sexta-feira, 3 de julho de 2020

Estado paga 55 milhões para voltar a mandar na TAP / TAP: nacionalizada ou não, quem paga a conta somos nós



AVIAÇÃO
Estado paga 55 milhões para voltar a mandar na TAP

David Neeleman sai da TAP, Antonoaldo Neves deixa de ser CEO. Governo e Humberto Pedrosa mantêm-se como parceiros na transportadora, que já pode receber a ajuda de emergência de 1200 milhões.

Ana Brito 3 de Julho de 2020, 1:36

Foi uma longa maratona negocial, mas chegou ao fim. O ministro das Infraestruturas e da Habitação, Pedro Nuno Santos, anunciou na quinta-feira à noite que, depois de “largas semanas”, o Estado conseguiu finalmente assegurar as “condições mínimas” para injectar na TAP “muito dinheiro dos portugueses”.

“Se vamos potencialmente comprometer 1200 milhões de euros dos portugueses, temos de ter garantias mínimas e, desse ponto de vista, o processo correu bem”, disse Pedro Nuno Santos, recusando falar em vencedores e vencidos no árduo braço de ferro entre o Governo e o empresário norte-americano David Neeleman, cujo nome, nem uma vez, foi pronunciado por qualquer um dos três governantes que participou numa conferência de imprensa já depois das 22h desta quinta-feira.

A ministra de Estado e da Presidência, Mariana Vieira da Silva, havia revelado, na conferência que se seguiu à reunião do Conselho de Ministros, que existia “um acordo de princípio” com o accionista privado da TAP em que só faltava ultimar “um conjunto de questões técnico-jurídicas”. O seu colega Pedro Nuno Santos veio confirmar o cenário que as informações das últimas horas já tinham permitido antecipar.

O Estado passa a ter 72,5% da TAP, Humberto Pedrosa mantém-se com 22,5% e os trabalhadores ficam com 5% da transportadora. E todos ficam com direitos económicos correspondentes ao respectivo capital social (em 2016, o Governo formalizou um acordo que lhe deu 50% do capital, mas apenas 5% dos direitos económicos, como os dividendos).

Neeleman vende as acções por 55 milhões de euros, renunciando a quaisquer direitos de saída – nomeadamente o de o Estado lhe pagar o valor correspondente às prestações acessórias feitas na TAP – e comprometendo-se a não iniciar quaisquer processos contra o Estado.

Adicionalmente, a companhia Azul, de que Neeleman é accionista, e que tem obrigações da TAP convertíveis em acções no montante de 90 milhões de euros, compromete-se a ser reembolsada na maturidade do empréstimo (em 2026), sem reclamar os 6% do capital, e os 41% de direitos económicos, que a conversão das acções lhe poderia garantir.

Nacionalização como trunfo negocial
Há quem veja no negócio uma derrota de Neeleman e quem considere que o empresário se conseguiu libertar de um problema gigante, sem sair de mãos a abanar. Pedro Nuno Santos diz apenas que agora o Governo já se pode concentrar no “grande desafio” que tem pela frente e que é reestruturar e “evitar a falência de uma empresa determinante para o país”, que emprega dez mil pessoas directamente e gera 100 mil empregos indirectos. O ministro sublinhou ainda as exportações pelas quais a TAP foi responsável em 2019, no valor de 2,6 milhões de euros.

Trata-se de “uma empresa com um papel decisivo na prossecução dos interesses económicos e estratégicos do país”, reforçou o ministro das Finanças, João Leão.

O Estado fez um bom negócio na TAP?
Pedro Nuno Santos explicou que o Estado teve de fazer três propostas a Neeleman antes que houvesse fumo branco e que a nacionalização da empresa “não era a opção inicial”.

Primeiro, o Governo tentou que os accionistas privados da Atlantic Gateway participassem no esforço de capitalização da empresa e que as prestações acessórias e empréstimos obrigacionistas que fizeram fossem convertidas em capital. E também que se permitisse um reforço dos poderes do conselho de administração e um controlo apertado sobre o uso dos fundos públicos. “Essa opção não foi aceite”, disse o ministro.

Numa segunda proposta, o Governo tentou que Neeleman abdicasse dos direitos de saída e do direito de converter obrigações em capital, “o que também foi recusado”.

Por isso, o tema “evoluiu para uma proposta com condições mínimas” de segurança para realizar a injecção de dinheiros públicos, que foi a de oferecer os 55 milhões de euros pelos direitos de voto, os direitos económicos e a renúncia a quaisquer cláusulas de saída do norte-americano. A nacionalização “nunca foi a opção inicial, mas nunca pôde deixar de estar na mesa de negociações, aliás, [o facto de estar na mesa] foi importante” para o desfecho final, sustentou o ministro.

Pedro Nuno Santos recusou mais uma vez que tenham sido as suas declarações contra a gestão da TAP, e sobre a situação financeira da empresa, que tenham influenciado a Comissão Europeia a condicionar o auxílio à TAP à aprovação de um plano de reestruturação, notando que a Comissão tem “critérios objectivos” e que uma empresa com prejuízos acumulados de mais de duzentos milhões de euros e capitais próprios negativos de 580 milhões não é saudável financeiramente “em nenhum canto do mundo”.

Próxima etapa é a reestruturação
“O acordo está fechado”, mas ainda há documentos por assinar e formalidades para tratar. E essas são importantes pois são elas que permitirão fazer “a ponte” para disponibilizar o auxílio de Estado que foi acordado com Bruxelas, sublinhou o secretário de Estado do Tesouro, Miguel Cruz.

O dinheiro será transferido para a TAP “em tranches, associadas a um plano de liquidez” criado com dados transmitidos pela gestão da TAP e que fizeram parte da notificação de ajudas de Estado à Comissão Europeia, explicou. A primeira será de 250 milhões de euros.

O passo seguinte é o da elaboração do plano de reestruturação. Um processo que “será difícil e exigente”, mas que também pode ser “uma oportunidade” para a TAP, assegurou o ministro das Infraestruturas. Recusando falar em “inevitabilidades” no que toca a despedimentos ou diminuição de rotas, o ministro disse que há “vários caminhos” que podem ser tomados e discutidos com Bruxelas.

“O plano de reestruturação não tem de ser visto como elemento negativo deste processo. Será um plano de reestruturação e de estratégia ao mesmo tempo, e terá de ser desenvolvido nos próximos meses”, insistiu.

O actual CEO da TAP, Antonoaldo Neves, sairá dessas funções. Será iniciado, logo que o Estado assuma a sua posição de controlo, um “processo de selecção de gestão profissional e qualificada”. No imediato, haverá uma “solução sólida e consistente” que ocupe temporariamente o lugar deixado vago pelos gestores de Neeleman. A partir de agora, a questão de quem controla a TAP deixa de fazer sentido, sublinhou ontem Pedro Nuno Santos.

O que é que o Governo quer para a TAP? “Uma TAP viável a servir as necessidades do país”, respondeu o ministro. “No dia em que perdêssemos a TAP, Lisboa deixava de ser um hub. E o aeroporto é fundamental também para a nossa economia”, sublinhou o ministro.

“Se a TAP caísse, as rotas seriam assumidas por outras companhias aéreas. Há rotas que só são viáveis e lucrativas por causa do hub em Lisboa”, afirmou Pedro Nuno Santos.

Chegarão os 1200 milhões para manter a companhia à tona? “A incerteza é grande e ninguém esconde isso”, reconheceu o ministro.

Efeito “residual” na dívida pública
Questionado se o facto de o Estado ter uma posição maioritária na TAP, SGPS terá um impacto no défice e na dívida pública, o ministro das Finanças, João Leão, começou por explicar que há empresas públicas (incluindo integralmente detidas pelo Estado) que, pela “natureza essencialmente mercantil” da sua actividade, não estão incluídas no perímetro das contas públicas, como os portos ou a Carris.

“A TAP, SA, empresa aérea (não estou a falar da TAP SGPS), tem uma natureza essencialmente mercantil e, nesse sentido, não tem que passar a ser [integrada no perímetro das] contas públicas, apenas pelo Estado ter uma posição maioritária”, disse Leão. Já a TAP, SGPS, a sociedade gestora de participações sociais, pode ter algum efeito ainda residual na dívida. “Mas não se espera um impacto automático e directo pelo facto de o Estado deter a TAP” para além deste efeito, disse o governante. Com Luísa Pinto e Pedro Crisóstomo

OPINIÃO
TAP: nacionalizada ou não, quem paga a conta somos nós

Nacionalizada ou não, a TAP tal como existe não vai ser rentável e, nacionalizada ou não, padece de uma epidemia que infetou as nossas economias, que é a privatização dos ganhos e a coletivização das perdas. Que é como quem diz: a conta pagamos nós, mas os ganhos vão para o bolso dos credores, acionistas e dirigentes
Isto não é só a história da TAP. É a história do capitalismo do século XXI e de um país com uma tradição de pouca exigência e transparência na utilização do dinheiro público.

SUSANA PERALTA
3 de Julho de 2020, 0:20

Portugal é especialista em discutir temas pelo ângulo mais simplista e menos interessante. Já foi assim com o orçamento europeu, em que andámos a falar dos milhares de milhões de euros que aí vêm, que na verdade não sabemos se vêm ou não, passando ao lado do facto provável de virmos a ser contribuintes líquidos, ou de coisas bem mais interessantes como a dívida comum ou a possibilidade de criar impostos europeus sobre as multinacionais ou as plataformas digitais. Agora, com a TAP, andamos enrolados com o problema da nacionalização, quando essa não é a questão principal.

Os problemas da TAP não começaram com a pandemia da covid-19. A empresa teve prejuízos de cerca de 100 milhões de euros em 2018, outro tanto em 2019. Quando, em 2015, o governo de Pedro Passos Coelho privatizou a TAP, a companhia tinha 511 milhões de capitais próprios negativos e tinha uma dívida de mais de 1000 milhões de euros. Por isso não foi fácil encontrar comprador. É provável que estas perdas acumuladas venham de más decisões de gestão, mas não é só isso. Como explicou o Financial Times num artigo do início de junho, entre 1960 e 2000 os lucros totais da indústria de aviação nos EUA só chegaram para pagar o equivalente a dois Boieng 747. Ou seja: mesmo que houvesse empresas com lucros, os prejuízos das restantes eram tão elevados que a indústria, como um todo, era um buraco. A situação só se alterou depois de 2008, quando começou uma vaga de fusões que acabou por tornar as empresas lucrativas. O que aconteceu nos EUA sugere que o sector da aviação só é rentável quando as empresas ganham uma certa escala. Na Europa, a Air France e a KLM fundiram-se em 2004 e a British Airways e a Iberia em 2010, criando o grupo IAG que, entretanto, também absorveu a Aer Lingus. Como é bom de ver, a TAP está fora desta dinâmica de consolidação do mercado, e isso não augura nada de bom para a sua rentabilidade.

Não me interpretem mal. Não há nada de errado em usar dinheiro público para financiar sectores que dão prejuízo. Mas o transporte aéreo não faz parte dos sectores prioritários onde devemos gastar o dinheiro dos nossos impostos. Assim de repente, lembro-me de várias formas alternativas de gastar os recursos escassos do erário público: transportes públicos, saúde, educação, transferências de rendimento para quem perdeu uma grande parte ou todo o seu rendimento com a crise pandémica.

O processo da TAP está a ser conduzido de forma demasiado opaca. O Governo ainda não disse como vai fazer para rentabilizar a TAP, nem quanto está disposto a gastar para isso. Mil milhões agora já é muito dinheiro. Mas quando olhamos para o que aconteceu com a banca, o mais provável é que atrás destes venham outros tantos nos próximos anos. O Governo também não explicou como vai reestruturar a empresa, o que é necessário porque a empresa assim só perde dinheiro mas também por imposição de Bruxelas. Este apoio não foi aprovado ao abrigo das exceções devidas à atual crise que permitiram a outros governos, como o austríaco ou o alemão, ajudar as companhias aéreas dos seus países. Precisamente porque a TAP já dava prejuízo antes.

Finalmente, o Governo não disse qual a importância da TAP para a economia nacional. Os números que circulam dos impostos pagos pela TAP, do número de empregos gerados pela TAP ou do impacto da TAP nas empresas que a fornecem de pouco nos servem. Em primeiro lugar, porque a TAP vai ter de ser reestruturada e vai por isso gerar menos emprego, menos receita fiscal e menos tudo. Em segundo lugar, porque o mercado das viagens está parado e não vai recuperar nos próximos anos. Logo, qualquer tentativa de usar a TAP pré-covid como exemplo do que será a TAP pós-covid é enganadora. Em terceiro lugar, porque mesmo que a TAP desapareça, outras companhias vão assegurar ligações aéreas com Portugal, gerando emprego, receita fiscal e tudo o mais. É provável que as outras companhias assegurem menos rotas e menos ligações por dia e por isso tragam menos turistas (e não só). Mas o Governo tem de nos mostrar esses cenários para, de forma transparente, podermos decidir coletivamente quanto queremos pagar pelo que a TAP nos traria a mais. O que não podemos é continuar a fingir que sem TAP não havia nada. Até porque outros países, como a Bélgica e a Suíça, deixaram cair as suas companhias de bandeira e o mundo não acabou por isso.

Nacionalizada ou não, a TAP tal como existe não vai ser rentável e, nacionalizada ou não, padece de uma epidemia que infetou as nossas economias, que é a privatização dos ganhos e a coletivização das perdas. Que é como quem diz: a conta pagamos nós, mas os ganhos vão para o bolso dos credores, acionistas e dirigentes

Lembro que a TAP pagou prémios de desempenho aos quadros dirigentes da companhia em 2018 e 2019, anos em que acumulou prejuízos de 100 milhões de euros. Lembro também que, embora os contornos do negócio não sejam muito claros, o empresário David Neeleman comprou a posição na TAP sem investir dinheiro seu. Segundo algumas notícias que vieram a lume, o empresário terá negociado com a Airbus a troca de 12 aviões que tinham sido comprados pela TAP ainda pública. Esta troca rendeu 70 milhões, que serviram para Neeleman comprar a TAP, num negócio de contornos estranhos que chegou a ser questionado pelo governo de Pedro Passos Coelho, que deixou cair o assunto porque, segundo o semanário Sol, “dada a situação limite ou era isso ou a TAP poderia perder tudo, uma vez que já tinha falhado pagamentos relativos à pré-encomenda”. David Neeleman prepara-se agora para sair da TAP, cobrando 55 milhões por uma empresa que não tem valor de mercado e que comprou sem investir.

Nacionalizada ou não, a TAP tal como existe não vai ser rentável e, nacionalizada ou não, padece de uma epidemia que infetou as nossas economias, que é a privatização dos ganhos e a coletivização das perdas. Que é como quem diz: a conta pagamos nós, mas os ganhos vão para o bolso dos credores, acionistas e dirigentes. Isto não é só a história da TAP. É a história do capitalismo do século XXI e de um país com uma tradição de pouca exigência e transparência na utilização do dinheiro público.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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