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OPINIÃO
Os valores sumiram
A saga da TAP é um bom exemplo da promiscuidade de
interesses, da fraqueza negocial de Portugal e da debilidade das instituições
com a missão de fiscalizar e avaliar.
ANTÓNIO BARRETO
5 de Julho de
2020, 6:34
Classicamente, a
ideia era “cherchez la femme”. Hoje, já não é assim. Mesmo nos casos em que se
sabe que “la femme” anda por ali, essa não é a questão. O verdadeiro problema é
“onde está o dinheiro?”. Assim mesmo. Dito à bruta. Como nos barbeiros, nas
redes sociais e nos táxis. “Onde está o nosso dinheirinho”? Em geral, não há
resposta. Quem a poderia dar, empresários, governantes e jornalistas, não
querem saber, escondem, têm medo de perguntar, receiam desvendar… E os
contribuintes são inundados de expressões malditas: vamos investigar “até às
últimas consequências”, “doa a quem doer”. Depois, segue-se o silêncio. Ou a
confusão criada pelos novos enigmas dos “activos”, das “mais-valias” e das
“perdas de valor”. Assim se criou um dos mais opacos universos que se imagina.
Verdade é que não
percebemos o que se passa. Há poucas pessoas que nos expliquem com honestidade
e clareza. Não há muitos jornalistas que perguntem nem investigadores capazes
de esclarecer os “problemas sistémicos” e o “enquadramento”. O universo
político financeiro é o mais espesso e o mais censurado que se conhece.
Para mais, quem
se envolve nestas questões tem marca. Envolvimento de interesses. Simpatia
partidária. Dependência económica e publicitária. Hipoteca ideológica. Se, em
muitas matérias de interesse colectivo, é possível encontrar quem preste o
serviço de explicar, nestes assuntos financeiros, com ramificações políticas,
pessoas nessas condições são quase inexistentes. Quem se aventura a explicar
bem, entre outros, o BES, o BPN, a PT, a EDP, a TAP, o BANIF, a REN e o
Montepio, assim como as PPP, sabe que, algures, podem ser pesadas as
represálias no emprego, na publicidade e na informação.
Vivemos em
sociedade muito divida, mais do que parece à primeira vista. As ideias do
“caldeirão central” e do “consenso” são geralmente falsas. Quem tem opinião
sobre os bancos e as empresas, sobre os negócios dos privados e do Estado, tem
uma visão previsível. E os partidos não ajudam muito. À direita, gostam de
justicialismo, mas sentem que têm telhados de vidro. À esquerda, está-se sempre
pronto a condenar os privados, a fim de desculpar os políticos. À direita, a
regra que tudo define é a empresa privada, à esquerda é a nacionalização e o
Estado. Qualquer plano de esquerda começa e acaba sempre com a nacionalização.
Nos caos mais duros, próprios ao BE e ao PCP, a inspiração é mais radical:
liquidar a empresa privada. Em contraste, qualquer plano de direita para a
economia e os serviços vive da empresa privada, com recurso ao Estado para os
prejuízos, as contingências e os imponderáveis.
Quem ganhou e
quem perdeu com a gestão pública da TAP, seguida da privatização manhosa,
corrigida de modo a que não ficasse só pública, nem só privada? Quem ganhou com
as centenas de milhões que circularam em poucos anos com estas operações?
Quem ganhou e
quem perdeu com a gestão do BPN? Por que se decidiu que a sua falência teria
problemas sistémicos? Qual foi a vantagem da nacionalização se o banco acabou
no que acabou, com milhares de milhões a pagar pelos contribuintes? Como se
perdeu valor com o BPN? Quem roubou no BPN? Onde está o dinheiro? Sumiu?
Quem ganhou e
quem perdeu com o BES, com este que parece ser o maior golpe sórdido da
história da economia e das finanças portuguesas, onde está o valor destruído, o
valor perdido, o valor desviado e o valor açambarcado? Desapareceu?
Quem ganhou e
quem perdeu com a destruição da PT, uma das melhores empresas portuguesas, mais
enérgica, com mais capacidade de inovação e projecção externa? É verdade que
muito cedo se verificou uma tendência para empregar consultores familiares de
políticos, parentes de empresários e associados a banqueiros, o que não ajuda
muito ao escrutínio… Mas era, apesar de tudo, uma das raras realizações
empresariais portuguesas dignas de nota e mérito. Era…
Quem ganhou e
quem perdeu com a transformação da EDP naquela que será talvez a maior e mais
poderosa empresa portuguesa, agora chinesa, recheada de rendas de Estado, amiga
de políticos, empregadora de celebridades de esquerda e de direita, com uma
especial experiência no mercado de influências?
Como é possível
que as histórias destas empresas sejam contadas com ardil: por gente de
esquerda que detesta a propriedade privada e geme de amor pela gestão pública;
ou por gente de direita que procura desculpas para qualquer gesto de protecção
do lucro privado a que preço for. Como é possível que seja tão difícil
encontrar quem, com espírito independente e sem preconceito comunista ou
capitalista, se dedique a estudar e a contar estas histórias?
Alguns dos poucos
livros interessantes sobre os “negócios” da nacionalização e da reprivatização
são escritos por militantes de esquerda que odeiam a iniciativa privada e o
mercado. Os poucos livros interessantes sobre estes negócios escritos por
autores que aceitam a propriedade privada têm o triste condão de serem
herméticos, tecnocratas e esconderem parte da verdade, justamente a mais
sumarenta.
Portugal perdeu
décadas com a ditadura. Com a Guerra Colonial, perdeu quinze anos e quase uma
dezena de milhares de vidas. Com as nacionalizações, Portugal perdeu tempo e
riqueza. Com as privatizações e as reprivatizações, Portugal perdeu mais tempo
e valor. Quanto dinheiro e quantas pessoas se perderam para prolongar a guerra
em África? Quantas vidas se perderam para descolonizar da maneira que se fez?
Quanto dinheiro e quanta riqueza os portugueses perderam para nacionalizar e
reprivatizar? A TAP faz parte desta história de desastres, é uma saga, um
folhetim, uma telenovela…
Em quase todos os
negócios importantes realizados em Portugal nas últimas décadas e envolvendo
grandes projectos, fusões de empresas, nacionalizações e reprivatizações,
Portugal ficou a perder alguma coisa e os portugueses ficaram a perder muito.
Conhecem-se alguns casos, muito poucos, de grandes investimentos ou transacções
que resultaram e os contribuintes, os accionistas e os trabalhadores ficaram a
ganhar, mas são tão poucos! Na maior parte dos casos, os contribuintes ficaram
a perder.
A saga da TAP é
um bom exemplo da promiscuidade de interesses, da fraqueza negocial de Portugal
e da debilidade das instituições com a missão de fiscalizar e avaliar. Assim
como do pensamento dogmático em vigor, à esquerda como à direita, relativamente
aos grandes problemas nacionais. Haverá certamente alguém que, um dia, fará a
história verdadeira da TAP, mas será seguramente tarde de mais! Até esse dia,
teremos de viver com este mito e este nó cego.
Sociólogo
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