AVIAÇÃO
Estado paga 55 milhões para voltar a mandar na TAP
David Neeleman sai da TAP, Antonoaldo Neves deixa de ser
CEO. Governo e Humberto Pedrosa mantêm-se como parceiros na transportadora, que
já pode receber a ajuda de emergência de 1200 milhões.
Ana Brito 3 de
Julho de 2020, 1:36
Foi uma longa
maratona negocial, mas chegou ao fim. O ministro das Infraestruturas e da Habitação,
Pedro Nuno Santos, anunciou na quinta-feira à noite que, depois de “largas
semanas”, o Estado conseguiu finalmente assegurar as “condições mínimas” para
injectar na TAP “muito dinheiro dos portugueses”.
“Se vamos
potencialmente comprometer 1200 milhões de euros dos portugueses, temos de ter
garantias mínimas e, desse ponto de vista, o processo correu bem”, disse Pedro
Nuno Santos, recusando falar em vencedores e vencidos no árduo braço de ferro
entre o Governo e o empresário norte-americano David Neeleman, cujo nome, nem
uma vez, foi pronunciado por qualquer um dos três governantes que participou
numa conferência de imprensa já depois das 22h desta quinta-feira.
A ministra de
Estado e da Presidência, Mariana Vieira da Silva, havia revelado, na
conferência que se seguiu à reunião do Conselho de Ministros, que existia “um
acordo de princípio” com o accionista privado da TAP em que só faltava ultimar
“um conjunto de questões técnico-jurídicas”. O seu colega Pedro Nuno Santos
veio confirmar o cenário que as informações das últimas horas já tinham permitido
antecipar.
O Estado passa a
ter 72,5% da TAP, Humberto Pedrosa mantém-se com 22,5% e os trabalhadores ficam
com 5% da transportadora. E todos ficam com direitos económicos correspondentes
ao respectivo capital social (em 2016, o Governo formalizou um acordo que lhe
deu 50% do capital, mas apenas 5% dos direitos económicos, como os dividendos).
Neeleman vende as
acções por 55 milhões de euros, renunciando a quaisquer direitos de saída –
nomeadamente o de o Estado lhe pagar o valor correspondente às prestações
acessórias feitas na TAP – e comprometendo-se a não iniciar quaisquer processos
contra o Estado.
Adicionalmente, a
companhia Azul, de que Neeleman é accionista, e que tem obrigações da TAP
convertíveis em acções no montante de 90 milhões de euros, compromete-se a ser
reembolsada na maturidade do empréstimo (em 2026), sem reclamar os 6% do
capital, e os 41% de direitos económicos, que a conversão das acções lhe
poderia garantir.
Nacionalização como trunfo negocial
Há quem veja no
negócio uma derrota de Neeleman e quem considere que o empresário se conseguiu
libertar de um problema gigante, sem sair de mãos a abanar. Pedro Nuno Santos
diz apenas que agora o Governo já se pode concentrar no “grande desafio” que
tem pela frente e que é reestruturar e “evitar a falência de uma empresa
determinante para o país”, que emprega dez mil pessoas directamente e gera 100
mil empregos indirectos. O ministro sublinhou ainda as exportações pelas quais
a TAP foi responsável em 2019, no valor de 2,6 milhões de euros.
Trata-se de “uma
empresa com um papel decisivo na prossecução dos interesses económicos e
estratégicos do país”, reforçou o ministro das Finanças, João Leão.
O Estado fez um bom negócio na TAP?
Pedro Nuno Santos
explicou que o Estado teve de fazer três propostas a Neeleman antes que
houvesse fumo branco e que a nacionalização da empresa “não era a opção
inicial”.
Primeiro, o
Governo tentou que os accionistas privados da Atlantic Gateway participassem no
esforço de capitalização da empresa e que as prestações acessórias e
empréstimos obrigacionistas que fizeram fossem convertidas em capital. E também
que se permitisse um reforço dos poderes do conselho de administração e um
controlo apertado sobre o uso dos fundos públicos. “Essa opção não foi aceite”,
disse o ministro.
Numa segunda
proposta, o Governo tentou que Neeleman abdicasse dos direitos de saída e do
direito de converter obrigações em capital, “o que também foi recusado”.
Por isso, o tema
“evoluiu para uma proposta com condições mínimas” de segurança para realizar a
injecção de dinheiros públicos, que foi a de oferecer os 55 milhões de euros
pelos direitos de voto, os direitos económicos e a renúncia a quaisquer
cláusulas de saída do norte-americano. A nacionalização “nunca foi a opção
inicial, mas nunca pôde deixar de estar na mesa de negociações, aliás, [o facto
de estar na mesa] foi importante” para o desfecho final, sustentou o ministro.
Pedro Nuno Santos
recusou mais uma vez que tenham sido as suas declarações contra a gestão da
TAP, e sobre a situação financeira da empresa, que tenham influenciado a
Comissão Europeia a condicionar o auxílio à TAP à aprovação de um plano de
reestruturação, notando que a Comissão tem “critérios objectivos” e que uma
empresa com prejuízos acumulados de mais de duzentos milhões de euros e
capitais próprios negativos de 580 milhões não é saudável financeiramente “em
nenhum canto do mundo”.
Próxima etapa é a reestruturação
“O acordo está
fechado”, mas ainda há documentos por assinar e formalidades para tratar. E
essas são importantes pois são elas que permitirão fazer “a ponte” para
disponibilizar o auxílio de Estado que foi acordado com Bruxelas, sublinhou o
secretário de Estado do Tesouro, Miguel Cruz.
O dinheiro será
transferido para a TAP “em tranches, associadas a um plano de liquidez” criado
com dados transmitidos pela gestão da TAP e que fizeram parte da notificação de
ajudas de Estado à Comissão Europeia, explicou. A primeira será de 250 milhões
de euros.
O passo seguinte
é o da elaboração do plano de reestruturação. Um processo que “será difícil e
exigente”, mas que também pode ser “uma oportunidade” para a TAP, assegurou o
ministro das Infraestruturas. Recusando falar em “inevitabilidades” no que toca
a despedimentos ou diminuição de rotas, o ministro disse que há “vários
caminhos” que podem ser tomados e discutidos com Bruxelas.
“O plano de
reestruturação não tem de ser visto como elemento negativo deste processo. Será
um plano de reestruturação e de estratégia ao mesmo tempo, e terá de ser desenvolvido
nos próximos meses”, insistiu.
O actual CEO da
TAP, Antonoaldo Neves, sairá dessas funções. Será iniciado, logo que o Estado
assuma a sua posição de controlo, um “processo de selecção de gestão
profissional e qualificada”. No imediato, haverá uma “solução sólida e
consistente” que ocupe temporariamente o lugar deixado vago pelos gestores de
Neeleman. A partir de agora, a questão de quem controla a TAP deixa de fazer
sentido, sublinhou ontem Pedro Nuno Santos.
O que é que o
Governo quer para a TAP? “Uma TAP viável a servir as necessidades do país”,
respondeu o ministro. “No dia em que perdêssemos a TAP, Lisboa deixava de ser
um hub. E o aeroporto é fundamental também para a nossa economia”, sublinhou o
ministro.
“Se a TAP caísse,
as rotas seriam assumidas por outras companhias aéreas. Há rotas que só são
viáveis e lucrativas por causa do hub em Lisboa”, afirmou Pedro Nuno Santos.
Chegarão os 1200
milhões para manter a companhia à tona? “A incerteza é grande e ninguém esconde
isso”, reconheceu o ministro.
Efeito “residual” na dívida pública
Questionado se o
facto de o Estado ter uma posição maioritária na TAP, SGPS terá um impacto no
défice e na dívida pública, o ministro das Finanças, João Leão, começou por
explicar que há empresas públicas (incluindo integralmente detidas pelo Estado)
que, pela “natureza essencialmente mercantil” da sua actividade, não estão
incluídas no perímetro das contas públicas, como os portos ou a Carris.
“A TAP, SA,
empresa aérea (não estou a falar da TAP SGPS), tem uma natureza essencialmente
mercantil e, nesse sentido, não tem que passar a ser [integrada no perímetro
das] contas públicas, apenas pelo Estado ter uma posição maioritária”, disse
Leão. Já a TAP, SGPS, a sociedade gestora de participações sociais, pode ter
algum efeito ainda residual na dívida. “Mas não se espera um impacto automático
e directo pelo facto de o Estado deter a TAP” para além deste efeito, disse o
governante. Com Luísa Pinto e Pedro Crisóstomo
OPINIÃO
TAP: nacionalizada ou não, quem paga a conta somos nós
Nacionalizada ou não, a TAP tal como existe não vai ser
rentável e, nacionalizada ou não, padece de uma epidemia que infetou as nossas
economias, que é a privatização dos ganhos e a coletivização das perdas. Que é
como quem diz: a conta pagamos nós, mas os ganhos vão para o bolso dos
credores, acionistas e dirigentes
Isto não é só a história da TAP. É a história do
capitalismo do século XXI e de um país com uma tradição de pouca exigência e
transparência na utilização do dinheiro público.
SUSANA PERALTA
3 de Julho de
2020, 0:20
Portugal é
especialista em discutir temas pelo ângulo mais simplista e menos interessante.
Já foi assim com o orçamento europeu, em que andámos a falar dos milhares de
milhões de euros que aí vêm, que na verdade não sabemos se vêm ou não, passando
ao lado do facto provável de virmos a ser contribuintes líquidos, ou de coisas
bem mais interessantes como a dívida comum ou a possibilidade de criar impostos
europeus sobre as multinacionais ou as plataformas digitais. Agora, com a TAP,
andamos enrolados com o problema da nacionalização, quando essa não é a questão
principal.
Os problemas da
TAP não começaram com a pandemia da covid-19. A empresa teve prejuízos de cerca
de 100 milhões de euros em 2018, outro tanto em 2019. Quando, em 2015, o
governo de Pedro Passos Coelho privatizou a TAP, a companhia tinha 511 milhões
de capitais próprios negativos e tinha uma dívida de mais de 1000 milhões de
euros. Por isso não foi fácil encontrar comprador. É provável que estas perdas
acumuladas venham de más decisões de gestão, mas não é só isso. Como explicou o
Financial Times num artigo do início de junho, entre 1960 e 2000 os lucros
totais da indústria de aviação nos EUA só chegaram para pagar o equivalente a
dois Boieng 747. Ou seja: mesmo que houvesse empresas com lucros, os prejuízos
das restantes eram tão elevados que a indústria, como um todo, era um buraco. A
situação só se alterou depois de 2008, quando começou uma vaga de fusões que
acabou por tornar as empresas lucrativas. O que aconteceu nos EUA sugere que o
sector da aviação só é rentável quando as empresas ganham uma certa escala. Na
Europa, a Air France e a KLM fundiram-se em 2004 e a British Airways e a Iberia
em 2010, criando o grupo IAG que, entretanto, também absorveu a Aer Lingus.
Como é bom de ver, a TAP está fora desta dinâmica de consolidação do mercado, e
isso não augura nada de bom para a sua rentabilidade.
Não me
interpretem mal. Não há nada de errado em usar dinheiro público para financiar
sectores que dão prejuízo. Mas o transporte aéreo não faz parte dos sectores
prioritários onde devemos gastar o dinheiro dos nossos impostos. Assim de
repente, lembro-me de várias formas alternativas de gastar os recursos escassos
do erário público: transportes públicos, saúde, educação, transferências de
rendimento para quem perdeu uma grande parte ou todo o seu rendimento com a
crise pandémica.
O processo da TAP
está a ser conduzido de forma demasiado opaca. O Governo ainda não disse como
vai fazer para rentabilizar a TAP, nem quanto está disposto a gastar para isso.
Mil milhões agora já é muito dinheiro. Mas quando olhamos para o que aconteceu
com a banca, o mais provável é que atrás destes venham outros tantos nos
próximos anos. O Governo também não explicou como vai reestruturar a empresa, o
que é necessário porque a empresa assim só perde dinheiro mas também por
imposição de Bruxelas. Este apoio não foi aprovado ao abrigo das exceções
devidas à atual crise que permitiram a outros governos, como o austríaco ou o
alemão, ajudar as companhias aéreas dos seus países. Precisamente porque a TAP
já dava prejuízo antes.
Finalmente, o
Governo não disse qual a importância da TAP para a economia nacional. Os
números que circulam dos impostos pagos pela TAP, do número de empregos gerados
pela TAP ou do impacto da TAP nas empresas que a fornecem de pouco nos servem.
Em primeiro lugar, porque a TAP vai ter de ser reestruturada e vai por isso
gerar menos emprego, menos receita fiscal e menos tudo. Em segundo lugar,
porque o mercado das viagens está parado e não vai recuperar nos próximos anos.
Logo, qualquer tentativa de usar a TAP pré-covid como exemplo do que será a TAP
pós-covid é enganadora. Em terceiro lugar, porque mesmo que a TAP desapareça,
outras companhias vão assegurar ligações aéreas com Portugal, gerando emprego,
receita fiscal e tudo o mais. É provável que as outras companhias assegurem
menos rotas e menos ligações por dia e por isso tragam menos turistas (e não
só). Mas o Governo tem de nos mostrar esses cenários para, de forma
transparente, podermos decidir coletivamente quanto queremos pagar pelo que a
TAP nos traria a mais. O que não podemos é continuar a fingir que sem TAP não
havia nada. Até porque outros países, como a Bélgica e a Suíça, deixaram cair
as suas companhias de bandeira e o mundo não acabou por isso.
Nacionalizada ou não, a TAP tal como existe não vai ser
rentável e, nacionalizada ou não, padece de uma epidemia que infetou as nossas
economias, que é a privatização dos ganhos e a coletivização das perdas. Que é
como quem diz: a conta pagamos nós, mas os ganhos vão para o bolso dos
credores, acionistas e dirigentes
Lembro que a TAP
pagou prémios de desempenho aos quadros dirigentes da companhia em 2018 e 2019,
anos em que acumulou prejuízos de 100 milhões de euros. Lembro também que,
embora os contornos do negócio não sejam muito claros, o empresário David
Neeleman comprou a posição na TAP sem investir dinheiro seu. Segundo algumas
notícias que vieram a lume, o empresário terá negociado com a Airbus a troca de
12 aviões que tinham sido comprados pela TAP ainda pública. Esta troca rendeu
70 milhões, que serviram para Neeleman comprar a TAP, num negócio de contornos
estranhos que chegou a ser questionado pelo governo de Pedro Passos Coelho, que
deixou cair o assunto porque, segundo o semanário Sol, “dada a situação limite
ou era isso ou a TAP poderia perder tudo, uma vez que já tinha falhado
pagamentos relativos à pré-encomenda”. David Neeleman prepara-se agora para
sair da TAP, cobrando 55 milhões por uma empresa que não tem valor de mercado e
que comprou sem investir.
Nacionalizada ou
não, a TAP tal como existe não vai ser rentável e, nacionalizada ou não, padece
de uma epidemia que infetou as nossas economias, que é a privatização dos
ganhos e a coletivização das perdas. Que é como quem diz: a conta pagamos nós,
mas os ganhos vão para o bolso dos credores, acionistas e dirigentes. Isto não
é só a história da TAP. É a história do capitalismo do século XXI e de um país
com uma tradição de pouca exigência e transparência na utilização do dinheiro
público.
A autora escreve
segundo o novo acordo ortográfico
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