sábado, 18 de julho de 2020

O Pargo, o Matateu, a Pititi, a Roadshow, a Alforreca e o Jaguar: os nomes de código dos que receberam dos sacos azuis do GES (afinal eram quatro)

IMAGEM DE OVOODOCORVO

O Pargo, o Matateu, a Pititi, a Roadshow, a Alforreca e o Jaguar: os nomes de código dos que receberam dos sacos azuis do GES (afinal eram quatro)

Ricardo Salgado já foi constituído arguido no caso EDP

15.07.2020 às 07h00
SÍLVIA CANECO

Nas folhas de Excel com os pagamentos feitos a vários funcionários do Grupo Espírito Santo, através da Enterprises e de outras três sociedades ocultas, foram descobertos vários nomes de código e pseudónimos. Isabel Vaz, CEO do grupo Luz Saúde, aparece na lista como "Pititi". Filho de Salgado era o "Labutes", diretor do BES na Madeira era o "Hanham"

Ricardo Salgado terá usado quatro empresas para pagar prémios e contrapartidas a uma série de funcionários e colaboradores do Grupo Espírito Santo, de forma oculta, para que esses rendimentos não fossem detetados em Portugal. A prática, diz o Ministério Público no despacho de acusação do caso BES/GES a que a VISÃO teve acesso, terá permitido “desviar centenas de milhões de euros”, primeiro para a Espírito Santo Enterprises, depois para a Alpha Management (a partir de 2013), e os funcionários do Banco Espírito Santo (BES) que estavam a par destes pagamentos terão usado “linhas de comunicação privadas, via private net, com o propósito de manterem oculta a prática criminosa, reiteradamente desenvolvida ao longo de anos”.

Nem a Enterprises nem a Alpha Management constavam dos organogramas do GES nem dos relatórios apresentados a auditores e a entidades de supervisão. O mesmo acontecia com a Clauster Limited, criada no Belize, e que serviu para pagar a funcionários do GES mais de 4,5 milhões de euros, e com a Balenbrook Investments, criada nas Ilhas Virgens Britânicas e que serviu para remunerar 15 funcionários do BES, entre eles Ricardo Salgado. Os pagamentos feitos entre 2005 e 2014, a pedido de Salgado ou do seu primo José Manuel Espírito Santo, foram agrupados por geografias e ramo de negócio, tendo servido para compensar terceiros, “consultores externos” e funcionários do GES (do BES, do Banque Privée, da ESFIL, da ES Services, da Gestar, da área dos seguros e também da saúde). Segundo o Ministério Público, estes seriam remunerados “de acordo com o grau de importância da sua participação nos atos criminosos” que Salgado definira e ordenara.

Nas folhas de Excel com os pagamentos, os sete procuradores do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) responsáveis pela investigação descobriram que muitos dos beneficiários estavam identificados com pseudónimos e nomes em código. Era o que acontecia, por exemplo, com os dirigentes da Espírito Santo Saúde, que terão recebido bónus e pagamentos mensais através da Enterprises, pelo menos em 2011: Isabel Vaz, presidente da comissão executiva do grupo Luz Saúde, era identificada pelo pseudónimo Pititi; Tomás Fonseca pelo pseudónimo Matateu; João Novais por Castilho e Ivo Antão por Imahala Panzi.

João Alexandre Silva, diretor-geral da sucursal do BES na Madeira, e do Departamento de Banca Internacional do BES, usava contas com os nomes de Pargo, Caramujo e Hanham. Recebeu por esta via 1,1 milhões de euros da Enterprises, 477.500 euros da Alpha e 210 mil euros da Balenbrook. Paulo Jorge, seu adjunto, tinha uma conta na Suíça em nome de Doismiledez e foi aí que recebeu 971 mil euros via Enterprises e 379.900€ via Alpha, entre 2010 e 2014.

João Freixa, antigo administrador do BES, era o Jaguar. Ricardo Bastos Salgado, filho do antigo presidente do Banco Espírito Santo, era o Labutes. O primeiro recebeu mais de meio milhão de euros em prestações mensais, entre 2008 e 2013. O segundo recebeu mais de 500 mil euros euros, através de transferências mensais feitas entre 2008 e 2014.

Teresa Amorim, antiga secretária de Ricardo Salgado, era o Baixinho (recebeu perto de 371 mil euros), Elsa Ramalho, que tratava das relações com os investidores, era o Roadshow (recebeu 294 mil euros da Enterprises). Pedro Cohen Serra, do departamento financeiro do BES, era o Medufushi (recebeu perto de 300 mil euros), Paulo Ferreira era identificado como Rabina (115 mil euros), Guilherme Moraes Sarmento, que trabalhava na direção de desenvolvimento internacional, tinha uma conta em nome de Centurion (81 mil euros) e Pedro Cruchinho, que viria a ser nomeado presidente da Comissão Executiva do Banco Económico em Angola (que derivou do BESA), tinha outra conta em nome de Alforreca (através da qual recebeu 100 mil euros).

José Macedo Pereira, que foi revisor oficial de contas de empresas do BES, era identificado como Poirier (47.500€) e Pedro Amaral como Detox (40.500€). Já Rui Guerra, que substituiu Álvaro Sobrinho na presidência do BESA, recebeu 40 mil euros e estava identificado como Tomix. José Pedro Caldeira da Silva, que foi diretor-executivo do banco, era o Kombucha.

25 arguidos vão a julgamento
Estes são alguns detalhes descobertos pelos procuradores José Ranito, Olga Barata, Antero Taveira, Filipe Marta Costa, Rita Madeira, Ana Catalão e Ana Cristina Pereira ao longo de seis anos de investigação ao colapso do BES e do GES. No despacho final de encerramento de inquérito deste que é apenas o primeiro processo-crime do Universo Espírito Santo – foram extraídas nove certidões para que as investigações prossigam em novos inquéritos -, Ricardo Salgado é o recordista de acusações: o Ministério Público quer que vá a julgamento por 65 crimes. São estes um crime de associação criminosa, doze crimes de corrupção ativa no setor privado, 29 crimes de burla qualificada, cinco de infidelidade, dois de manipulação de mercado, sete de branqueamento, oito de falsificação de documento e um de crime de falsificação de documento qualificado.

Ao todo, o Ministério Público acusou 25 arguidos: 18 pessoas e sete empresas. Alega que as suas condutas causaram um prejuízo superior a 11800 milhões de euros. Além de Salgado, o DCIAP quer levar a julgamento os primos Manuel Fernando Espírito Santo e José Manuel Espírito Santo, administradores, diretores e funcionários ligados ao Departamento Financeiro de Mercados e Estudos (DFME), o antigo administrador financeiro Amílcar Morais Pires, dois diretores da sociedade suíça Eurofin, dois funcionários do BES Madeira, e Francisco Machado da Cruz, o famoso comissaire aux comptes que responsabilizou Salgado por um passivo oculto de 1300 milhões de euros nas contas da ESI.

Num longo comunicado, a defesa de Ricardo Salgado alega que antes da acusação o ex-presidente do BES “foi confrontado com infindáveis juízos de valor vagos e genéricos, em vez de ter sido confrontado com factos concretos, tal como a lei obriga” e que isso impediu que Salgado prestasse declarações “sobre interminável matéria nova” nas vésperas da acusação. O antigo líder do Banco Espírito Santo rejeita ter praticado qualquer crime, diz que a acusação “falsifica” a história do BES e que enquanto esteve à frente do banco não houve lesados. Ricardo Salgado alega ainda que “sempre colocou os interesses do BES acima de quaisquer outros, sempre agiu de boa-fé e na convição de que as opções tomadas serviram o melhor interesse do banco, dos seus clientes, colaboradores e acionistas” e remata: “Por muito que alguns queiram, a história de vida de uma pessoa não se apaga com a facilidade com que se muda uma marca.”

A demora na acusação do GES torna urgente a Estratégia de Combate à Corrupção

Há um problema em relação à demora da Justiça em Portugal que ninguém nega, mas que parece que nenhum responsável político está mesmo empenhado em resolver.

SÃO JOSÉ ALMEIDA
18 de Julho de 2020, 7:10

A acusação do Ministério Público contra Ricardo Salgado e mais 24 arguidos mostra um quadro de horror sobre como as elites políticas e económicas ficaram reféns de uma pessoa sem escrúpulos, que tudo usou e manipulou para criar uma rede de influência que o transformou no verdadeiro merecedor da alcunha com que ficará para a história, a de “Dono Disto Tudo”. Um DDT verdadeiramente tóxico.

Empresas que nasceram para funcionar como sacos azuis, recurso a offshores, pagamentos à família, a empresários e a políticos, criando uma rede de influência com meios ilícitos, promíscuos e corruptos, que serviu a Ricardo Salgado para, a partir de 2008, encapotar a situação de falência do Grupo Espírito Santo e do Banco Espírito Santo, até que, em 2014, o fim do grupo chegou com estrondo e gravíssimas consequências financeiras, económicas e sociais para o país, devido à recusa do então primeiro-ministro, Pedro Passos Coelho, em manter a aura de favorecimento e protecção a Ricardo Salgado.

As consequências danosas deste caso são muito mais vastas do que apenas a perda de bens financeiros por parte dos lesados do BES – o que, por si só, já é uma situação dramática. Ultrapassam também o preço que os contribuintes portugueses ainda hoje pagam para viabilizar uma solução entendida em 2014 como a forma de evitar que a queda do GES/BES provocasse danos irreversíveis no sistema bancário. Um preço que, em 2019, já tinha custado quase cinco mil milhões ao Estado e, em termos globais, incluindo os pequenos accionistas, deverá orçar em 16 mil milhões de euros, segundo Pedro Santos Guerreiro revelou, há um mês, na TVI. Ainda em plena crise pandémica, a polémica voltou a estalar por causa do GES/BES, devido ao facto de o ex-ministro de Estado e das Finanças Mário Centeno ter accionado o empréstimo previsto para 2020, mais 850 milhões de euros, ao Fundo de Resolução, depois de o primeiro-ministro, António Costa, ter garantido no Parlamento que não haveria mais injecções de verbas no Novo Banco por parte do Estado enquanto não estivesse terminada a auditoria àquela instituição bancária.

Ao fim de seis anos de investigações, como noticiou o PÚBLICO, o Ministério Público acusa Ricardo Salgado de dirigir uma organização criminosa, de ser responsável pelo perda de 11.800 milhões de euros e de ter liderado uma série de operações que, alegadamente, se concretizam em 65 crimes: um de associação criminosa, 30 de burla qualificada; 12 de corrupção activa; nove de falsificação de documento; dois de manipulação de mercado; quatro de infidelidade; e sete de branqueamento.

O facto de o Ministério Público ter conseguido produzir uma acusação não resolve uma questão de fundo: o tempo que o caso levou a ser investigado e os anos que ainda vai demorar até que haja absolvições ou sentenças transitadas em julgado. É certo que num Estado de direito democrático há normas, procedimentos e direitos que a investigação criminal tem de respeitar. Mas há um problema em relação à demora da Justiça em Portugal que ninguém nega, mas que parece que nenhum responsável político está mesmo empenhado em resolver.

Desde Março, Portugal está atingido por uma pandemia de covid-19, mas impõe-se perguntar sobre o que é feito das propostas da ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, para a Estratégia Nacional de Combate à Corrupção, anunciadas em início de Dezembro e então noticiadas pelo PÚBLICO. Como então foi divulgado, o grupo de trabalho constituído para o efeito deveria ter apresentado, até Abril, um relatório propondo uma estratégia plurianual para a legislatura e propostas concretas de alterações legislativas. O grupo de trabalho recebeu mesmo, da parte do Ministério da Justiça, uma série de sugestões sobre mudanças nos procedimentos da Justiça que, se já vigorassem, diminuiriam em muito os lentíssimos ritmos da Justiça em Portugal, bem como melhorariam em muito as investigações criminais.

Entre essas ideias estava a adopção da colaboração premiada, eliminado o prazo de 30 dias, hoje existente na lei, entre o crime e a denúncia por parte do agente de corrupção passiva ou activa, e introduzindo a possibilidade de diminuição de pena como contrapartida para a colaboração com a Justiça. Outra proposta consistia no esclarecimento da legislação actual para que fosse facilitado a separação dos megaprocessos em vários processos. Também foi avançada a figura dos acordos de sentenças, nos quais o acusado entrega ao Estado o lucro do crime e recebe uma redução de pena. Assim como a criação de juízos especializados em crimes de corrupção e a ideia de que os magistrados que investigam os casos passem a acompanhar os julgamentos.


É certo que no caso BES/GES estas mudanças não terão efeito, pelo menos para a longuíssima investigação já terminada. Mas a acusação agora produzida contra Ricardo Salgado e mais 24 arguidos vem alertar para a necessidade de os mecanismos judiciários e judiciais em Portugal serem mais céleres, a bem da confiança das pessoas no Estado e na Justiça.

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