terça-feira, 21 de julho de 2020

Capitão banal

 António Costa e Silva
IMAGEM DE OVOODOCORVO


OPINIÃO
Capitão banal

Foi mesmo necessário ir buscar um homem do petróleo só para demonstrar como os homens do petróleo são especialistas em deturpar quer as causas, quer a resolução da crise climática?

João Camargo
21 de Julho de 2020, 0:25

Este não é o primeiro e seguramente não será o último artigo a comentar o “Plano de Recuperação Económica e Social de Portugal”, escrito por António Costa e Silva, professor do Instituto Superior Técnico e CEO da Partex Oil&Gas. Muitas apreciações, quer pelo conteúdo, quer pelo timing, consideram que o destino do “plano” é o mesmo que o do Guião da Reforma do Estado de Paulo Portas. Discordo desta análise. A banalidade nociva vertida parágrafo após parágrafo neste relatório é um espelho do corpo técnico que sustenta a burguesia portuguesa e no qual a mesma se revê, o que torna a probabilidade de o mesmo ser levado a sério perigosamente real.

Comecemos pelo óbvio: as 118 páginas de texto do plano de Costa e Silva são um cardápio costurado de brochuras comerciais de algumas das maiores empresas nacionais e internacionais. É, nesse sentido, também o plano político da elite do capitalismo português, isto é, nada. A nível nacional, como a nível europeu, não há qualquer plano para responder quer à crise climática, quer à crise da covid-19, quer à crise social e do desemprego. Há apenas rudimentos de como restabelecer a rota de acumulação de capital das empresas privadas e, portanto, António Costa e Silva corresponde à solicitação de António Costa, reiterando o programa político e económico do Partido Socialista.

Para que seja mais difícil perceber que o relatório é “conteúdo patrocinado”, há recurso permanente à novilíngua empresarial que ascendeu com a crise ambiental e climática. “Sustentabilidade”, claro, “verde” sempre que possível, e tudo “bio”. Bio- (-saúde; -economia; -indústria; -massa; -tecnologias; -resíduos; -materiais; -farmacêutica; -fertilizadores; -estimulantes; -médica; -combustíveis; -refinarias) é um dos prefixos favoritos e indica o forte pendor da economia neoclássica para estender a fronteira da mercantilização e exploração ao conjunto absoluto da natureza e transformar características biológicas em activos transaccionáveis. Há depois o hidrogénio verde, a mineração verde, os investimentos verdes, a fiscalidade verde, a economia verde e a cidade verde. Há mais “clusters” do que é possível enunciar, referindo-se aqui apenas dez: renováveis, hidrogénio, do mar, bio-saúde, saúde nacional, bioeconomia sustentável, da economia da defesa, do lítio, nióbio, tântalo e terras raras, de Viseu como paradigma da cidade do futuro, da paisagem rural e agrícola. Se parece muita coisa (há ainda pelo menos mais dez clusters) é porque é mesmo.

O facto de querer e indicar que é preciso investir em tudo, quer naquilo onde já há investimento, quer naquilo com que se fantasia, mostra a falta de plano do plano. Também demonstra a falta de reconhecimento da profundidade da crise social e ambiental em que vivemos. Apesar de anunciar que esta é a leitura de uma nova realidade de riscos, Costa e Silva apresenta uma proposta que agravaria muitos deles, nomeadamente a crise climática, de natureza existencial para a civilização.

É neste campo, no qual teoricamente o autor tenderia a trazer mais informação para avaliar novos riscos, que mais falha: foi mesmo necessário ir buscar um homem do petróleo só para demonstrar como os homens do petróleo são especialistas em deturpar quer as causas, quer a resolução da crise climática? Vejamos: Costa e Silva refere uma necessidade a nível global de cortar o consumo de carvão em 40% e de reduzir o consumo de petróleo em 15% até 2040. Estes valores são incompatíveis com atingir qualquer das metas do Acordo de Paris (que é insuficiente). Socorre-se – ou não fosse este o documento sancionado pelo Governo – do Plano Nacional de Energia e Clima 2030, do Roteiro para a Neutralidade de Carbono e do European Green Deal, para anunciar a neutralidade carbónica em 2050 e 50% de cortes de emissões em 2030 comparando com 1990. Nenhum destes planos permite manter o aumento de temperatura abaixo dos 1,5ºC ou dos 2ºC. Mas o consenso que existe hoje na burguesia europeia e nacional é este, um consenso que nega a ciência climática. Nesse capítulo, Costa e Silva apenas aproveita a boleia.

Depois da aceitação do erro científico, cava-se mais o fosso com o aprofundamento de políticas e projectos de aumento de emissões: expandir o uso de gás fóssil em Portugal, construir um gasoduto para ligar Sines à Europa (foi recentemente chumbado o MidCat, mas que interessa isso?), criar na Praia da Vitória um bunker para gás liquefeito no meio do Atlântico, construir um novo aeroporto no Montijo, expandir vários portos marítimos e avançar nas fronteiras da mineração, quer no mar profundo, quer em terra.

Sobre o sonho tecnológico, diz que “O hidrogénio, produzido a partir da hidrólise da água, é um gás renovável”. Costa e Silva sabe que a energia necessária para a hidrólise da água pode provir de qualquer fonte, renovável ou não, e apesar disso chama ao hidrogénio “gás renovável”. Pode eventualmente ser, mas considerando que o gás fóssil é transversal no plano e até que o autor explica o hidrogénio como gás para circular em gasodutos em conjunto com o gás “natural”, a nomenclatura “gases renováveis” toma formatos ridículos e entrevê-se só mais um plano para manter a produção de fósseis.

O Governo não tem qualquer plano que não seja fazer tudo o que as empresas já queriam. Ignorando olimpicamente os riscos, o plano é um colapso
“A única razão para não termos hoje um domínio maior da electricidade é porque ela não se pode armazenar a grande escala, à escala da rede. E é por isso que ainda temos o domínio do petróleo e gás, que se podem armazenar e consumir quando é necessário”, escreve. Costa e Silva pode ter aprendido isto no ensino da área petrolífera, enquanto geria na indústria petrolífera e provavelmente também será aquilo que ensina aos seus alunos. Apesar de bem elaborado, é errado. A razão pelo qual não se desenvolveram nas últimas sete a oito décadas alternativas eléctricas e energéticas a grande escala foi exactamente para garantir o domínio do petróleo e gás. Para garantir poder e o status quo global capitalista. A asfixia tecnológica levada a cabo pelas indústrias fósseis sobre alternativas energéticas explica-nos muito (talvez o principal) do porquê da crise climática não ser travada definitivamente, apesar de ser a maior ameaça alguma vez enfrentada pela humanidade. Também nos explica o porquê deste plano não ser só nocivamente banal como extremamente perigoso na sua banalidade: o capitalismo fóssil dirá tudo o que for preciso, pintar-se-á de que cor ache que lhe valha, contorcer-se-á sem restrições para continuar a acumular capital e expandir-se. Fá-lo-á instintivamente, irracionalmente, é a graduação dos óculos usados para ver o mundo, para viver no mundo. Sufocar qualquer alternativa real não é defeito, é feitio.

António Costa e Silva deve ter-se sentido lisonjeado por ter-lhe sido proposta a responsabilidade de fazer um plano para a vida de milhões de pessoas durante uma década, mas foi uma prenda envenenada. Aceitá-la fez com que António Costa e Silva pagasse o teatro de António Costa: representar o pensamento de ponta de uma elite banal, ser o capitão banal no lugar do primeiro-ministro. Em outros momentos históricos, esta banalidade poderia ser suficiente ou até triunfante. Na crise climática, a banalidade, vertida em “realismo” tecnológico ou em “pragmatismo” político, é uma perigosa âncora que nos arrasta para o fundo. O Governo não tem qualquer plano que não seja fazer tudo o que as empresas já queriam. Ignorando olimpicamente os riscos, o plano é um colapso.

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