OPERAÇÃO LEX
Na vida de luxo do juiz Rangel um almoço podia custar 19
mil euros
Acórdão que mantém expulsão da magistratura alude à
utilização da identidade de cidadãos estrangeiros para escapar a multas por
excesso de velocidade e ao desenvolvimento de actividades imobiliárias.
Ana Henriques
Ana Henriques 4
de Julho de 2020, 6:56
A pouco tempo de
se conhecer o teor da acusação do processo conhecido por Operação Lex, que tem
como principal arguido o agora ex-juiz Rui Rangel, o Supremo Tribunal de
Justiça veio revelar a vida de luxo que levava o magistrado, incompatível com
um vencimento que não chegava aos quatro mil euros mensais.
Expulso da
profissão pelo Conselho Superior da Magistratura, Rui Rangel deverá recorrer
desta decisão, que considera injusta. Mas já perdeu a primeira batalha: esta semana
o Supremo Tribunal de Justiça manteve a expulsão, dada a gravidade dos actos
que considera terem sido praticados pelo antigo juiz.
Ao longo de um
acórdão com três centenas e meia de páginas, os colegas de profissão que
analisaram o caso socorrem-se da documentação e do correio electrónico
apreendidos no âmbito do processo-crime para concluírem não haver dúvidas de
que o magistrado adoptou, durante anos, uma conduta desonesta e imoral ou
desonrosa, à luz dos preceitos impostos à classe pelo seu estatuto
profissional. Apesar de esses preceitos proibirem os juízes de terem outros
rendimentos que não os provenientes do exercício da magistratura, como forma de
garantir a imparcialidade das decisões judiciais, os investigadores concluíram
que Rui Rangel nunca hesitou em multiplicar as suas fontes de rendimentos.
Da angariação
imobiliária à consultoria jurídica terão sido vários os negócios em que se
envolveu. Ainda assim, o dinheiro que arrecadava com estas actividades
paralelas e que lhe estavam vedadas parecia quase nunca ser suficiente para
cobrir as despesas. Senhorios de algumas das casas onde morou, operadoras de
telemóveis e outros fornecedores de serviços viram várias vezes o juiz
acumular-lhes dívidas. Num dos casos Rui Rangel viu-se mesmo na iminência de
ser despejado.
Entre 2012 e 2018
o juiz habitou consecutivamente em três apartamentos em Lisboa. E se a renda do
primeiro deles lhe levava 75% do vencimento, que na altura não ultrapassava os
3100 euros mensais, já o segundo, situado na Avenida Infante Santo, no bairro
da Lapa, ultrapassava o seu salário: alugou-o por 3500 euros. Se juntarmos a
isto as prestações do BMW X6 que conduzia, os colégios dos filhos e outras
despesas sumptuárias é fácil concluir que o salário de magistrado era
claramente insuficiente.
O acórdão revela
por exemplo que um almoço para 30 pessoas na Estalagem do Farol, em Cascais,
lhe custou perto de 19 mil euros. Outras despesas consideradas “incomportáveis
para a bolsa do juiz nacional” incluem um colchão com sommier e cabeceira
comprado por 5200 euros e uma conta do El Corte Inglés de nove mil, com entrega
da mercadoria em casa.
Para o Ministério
Público a riqueza do agora ex-juiz provém da venda de acórdãos feitos à medida
dos interessados, coisa que o arguido nega. Certo é que, para ficar com tempo
livre para as actividades paralelas, Rui Rangel entregou a elaboração de
dezenas e dezenas de sentenças à sua mulher, a também juíza Fátima Galante, com
quem já há muito não vivia. E isso também contribuiu para a sua expulsão da
magistratura. No processo disciplinar de que o magistrado foi alvo surgiram
ainda suspeitas de que alguns destes acórdãos fossem ainda escritos por um
segundo cúmplice do juiz, “para lhe permitir desenvolver outras actividades
lucrativas – que constituem violação do dever de dedicação exclusiva”.
Na decisão de
expulsão, o Conselho Superior da Magistratura assinala que, nas contas que
Rangel mantinha com a mulher, e no período de uma década, “foram identificados
270 movimentos de depósitos em numerário, num total de 394.544 euros”. Vários
destes depósitos e levantamentos em numerário eram da ordem das dezenas e
milhares de euros, e nem sempre tiveram correspondência com as declarações
fiscais do casal.
Entre 2012 e 2015
Rui Rangel declarou rendimentos líquidos que oscilaram entre os 37.500 e os 61
mil euros, enquanto as declarações de Fátima Galante nunca ultrapassaram os 39
mil. Apesar de isso também contrariar o estipulado no seu estatuto profissional,
o juiz era pago pelos comentários que fazia na RTP e que escrevia para o
Correio da Manhã, recorrendo, para ultrapassar esse óbice legal, à justificação
de que se tratava de direitos de autor, um tipo de pagamento que já é permitido
os magistrados receberem, mas inadequado a este tipo de colaboração regular com
a comunicação social. “O cidadão comum nem sequer compreende a possibilidade de
quem escreve com regularidade nos jornais ou faça comentário televisivo aufira
remuneração a título de direitos de autor e não como uma normal actividade
profissional, ainda que a tempo parcial”, refere a esse propósito o Conselho
Superior da Magistratura.
Mas tão ou mais
graves são as proezas assacadas ao arguido para escapar a três multas que
sofreu por excesso de velocidade. Neste capítulo, suspeita-se de que usava
documentos de cidadãos de nacionalidade marroquina e equatoriana para convencer
as autoridades de que não era ele quem ia ao volante do seu automóvel. “Nos
três casos fez uso de documento de identificação e de título habilitante para
condução alheios, procurando eximir-se à responsabilidade pela prática de
contra-ordenações estradais, consubstanciadas no pagamento de coima e de sanção
acessória de inibição de conduzir de um a 12 meses, usando falsamente
documentos de terceiros”, pode ler-se no acórdão.
O documento faz
ainda referência à ajuda prestada pelo juiz à mulher e a um empresário angolano
no sentido de tanto ela como a filha obterem a nacionalidade portuguesa, bem
como às viagens que fez a Angola para ministrar formação. Alude também à forma
como estabeleceu contactos visando criar uma empresa de segurança privada para
a mãe de uma das suas filhas. Além disso, Rui Rangel “convidou um empresário
angolano para aquisição em conjunto com ele de um imóvel, para posterior
revenda”, na Quinta da Marinha. Tratava-se de uma moradia de 500 metros
quadrados. “Podemos tentar comprar por um milhão de euros, mais cem mil de
comissões a pagar à parte. Investindo 300 ou 400 mil em obras, a casa poderá
ser facilmente vendida por dois milhões”, alvitrava, num email enviado ao seu
potencial parceiro de negócios, Eliseu Bumba, que chegou a ser arguido no
processo dos vistos gold mas acabou absolvido.
Até agora Rui
Rangel só tinha registado duas infracções disciplinares como magistrado, a mais
recente das quais lhe valeu 15 dias de multa, por ter feito declarações
públicas há cinco anos sobre a Operação Marquês, violando o dever de reserva a
que os magistrados estão sujeitos. Nas avaliações a que foi submetido durante o
percurso profissional recebeu uma classificação de Bom, quatro de Bom com
Distinção e, mais recentemente, uma de Muito Bom.
Um dos argumentos
que usou para não ser expulso da magistratura foi ver-se privado do seu
sustento e do das filhas menores. Mas os conselheiros do Supremo não crêem que
corra esse risco. Dizem que ficou provada, neste processo, a sua capacidade de
sobrevivência através de rendimentos alternativos ao exercício da magistratura.
O PÚBLICO tentou
falar com o ex-juiz, sem sucesso. Adiantando que deverá recorrer da expulsão da
magistratura, o seu advogado, João Nabais, recusou-se a prestar mais
informações sobre as suspeitas que recaem sobre Rui Rangel, alegando que não
pretende antecipar as explicações que irão ser dadas para estes factos no
processo-crime.
O principal
arguido da Operação Lex sempre contestou o facto de os indícios usados para o
afastar dos tribunais serem provenientes do processo-crime: no seu entender,
existe uma “promiscuidade do procedimento disciplinar em decidir exclusivamente
tendo por base as ‘provas’ coligidas no processo-crime”, que, no seu entender,
mais não são do que uma “amálgama de indícios que se encontram em fase de
inquérito”. Mas o Supremo promete que, caso algumas dessas provas sejam no
futuro invalidadas, a expulsão pode vir a ser reanalisada.
tp.ocilbup@seuqirnehba
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