IMAGENS DE OVOODOCORVO
ANÁLISE
Transformar a crise numa oportunidade
Foi precisa uma crise brutal como esta para acordar o
gigante alemão? Se foi, então aplica-se a frase de Rahm Emanuel, o chefe da
campanha de Obama em 2008: “Nunca se deve desperdiçar uma crise para criar uma
oportunidade”.
TERESA DE SOUSA
1 de Julho de
2020, 7:00
1. Não podiam ser
mais elevadas as expectativas que rodeiam a presidência alemã da União
Europeia. Sucedem-se os títulos promissores em quase toda a imprensa europeia.
O rosto da chanceler percorre as páginas dos jornais, as suas palavras são
reproduzidas e interpretadas cuidadosamente. Há seis meses, Angela Merkel era
dada como “politicamente acabada”, apenas a cumprir a fase final do seu quarto
mandato na chancelaria de Berlim, já na sombra da disputa interna do seu
partido em torno da sucessão. A Alemanha mergulhara numa crise existencial
sobre o seu papel na Europa e no mundo, ignorando as vozes que apelavam à sua
responsabilidade de liderar a Europa em tempos cada vez mais controversos. A
presidência alemã não prometia mais do que gerir a continuidade da agenda
europeia, na sombra de uma nova Comissão.
Bastaram seis
meses para mudar quase tudo. Há uma razão de fundo: a pandemia, que provocou a
maior crise humana, económica e social da Europa desde a Segunda Guerra. E há
duas razões adicionais. A primeira tem nome próprio: Angela Merkel. A segunda é
mais difusa, mas está cada vez mais presente na mente dos dirigentes europeus,
incluindo os alemães: num mundo tempestuoso, a Europa está, mais do que nunca,
por sua própria conta.
2. Foi a própria
chanceler que definiu a situação numa breve frase: a crise colocou na União Europeia
“perante o maior teste da sua história”. A grande novidade é que Merkel não se
ficou pelas palavras, precisamente quando o país mais poderoso da Europa se
prepara para e exercer a presidência do Conselho da União nos próximos seis
meses. É uma feliz coincidência que pode ditar em boa media o futuro da Europa.
É verdade que o Tratado de Lisboa retirou às presidências rotativas muita da
sua relevância e entregou a liderança do Conselho Europeu a um presidente
full-time. Mas o “low profile” de Charles Michel, o belga que exerce o cargo, e
o peso da Alemanha em todas e em cada uma das decisões tomadas à mesa dos
líderes altera significativamente esta realidade. Citando um ensaio publicado
pelo Instituto Alemão de Assuntos Internacionais e de Segurança (SWP), a tarefa
da presidência alemã é dupla: “conter a queda brutal provocada pela crise e
aproveitar este momento de integração para revitalizar uma União Europeia que
tem vivido mergulhada em crises sucessivas.”
O que há de novo
no discurso da chanceler é muito simples: a Alemanha não sairá bem desta crise
se os outros, incluindo os países do Sul, saírem mal. A partir daqui, Merkel
recuperou a palavra “solidariedade”, não se limitando à retórica. A 18 de Maio,
surpreendendo tudo e todos, o velho motor franco-alemão, inerte desde que a
chanceler ignorou os ambiciosos desafios europeus que Emmanuel Macron lhe
lançou quando foi eleito, renascia para a vida sob a forma de um fundo de
recuperação no valor de 500 mil milhões de euros de subvenções para ajudar as
economias mais duramente afectadas pela pandemia e com menores recursos para
lhe fazer frente. Na segunda-feira passada, a chanceler e o Presidente
encontraram-se pela primeira vez presencialmente em Medsberg para mais uma
prova de vida. “A dinâmica mudou”, confessava ao Monde um diplomata “frugal”.
De uma assentada, Berlim rasgava dois tabus até então intocáveis: transferir
financiamento directamente dos mais ricos para os mais frágeis; emitir dívida
conjunta para financiar essas transferências. A partir daí, a determinação
alemã de salvar a Europa dos efeitos devastadores da crise transformou o
próprio debate europeu e marcou quase todas as decisões.
3. Merkel
renasceu das cinzas para liderar a Europa num novo esforço para salvar o
projecto europeu, também porque a Alemanha começou a perceber que a tentação de
seguir sozinha o seu caminho não passava de uma ilusão perigosa. E não apenas
porque a pujança da sua economia assente nas exportações depende enormemente do
Mercado Interno e de uma moeda europeia mais fraca do que seria hoje o velho
deutcsh mark, mas porque percebeu que o mundo passou a ser muito mais hostil,
destruindo um a um os pilares em que assentaram os seus sucessivos “milagres”.
Depois da reunificação, alimentou a ilusão de viver num mundo perfeito, no
centro de uma Europa democrática e em paz, “equilibrando as suas relações com o
seu protector americano, o resto da Europa e a Rússia, apostando no comércio
livre e no multilateralismo”, escreve Matthew Karnitschig no site Potilco.eu. A
última década já tinha posto em causa este cenário perfeito em que lhe bastava
exercer o seu poder económico para defender os seus interesses. “Pela primeira
vez, os alemães reconhecem que vivemos num mundo completamente diferente e
estão a tentar encontrar o seu lugar”, diz o historiador Ivan Krastev. “É
Merkel a rever a própria Merkel”.
4. Trump foi um
despertar brutal. A presidência alemã terá duas fases – antes e depois das
eleições americanas de 3 de Novembro. Mas já ninguém tem ilusões de que as
relações transatlânticas podem regressar ao que foram até 2017. Se Biden for
eleito, terá a missão “impossível” de reconstruir a própria América. Washington
continuará a insistir em que os europeus têm de fazer muito mais pela sua
própria segurança.
A pandemia acabou
com qualquer ilusão europeia – e sobretudo alemã – sobre a China, que exercita
sem máscara a sua crescente ambição mundial e que não hesita em impor a lei do
mais forte em Hong-Kong ou se entrega à repressão brutal e desumana da minoria
uigur no oeste do país. O silêncio deixou de ser opção. Merkel adiou sine die
uma cimeira entre a União e a China, que chegou a ser um dos pontos altos
previstos para a sua presidência. A última, há uma semana, correu bastante mal.
Mas, com um novo Presidente na Casa Branca, a proposta de Mike Pompeo aos
europeus para uma estratégia comum destinada a conter os avanços da China nos
mais diferentes domínios, passa a fazer todo o sentido.
“A Europa precisa
de nós, tal como nós precisamos das Europa”, disse a chanceler no Bundestag. “A
forma como a Europa se comportar nesta crise em comparação com as outras
regiões irá determinar a sua prosperidade futura e o seu papel no mundo.”
Foi precisa uma
crise brutal como esta para acordar o gigante alemão? Se foi, então aplica-se a
frase de Rahm Emanuel, o chefe da campanha de Obama em 2008: “Nunca se deve
desperdiçar uma crise para criar uma oportunidade”.
Sem comentários:
Enviar um comentário