segunda-feira, 1 de junho de 2020

Estados Unidos do Apocalipse

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OPINIÃO
Estados Unidos do Apocalipse

Quem não tiver vivido a presidência de Donald Trump terá dificuldade em acreditar que tudo isto aconteceu mesmo.

RUI TAVARES
1 de Junho de 2020, 5:40

Janeiro de 2017. Donald Trump toma posse como 45.º Presidente dos Estados Unidos da América e no seu discurso inaugural traça um retrato de um país em ruínas, com cidades em cujos centros não se pode entrar, com universidades que “deixam os nossos lindos estudantes privados de todo o conhecimento”, e “crime e gangues e drogas” por todo o lado.

Quem o estivesse a ouvir então pode ter parado para esfregar os olhos. De qual carnificina americana estava ele a falar? O crime nos Estados Unidos da América vinha descendo há décadas, os centros das cidades há muito que não eram tão seguros, e tampouco se pode dizer que as universidades americanas fossem antros de ignorância. O que Trump queria dizer era outra coisa: que nas universidades, nos grandes centros culturais do país e entre as minorias étnicas estavam as pessoas que não lhe davam a veneração de que ele se crê merecedor, e às quais ele rancorosamente detesta. Trump é mesmo assim, e não mais complicado do que isto: instinto egocêntrico puro, sem sombra de autocontrole.

O tom apocalíptico do seu discurso não era, apesar de tudo, dirigido somente a si mesmo. Como ele, há muita gente que acredita que Obama deixou o país num cenário de terra queimada e pior do que nunca, que o mero facto de que o lugar deles na hierarquia social do país já não possa ser ocupado sem esforço como dantes significa apenas que as minorias, os jovens, as mulheres e os estrangeiros só “lá” podem ter chegado fazendo batota. Trata-se de gente cujo apego à democracia só dura enquanto as categorias que se habituaram a ver como subalternas não ascendem. E esse é o cerne da visão trumpista do mundo — que representa hoje, é bom lembrar, não mais do que uma minoria social e política nos EUA, o que ajuda a explicar a negação permanente de Trump de que tenha perdido no voto popular contra Hillary Clinton.

Mas numa coisa Trump acertou, desde que pensemos no seu discurso não como diagnóstico, mas como profecia. Olhamos para os Estados Unidos da América e que vemos hoje? Um país, o mais poderoso, o mais tecnicamente apetrechado e tecnologicamente avançado do mundo — mas que não consegue evitar ser o mais atingido pela pandemia da covid-19, apesar de ter tido vários meses de avanço sobre a China, o Irão e a Itália. Para todos aqueles à esquerda e à direita que compraram as patranhas do nacional-populismo nos últimos anos, os EUA são indubitavelmente um Estado-nação, com “identidade nacional” e amor pela bandeira em barda, dotado de soberania supostamente ilimitada, da divisa de referência planetária e da dívida pública mais comprada do mundo — mas com 40% milhões de desempregados, uns 63% de aumento estimado das pessoas a necessitar de apoio alimentar e uma sociedade tão polarizada que democratas e republicanos nem conseguem concordar em relação à perigosidade da pandemia ou se o seu pico já passou. Para uma federação com mais de 200 anos, o executivo mais poderoso em regimes democráticos, um Congresso podendo mobilizar recursos praticamente ilimitados e uma Constituição com competências bem estabelecidas em situações de emergência — vemos que os Estados foram forçados a organizar-se em grupos regionais no Pacífico, na Nova Inglaterra e por aí afora, para poderem estabelecer centrais de compras de material médico à revelia do governo federal.

 E, com isso tudo, foi ainda há poucas semanas que o Presidente incentivou manifestantes a ocuparem os congressos estaduais protestando contra as próprias medidas de segurança anti-pandemia. A esses manifestantes armados ocupando as sedes legislativas dos Estados, Donald Trump demonstrou compreensão e pediu aos governadores que tratassem cordialmente as poucas dezenas de amotinados. Agora que milhares de manifestantes saem à rua para protestar contra o racismo estrutural das forças policiais após mais um assassinato de um cidadão negro, George Floyd, cujas imagens correram mundo, Donald Trump não pede compreensão, mas ameaça com mais violência. Ah, e não esqueçamos que pelo meio começou já a lançar dúvidas sobre o voto por correspondência nas próximas eleições, no meio de uma pandemia, para melhor poder contestar o resultado se for derrotado. É obra. Quem não tiver vivido esta presidência terá dificuldade em acreditar que tudo isto aconteceu mesmo.

Trump precisa do caos para ganhar. Para bem dos Estados Unidos da América, esperemos que ele não consiga. Mas quem vier a seguir vai ter muitas dificuldades em fazer sarar as feridas
Mas Trump cumpriu com o seu discurso inaugural. Ele disse que “a partir de agora vai ser só a América primeiro, a América primeiro!” — e o seu caos chegou à América primeiro.

E o pior é que Trump precisa desse caos para ganhar. Não poderá chegar lá pela economia, nem pela gestão de crise na pandemia, mas poderá chegar lá se fomentar o ambiente apocalíptico com que ele e os seus apoiantes mais ferrenhos sempre efabularam, de forma a poder apresentar-se como o candidato da Lei e da Ordem, e capitalizar sobre as tensões raciais que exacerbou.

Para bem dos Estados Unidos da América, esperemos que ele não consiga. Mas quem vier a seguir vai ter muitas dificuldades em fazer sarar as feridas.

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