a vida de luxo de alguns responsáveis do grupo mostra que há uma parte do dinheiro que se pode recuperar. Serviria para compensar quem perdeu com isto, como os lesados do BES, que confiaram as suas poupanças ao banco desconhecendo que estas eram (alegadamente) usadas para financiar os negócios insolventes do Grupo Espírito Santo. E, já agora, os contribuintes, porque os despojos desta fraude já nos custaram mais de 5 mil milhões.

O que falta, um pouco por todo o lado, é melhorar os procedimentos para recuperar os ativos perdidos em fraudes e atividades ilícitas. Outro relatório com título sugestivo é o Does crime still pay? Criminal asset recovery in the EU, da Europol, que utiliza estatísticas do período entre 2010 e 2014 (não encontrei mais recentes) para afirmar que na União Europeia apenas 2,2% dos ativos apropriados ilegalmente são arrestados e ainda menos (1,1%) são recuperados, ou seja, confiscados por ordem judicial a quem se apropriou deles ilegitimamente. Não é possível comparar estes valores entre países, apesar de existir uma diretiva europeia desde 2014 que exige que os estados recolham “um conjunto mínimo de dados estatísticos apropriados” sobre recuperação de ativos obtidos ilegalmente. A falta de recuperação de ativos tem várias desvantagens. O crime torna-se um bom negócio para quem o pratica (daí o título da Europol). Não é possível compensar as vítimas. E o pior: com dinheiro, vem poder, e criminosos poderosos conseguem distorcer as regras a seu favor.

Em Portugal, a recuperação de ativos continua a ser uma miragem. Desde 2012 que existe um Gabinete de Recuperação de Ativos, que funciona junto da Polícia Judiciária. Este gabinete age quando é solicitado pelos magistrados do Ministério Público, só que o coordenador do gabinete avisou em 2019 que não era suficientemente solicitado pelos magistrados. Os pedidos de intervenção diminuíram de 135 em 2017 para 17 em 2018, dos quais apenas 7 tiveram origem no Departamento Central de Investigação e Ação Penal. A Procuradora Geral da República percebe a importância disto. Lucília Gago explicou em dezembro de 2019 à Lusa que a responsabilização patrimonial – ou seja, o confisco dos bens – dos agentes do crime económico e financeiro tem ser uma prioridade, a par da responsabilização criminal, para o crime não compensar. E anunciou que em março de 2020 ia ser lançado um programa de formação de magistrados do Ministério Público para os capacitar nesta tarefa. Lucília Gago dizia que a criminalidade económico-financeira é complexa e exige respostas qualificadas, dada a sofisticação crescente de quem o pratica. O mais provável, portanto, é que esta inoperância se deva a uma gigantesca falta de meios e a falta de meios é sempre uma escolha política.

No caso do BES, há apenas 120 milhões de bens arrestados. Enquanto o processo se arrestar na justiça, estes ativos não serão confiscados. De qualquer forma, representam uma pequena parte dos 12 mil milhões que se sumiram. Tem de haver maneira de fazer melhor. Como uma amiga lembrava ontem no Facebook, no caso Madoff, outro escândalo financeiro tristemente famoso, já foram recuperados mais de 14 mil milhões de dólares, e até há um site, “The Madoff Recovery Initiative”, onde se pode consultar o avanço da coisa.

Portanto, sejamos claros. Os portugueses e as portuguesas não vivem acima das suas possibilidades. Vivem abaixo, muito abaixo. Se os reguladores, o sistema judicial e os responsáveis políticos fizessem o seu trabalho, estes buracos negros aspiradores de valor, que sai diretamente do nosso bolso para o dos donos disto tudo, não apareciam por aí como cogumelos


OPINIÃO
Tudo bons rapazes

há provas de Salgado ter uma espécie de rede mafiosa, com contabilidades paralelas. Mas, a nossa elite é impoluta, limpa como água acabadinha de sair da nascente. Que chatice ter caído lá esta gota de óleo, conspurcou aquilo tudo.

PEDRO FILIPE SOARES
17 de Julho de 2020, 0:25

Há pessoas com azar. É essa a única conclusão, segundo Rui Rio. Depois do Ministério Público considerar que a campanha presidencial de Cavaco Silva foi financiada pelo tal “saco azul” do Grupo Espírito Santo (GES), o atual líder do PSD diz que não acredita em tal coisa. Pouca sorte, deve ter sido.

As provas estão aí para uma análise imparcial. Um total de 253.360€ foram entregues por administradores do BES e do GES à campanha presidencial de Cavaco Silva. Cada donativo individual não ultrapassou o máximo permitido por lei e o valor total representou metade do que tinha sido orçamentado para a campanha. Os beneméritos receberam depois o dinheiro de volta através da ES Enterprises, uma entidade controlada pelo GES e que é considerado o tal “saco azul” do grupo. É este o esquema para contornar a lei e colocar uma empresa (o GES) a financiar uma campanha eleitoral.

Rui Rio acha impensável que Cavaco Silva tenha sido ilegalmente financiado. Já Cavaco Silva diz que estava acima dessas coisas. Explicou no seu livro Quinta-feira e outros dias que foram Eduardo Catroga e Ricardo Baião Horta quem se encarregou do financiamento da sua campanha. “Foi um apoio que muito valorizei, porque, pessoalmente, sempre tive uma forte aversão a pedir dinheiro para campanhas eleitorais. Nunca o fiz ao longo da minha vida política”, afirma. Que chatice ser conspurcado agora com estas coisas.

Que culpa teve Cavaco Silva de Ricardo Salgado o financiar? Logo a ele que não queria saber dessas coisas mundanas. Imagino como deve invejar os outros candidatos que não tiveram dinheiros ilícitos. A triste reputação que vai agora perseguir Cavaco Silva até traz lágrimas aos olhos.

Se Cavaco Silva soubesse nunca teria aceite aquele jantar em casa de Ricardo Salgado, em 2004. Esse jantar ao qual foi com a sua mulher, onde partilhou o momento com Marcelo Rebelo de Sousa e o então primeiro-ministro Durão Barroso, em que foi pressionado por Ricardo Salgado a candidatar-se às eleições presidenciais, foi o momento. Deve ter sido mesmo o tal momento do qual se diz que não há refeições grátis. Como deve ser infeliz ter-se a retidão de Cavaco Silva e uma vida tão madrasta que lhe prega estas partidas.

Sim, porque antigamente é que era bom. Antes da lei proibir que empresas financiassem partidos nada isto era incorreto, quanto mais ilegal. Ah, os bons velhos tempos em que o BES e o GES podiam financiar os partidos do regime sem esta publicidade negativa, sem este mal estar. Depois disso, tiveram de surgir os esquemas, porque os financiamentos eram mais difíceis de desaparecer. Mas, Cavaco Silva não sabia de nada. Rui Rio, que anda nisto há tantos anos, acredita nisso, piamente. Aliás, se ainda houvesse BES nada disto era um problema, a Terra giraria à volta do Sol normalmente.

Nem tudo era fácil antes da queda do BES, percebe-se. Como foi difícil ao CDS escapar do financiamento ilegal do caso Portucale, nem queiram saber. Ter um milhão de euros a entrar pelas contas de um partido adentro não é coisa fácil. Gerir tamanha generosidade tira anos de vida, de certeza.

Mesmo os esquemas fiscais criados para legalizar rendimentos não deixaram as coisas resolvidas. As amnistias fiscais (os Regime Especial de Regularização Tributária - RERT) foram boas para muito do dinheiro que estava escondido em offshore ou para normalizar fraudes fiscais, iremos ter a confirmação disso quando for provado que muitos dos pagamentos do “saco azul” do GES passaram por esta lavagem. Mas, nem tudo ficou resolvido. Veja-se agora a cruz que carrega Miguel Frasquilho, que tem uma declaração das finanças a dizer que está tudo em ordem, mas o nome nos escaparates com as provas de ter recebido do tal “saco azul”. Que vidas tão difíceis agora que estão manchadas pela sombra de Ricardo Salgado.

Sabe-se que Ricardo Salgado era o Dono Disto Tudo. Até parece que há provas de ele ter uma espécie de rede mafiosa, com contabilidades paralelas. Mas, a nossa elite é impoluta, limpa como água acabadinha de sair da nascente. Que chatice ter caído lá esta gota de óleo, conspurcou aquilo tudo.

Salve-nos a ironia, que quanto ao resto já fomos condenados e cumprimos pena. Só os culpados é que ainda andam à solta.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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