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OPINIÃO
Estados Unidos do Apocalipse
Quem não tiver vivido a presidência de Donald Trump terá
dificuldade em acreditar que tudo isto aconteceu mesmo.
RUI TAVARES
1 de Junho de
2020, 5:40
Janeiro de 2017.
Donald Trump toma posse como 45.º Presidente dos Estados Unidos da América e no
seu discurso inaugural traça um retrato de um país em ruínas, com cidades em
cujos centros não se pode entrar, com universidades que “deixam os nossos
lindos estudantes privados de todo o conhecimento”, e “crime e gangues e
drogas” por todo o lado.
Quem o estivesse
a ouvir então pode ter parado para esfregar os olhos. De qual carnificina
americana estava ele a falar? O crime nos Estados Unidos da América vinha
descendo há décadas, os centros das cidades há muito que não eram tão seguros,
e tampouco se pode dizer que as universidades americanas fossem antros de
ignorância. O que Trump queria dizer era outra coisa: que nas universidades,
nos grandes centros culturais do país e entre as minorias étnicas estavam as
pessoas que não lhe davam a veneração de que ele se crê merecedor, e às quais
ele rancorosamente detesta. Trump é mesmo assim, e não mais complicado do que
isto: instinto egocêntrico puro, sem sombra de autocontrole.
O tom
apocalíptico do seu discurso não era, apesar de tudo, dirigido somente a si
mesmo. Como ele, há muita gente que acredita que Obama deixou o país num
cenário de terra queimada e pior do que nunca, que o mero facto de que o lugar
deles na hierarquia social do país já não possa ser ocupado sem esforço como
dantes significa apenas que as minorias, os jovens, as mulheres e os
estrangeiros só “lá” podem ter chegado fazendo batota. Trata-se de gente cujo
apego à democracia só dura enquanto as categorias que se habituaram a ver como
subalternas não ascendem. E esse é o cerne da visão trumpista do mundo — que
representa hoje, é bom lembrar, não mais do que uma minoria social e política
nos EUA, o que ajuda a explicar a negação permanente de Trump de que tenha perdido
no voto popular contra Hillary Clinton.
Mas numa coisa
Trump acertou, desde que pensemos no seu discurso não como diagnóstico, mas
como profecia. Olhamos para os Estados Unidos da América e que vemos hoje? Um
país, o mais poderoso, o mais tecnicamente apetrechado e tecnologicamente
avançado do mundo — mas que não consegue evitar ser o mais atingido pela
pandemia da covid-19, apesar de ter tido vários meses de avanço sobre a China,
o Irão e a Itália. Para todos aqueles à esquerda e à direita que compraram as
patranhas do nacional-populismo nos últimos anos, os EUA são indubitavelmente
um Estado-nação, com “identidade nacional” e amor pela bandeira em barda,
dotado de soberania supostamente ilimitada, da divisa de referência planetária
e da dívida pública mais comprada do mundo — mas com 40% milhões de
desempregados, uns 63% de aumento estimado das pessoas a necessitar de apoio
alimentar e uma sociedade tão polarizada que democratas e republicanos nem
conseguem concordar em relação à perigosidade da pandemia ou se o seu pico já
passou. Para uma federação com mais de 200 anos, o executivo mais poderoso em
regimes democráticos, um Congresso podendo mobilizar recursos praticamente
ilimitados e uma Constituição com competências bem estabelecidas em situações
de emergência — vemos que os Estados foram forçados a organizar-se em grupos
regionais no Pacífico, na Nova Inglaterra e por aí afora, para poderem
estabelecer centrais de compras de material médico à revelia do governo
federal.
Trump precisa do
caos para ganhar. Para bem dos Estados Unidos da América, esperemos que ele não
consiga. Mas quem vier a seguir vai ter muitas dificuldades em fazer sarar as
feridas
Mas Trump cumpriu
com o seu discurso inaugural. Ele disse que “a partir de agora vai ser só a
América primeiro, a América primeiro!” — e o seu caos chegou à América
primeiro.
E o pior é que
Trump precisa desse caos para ganhar. Não poderá chegar lá pela economia, nem
pela gestão de crise na pandemia, mas poderá chegar lá se fomentar o ambiente
apocalíptico com que ele e os seus apoiantes mais ferrenhos sempre efabularam,
de forma a poder apresentar-se como o candidato da Lei e da Ordem, e
capitalizar sobre as tensões raciais que exacerbou.
Para bem dos
Estados Unidos da América, esperemos que ele não consiga. Mas quem vier a
seguir vai ter muitas dificuldades em fazer sarar as feridas.
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