quarta-feira, 1 de julho de 2020

Transformar a crise numa oportunidade



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ANÁLISE
Transformar a crise numa oportunidade

Foi precisa uma crise brutal como esta para acordar o gigante alemão? Se foi, então aplica-se a frase de Rahm Emanuel, o chefe da campanha de Obama em 2008: “Nunca se deve desperdiçar uma crise para criar uma oportunidade”.

TERESA DE SOUSA
1 de Julho de 2020, 7:00

1. Não podiam ser mais elevadas as expectativas que rodeiam a presidência alemã da União Europeia. Sucedem-se os títulos promissores em quase toda a imprensa europeia. O rosto da chanceler percorre as páginas dos jornais, as suas palavras são reproduzidas e interpretadas cuidadosamente. Há seis meses, Angela Merkel era dada como “politicamente acabada”, apenas a cumprir a fase final do seu quarto mandato na chancelaria de Berlim, já na sombra da disputa interna do seu partido em torno da sucessão. A Alemanha mergulhara numa crise existencial sobre o seu papel na Europa e no mundo, ignorando as vozes que apelavam à sua responsabilidade de liderar a Europa em tempos cada vez mais controversos. A presidência alemã não prometia mais do que gerir a continuidade da agenda europeia, na sombra de uma nova Comissão.

Bastaram seis meses para mudar quase tudo. Há uma razão de fundo: a pandemia, que provocou a maior crise humana, económica e social da Europa desde a Segunda Guerra. E há duas razões adicionais. A primeira tem nome próprio: Angela Merkel. A segunda é mais difusa, mas está cada vez mais presente na mente dos dirigentes europeus, incluindo os alemães: num mundo tempestuoso, a Europa está, mais do que nunca, por sua própria conta.

2. Foi a própria chanceler que definiu a situação numa breve frase: a crise colocou na União Europeia “perante o maior teste da sua história”. A grande novidade é que Merkel não se ficou pelas palavras, precisamente quando o país mais poderoso da Europa se prepara para e exercer a presidência do Conselho da União nos próximos seis meses. É uma feliz coincidência que pode ditar em boa media o futuro da Europa. É verdade que o Tratado de Lisboa retirou às presidências rotativas muita da sua relevância e entregou a liderança do Conselho Europeu a um presidente full-time. Mas o “low profile” de Charles Michel, o belga que exerce o cargo, e o peso da Alemanha em todas e em cada uma das decisões tomadas à mesa dos líderes altera significativamente esta realidade. Citando um ensaio publicado pelo Instituto Alemão de Assuntos Internacionais e de Segurança (SWP), a tarefa da presidência alemã é dupla: “conter a queda brutal provocada pela crise e aproveitar este momento de integração para revitalizar uma União Europeia que tem vivido mergulhada em crises sucessivas.”

O que há de novo no discurso da chanceler é muito simples: a Alemanha não sairá bem desta crise se os outros, incluindo os países do Sul, saírem mal. A partir daqui, Merkel recuperou a palavra “solidariedade”, não se limitando à retórica. A 18 de Maio, surpreendendo tudo e todos, o velho motor franco-alemão, inerte desde que a chanceler ignorou os ambiciosos desafios europeus que Emmanuel Macron lhe lançou quando foi eleito, renascia para a vida sob a forma de um fundo de recuperação no valor de 500 mil milhões de euros de subvenções para ajudar as economias mais duramente afectadas pela pandemia e com menores recursos para lhe fazer frente. Na segunda-feira passada, a chanceler e o Presidente encontraram-se pela primeira vez presencialmente em Medsberg para mais uma prova de vida. “A dinâmica mudou”, confessava ao Monde um diplomata “frugal”. De uma assentada, Berlim rasgava dois tabus até então intocáveis: transferir financiamento directamente dos mais ricos para os mais frágeis; emitir dívida conjunta para financiar essas transferências. A partir daí, a determinação alemã de salvar a Europa dos efeitos devastadores da crise transformou o próprio debate europeu e marcou quase todas as decisões.

3. Merkel renasceu das cinzas para liderar a Europa num novo esforço para salvar o projecto europeu, também porque a Alemanha começou a perceber que a tentação de seguir sozinha o seu caminho não passava de uma ilusão perigosa. E não apenas porque a pujança da sua economia assente nas exportações depende enormemente do Mercado Interno e de uma moeda europeia mais fraca do que seria hoje o velho deutcsh mark, mas porque percebeu que o mundo passou a ser muito mais hostil, destruindo um a um os pilares em que assentaram os seus sucessivos “milagres”. Depois da reunificação, alimentou a ilusão de viver num mundo perfeito, no centro de uma Europa democrática e em paz, “equilibrando as suas relações com o seu protector americano, o resto da Europa e a Rússia, apostando no comércio livre e no multilateralismo”, escreve Matthew Karnitschig no site Potilco.eu. A última década já tinha posto em causa este cenário perfeito em que lhe bastava exercer o seu poder económico para defender os seus interesses. “Pela primeira vez, os alemães reconhecem que vivemos num mundo completamente diferente e estão a tentar encontrar o seu lugar”, diz o historiador Ivan Krastev. “É Merkel a rever a própria Merkel”.

4. Trump foi um despertar brutal. A presidência alemã terá duas fases – antes e depois das eleições americanas de 3 de Novembro. Mas já ninguém tem ilusões de que as relações transatlânticas podem regressar ao que foram até 2017. Se Biden for eleito, terá a missão “impossível” de reconstruir a própria América. Washington continuará a insistir em que os europeus têm de fazer muito mais pela sua própria segurança.

A pandemia acabou com qualquer ilusão europeia – e sobretudo alemã – sobre a China, que exercita sem máscara a sua crescente ambição mundial e que não hesita em impor a lei do mais forte em Hong-Kong ou se entrega à repressão brutal e desumana da minoria uigur no oeste do país. O silêncio deixou de ser opção. Merkel adiou sine die uma cimeira entre a União e a China, que chegou a ser um dos pontos altos previstos para a sua presidência. A última, há uma semana, correu bastante mal. Mas, com um novo Presidente na Casa Branca, a proposta de Mike Pompeo aos europeus para uma estratégia comum destinada a conter os avanços da China nos mais diferentes domínios, passa a fazer todo o sentido.

“A Europa precisa de nós, tal como nós precisamos das Europa”, disse a chanceler no Bundestag. “A forma como a Europa se comportar nesta crise em comparação com as outras regiões irá determinar a sua prosperidade futura e o seu papel no mundo.”

Foi precisa uma crise brutal como esta para acordar o gigante alemão? Se foi, então aplica-se a frase de Rahm Emanuel, o chefe da campanha de Obama em 2008: “Nunca se deve desperdiçar uma crise para criar uma oportunidade”.

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