domingo, 5 de julho de 2020

Na vida de luxo do juiz Rangel um almoço podia custar 19 mil euros




OPERAÇÃO LEX
Na vida de luxo do juiz Rangel um almoço podia custar 19 mil euros

Acórdão que mantém expulsão da magistratura alude à utilização da identidade de cidadãos estrangeiros para escapar a multas por excesso de velocidade e ao desenvolvimento de actividades imobiliárias.



Ana Henriques
Ana Henriques 4 de Julho de 2020, 6:56

A pouco tempo de se conhecer o teor da acusação do processo conhecido por Operação Lex, que tem como principal arguido o agora ex-juiz Rui Rangel, o Supremo Tribunal de Justiça veio revelar a vida de luxo que levava o magistrado, incompatível com um vencimento que não chegava aos quatro mil euros mensais.

Expulso da profissão pelo Conselho Superior da Magistratura, Rui Rangel deverá recorrer desta decisão, que considera injusta. Mas já perdeu a primeira batalha: esta semana o Supremo Tribunal de Justiça manteve a expulsão, dada a gravidade dos actos que considera terem sido praticados pelo antigo juiz.

Ao longo de um acórdão com três centenas e meia de páginas, os colegas de profissão que analisaram o caso socorrem-se da documentação e do correio electrónico apreendidos no âmbito do processo-crime para concluírem não haver dúvidas de que o magistrado adoptou, durante anos, uma conduta desonesta e imoral ou desonrosa, à luz dos preceitos impostos à classe pelo seu estatuto profissional. Apesar de esses preceitos proibirem os juízes de terem outros rendimentos que não os provenientes do exercício da magistratura, como forma de garantir a imparcialidade das decisões judiciais, os investigadores concluíram que Rui Rangel nunca hesitou em multiplicar as suas fontes de rendimentos.


Da angariação imobiliária à consultoria jurídica terão sido vários os negócios em que se envolveu. Ainda assim, o dinheiro que arrecadava com estas actividades paralelas e que lhe estavam vedadas parecia quase nunca ser suficiente para cobrir as despesas. Senhorios de algumas das casas onde morou, operadoras de telemóveis e outros fornecedores de serviços viram várias vezes o juiz acumular-lhes dívidas. Num dos casos Rui Rangel viu-se mesmo na iminência de ser despejado.

Entre 2012 e 2018 o juiz habitou consecutivamente em três apartamentos em Lisboa. E se a renda do primeiro deles lhe levava 75% do vencimento, que na altura não ultrapassava os 3100 euros mensais, já o segundo, situado na Avenida Infante Santo, no bairro da Lapa, ultrapassava o seu salário: alugou-o por 3500 euros. Se juntarmos a isto as prestações do BMW X6 que conduzia, os colégios dos filhos e outras despesas sumptuárias é fácil concluir que o salário de magistrado era claramente insuficiente.

O acórdão revela por exemplo que um almoço para 30 pessoas na Estalagem do Farol, em Cascais, lhe custou perto de 19 mil euros. Outras despesas consideradas “incomportáveis para a bolsa do juiz nacional” incluem um colchão com sommier e cabeceira comprado por 5200 euros e uma conta do El Corte Inglés de nove mil, com entrega da mercadoria em casa.

Para o Ministério Público a riqueza do agora ex-juiz provém da venda de acórdãos feitos à medida dos interessados, coisa que o arguido nega. Certo é que, para ficar com tempo livre para as actividades paralelas, Rui Rangel entregou a elaboração de dezenas e dezenas de sentenças à sua mulher, a também juíza Fátima Galante, com quem já há muito não vivia. E isso também contribuiu para a sua expulsão da magistratura. No processo disciplinar de que o magistrado foi alvo surgiram ainda suspeitas de que alguns destes acórdãos fossem ainda escritos por um segundo cúmplice do juiz, “para lhe permitir desenvolver outras actividades lucrativas – que constituem violação do dever de dedicação exclusiva”.

Na decisão de expulsão, o Conselho Superior da Magistratura assinala que, nas contas que Rangel mantinha com a mulher, e no período de uma década, “foram identificados 270 movimentos de depósitos em numerário, num total de 394.544 euros”. Vários destes depósitos e levantamentos em numerário eram da ordem das dezenas e milhares de euros, e nem sempre tiveram correspondência com as declarações fiscais do casal.

Entre 2012 e 2015 Rui Rangel declarou rendimentos líquidos que oscilaram entre os 37.500 e os 61 mil euros, enquanto as declarações de Fátima Galante nunca ultrapassaram os 39 mil. Apesar de isso também contrariar o estipulado no seu estatuto profissional, o juiz era pago pelos comentários que fazia na RTP e que escrevia para o Correio da Manhã, recorrendo, para ultrapassar esse óbice legal, à justificação de que se tratava de direitos de autor, um tipo de pagamento que já é permitido os magistrados receberem, mas inadequado a este tipo de colaboração regular com a comunicação social. “O cidadão comum nem sequer compreende a possibilidade de quem escreve com regularidade nos jornais ou faça comentário televisivo aufira remuneração a título de direitos de autor e não como uma normal actividade profissional, ainda que a tempo parcial”, refere a esse propósito o Conselho Superior da Magistratura.

Mas tão ou mais graves são as proezas assacadas ao arguido para escapar a três multas que sofreu por excesso de velocidade. Neste capítulo, suspeita-se de que usava documentos de cidadãos de nacionalidade marroquina e equatoriana para convencer as autoridades de que não era ele quem ia ao volante do seu automóvel. “Nos três casos fez uso de documento de identificação e de título habilitante para condução alheios, procurando eximir-se à responsabilidade pela prática de contra-ordenações estradais, consubstanciadas no pagamento de coima e de sanção acessória de inibição de conduzir de um a 12 meses, usando falsamente documentos de terceiros”, pode ler-se no acórdão.

O documento faz ainda referência à ajuda prestada pelo juiz à mulher e a um empresário angolano no sentido de tanto ela como a filha obterem a nacionalidade portuguesa, bem como às viagens que fez a Angola para ministrar formação. Alude também à forma como estabeleceu contactos visando criar uma empresa de segurança privada para a mãe de uma das suas filhas. Além disso, Rui Rangel “convidou um empresário angolano para aquisição em conjunto com ele de um imóvel, para posterior revenda”, na Quinta da Marinha. Tratava-se de uma moradia de 500 metros quadrados. “Podemos tentar comprar por um milhão de euros, mais cem mil de comissões a pagar à parte. Investindo 300 ou 400 mil em obras, a casa poderá ser facilmente vendida por dois milhões”, alvitrava, num email enviado ao seu potencial parceiro de negócios, Eliseu Bumba, que chegou a ser arguido no processo dos vistos gold mas acabou absolvido.

Até agora Rui Rangel só tinha registado duas infracções disciplinares como magistrado, a mais recente das quais lhe valeu 15 dias de multa, por ter feito declarações públicas há cinco anos sobre a Operação Marquês, violando o dever de reserva a que os magistrados estão sujeitos. Nas avaliações a que foi submetido durante o percurso profissional recebeu uma classificação de Bom, quatro de Bom com Distinção e, mais recentemente, uma de Muito Bom.

Um dos argumentos que usou para não ser expulso da magistratura foi ver-se privado do seu sustento e do das filhas menores. Mas os conselheiros do Supremo não crêem que corra esse risco. Dizem que ficou provada, neste processo, a sua capacidade de sobrevivência através de rendimentos alternativos ao exercício da magistratura.

O PÚBLICO tentou falar com o ex-juiz, sem sucesso. Adiantando que deverá recorrer da expulsão da magistratura, o seu advogado, João Nabais, recusou-se a prestar mais informações sobre as suspeitas que recaem sobre Rui Rangel, alegando que não pretende antecipar as explicações que irão ser dadas para estes factos no processo-crime.

O principal arguido da Operação Lex sempre contestou o facto de os indícios usados para o afastar dos tribunais serem provenientes do processo-crime: no seu entender, existe uma “promiscuidade do procedimento disciplinar em decidir exclusivamente tendo por base as ‘provas’ coligidas no processo-crime”, que, no seu entender, mais não são do que uma “amálgama de indícios que se encontram em fase de inquérito”. Mas o Supremo promete que, caso algumas dessas provas sejam no futuro invalidadas, a expulsão pode vir a ser reanalisada.

tp.ocilbup@seuqirnehba


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