domingo, 19 de julho de 2020

Medina quer reconstruir o que foi aniquilado, por Vítor Belanciano / Os efeitos da Turistificação de Lisboa, por António Sérgio Rosa de Carvalho


                              IMAGEM DE OVOODOCORVO
Fernando Medina: "Não sei o que é ter turistas a mais"
O presidente da Câmara de Lisboa rejeita o conceito de "turismo a mais" e sublinha que é necessário assegurar que não há "estrangulamentos na procura"
27 de Setembro de 2016


CRÓNICA
Medina quer reconstruir o que foi aniquilado

As últimas declarações de Fernando Medina acerca de Lisboa surpreenderam, porque em grande medida são a antítese das políticas desencadeadas nos últimos anos. Será possível uma inversão?

VÍTOR BELANCIANO
19 de Julho de 2020, 7:58

A publicidade, como se viu durante o confinamento, transfigura-se. Um dia, acena-nos que alcançaremos o topo do mundo se comprarmos o último modelo de telemóvel, e no seguinte, propaga os valores da solidariedade e da generosidade, com o mesmo objectivo: vender.

As últimas declarações de Fernando Medina é nisso que fazem pensar. A “marca” Lisboa – como passou a dizer-se – tem de se reposicionar no competitivo mercado global das cidades e muda-se de discurso. Há um ano o presidente da Câmara partilhava nas redes sociais um artigo do The Times onde Lisboa era qualificada como cidade das “oportunidades” para os investidores. Nada de mais, já que sempre defendeu o turismo a todo o vapor e a atracção de investimento estrangeiro e de grandes eventos como motores da “marca”. Quem podia “consumia” essa cidade. Os outros foram expulsos dela.

Agora as “oportunidades” poderão advir da pós-pandemia. Ainda esta quinta-feira, quando participava num debate, afirmou que as dificuldades podem ser oportunidades para resolver problemas, como o acesso à habitação, o congestionamento ou a poluição, repetindo aquilo que já opinara no jornal inglês The Independent no início do mês. Aí defendia a redução dos arrendamentos turísticos de curta duração, o acesso à habitação das classes médias, a diversificação do tecido social e económico, um turismo mais sustentado, compatível com os que residem e trabalham nos centros urbanos, enfim, uma cidade mais densa, compacta, com bairros de escala humana, e atenta aos valores ambientais.

É como se depois da pandemia se tivesse apoderado das críticas que lhe foram sendo endereçadas ao longo dos anos, mas sem que em algum momento reflectisse sobre o que nos fez chegar aqui. Esta visão não é nova. Também no passado recente a narrativa de que as crises aguçam o engenho se impôs. Foi assim na Lisboa pós-crise financeira, que arriscou tudo na monocultura do turismo, com os resultados que agora se vislumbram, devido à excessiva dependência. Nada contra o turismo, seja do ponto de vista cultural, da diversidade ou económico, mas na aposta num único vector de desenvolvimento, com efeitos na especulação imobiliária e no sacrifício do tecido social urbano, sem que exista uma visão integrada da cidade e sem que os problemas estruturais da área metropolitana sejam resolvidos, como agora o vírus expôs, reforçando as desigualdades.

No meio destas inesperadas declarações, contrárias às políticas desenvolvidas até aqui, não se vislumbra um plano estratégico, para lá das palavras de ocasião. Pior. Se existiu algo que ficou patente nos últimos anos foi a incapacidade de fazer participar os cidadãos nas decisões, fruto de uma administração demasiado hierarquizada. Onde está um plano para incentivar o debate de ideias e de propostas?

Têm existido algumas medidas envolvendo percursos cicláveis que, apesar de nem sempre bem delineados, vão na direcção da filosofia certa, e declarações no sentido de se transformar parcialmente o alojamento local para arrendamento de longa duração a custos acessíveis. Mas não nos iludamos. Isso é quase nada. Os transportes, a habitação e as inúmeras exclusões, não se resolvem com medidas suavizantes. É preciso que os cidadãos sintam que não são as ambições de fundos imobiliários ou de grandes promotores que são protegidos e que a defesa do interesse público e do bem comum estão em primeiro lugar.

A tarefa é complexa. Mas se não for desencadeada ficaremos pelos rótulos promocionais da cidade. Cabe a Medina decidir se quer ser uma marioneta do jogo do capital, que está sempre cómodo em reconstruir aquilo que vai aniquilando — é aliás assim que nos mantém presos na sua teia, criando a ilusão da transformação e do dinamismo — ou passar das palavras à acção, encetando verdadeiras mudanças e envolvendo nelas os cidadãos.


E… a 23 de Novembro de 2016




OPINIÃO
Os efeitos da Turistificação de Lisboa

Cada vez mais gente e menos lisboetas. Câmara entrega a gestão da habitação ao aluguer online de alojamento para férias

António Sérgio Rosa de Carvalho
23 de Novembro de 2016, 9:45

Fernando Medina  não acompanha a Imprensa internacional. Se o fizesse, ter-se-ia apercebido de uma avalanche de notícias na Imprensa local de Nova Iorque e de  várias cidades Europeias sobre os efeitos perversos conjugados e interactivos da Turistificação desenfreada, da Globalização desmedida e da Gentrificaçào galopante na vida quotidiana dos habitantes locais nestas cidades.

Um clamor profundo, uma agitação permanente de insatisfação e um desejo urgente e imperativo de mudança, de regulamentos, de fiscalização e  de liderança  por parte dos habitantes, ameaça traduzir-se em consequências políticas, e faz acordar os autarcas.

Temos ouvido sobre as situações em Barcelona e Berlim e das condições impostas à AIRBNB que vão desde a proibição total na capital alemã até à imposição de um rigoroso regulamento na cidade da Catalunha.

Numa longa luta do Municipal com a Airbnb [aluguer de alojamento para férias], Nova Iorque quer agora proibir o aluguer de alojamentos através da AIRBNB por um período inferior a 30 dias. Medida destinada a proteger a cidade dos efeitos perversos das estadias curtas / low cost do turismo barato, massificado, predador e desinteressante. Densidade intensa de ocupação do espaço físico sem interesse económico e mais valias financeiras, a não ser, para os estabelecimentos também eles “predadores” do comércio tradicional, ou seja, “comes e bebes” e “quinquilharia” pseudoturística em dezenas de lojas asiáticas e afins. 

A 6 de Outubro, o “Guardian” publicou um conjunto de três artigos sobre a interligação destes temas, tendo um deles sido dedicado à relação de Amsterdão com a AIRBNB.

Embora Amsterdão tenha imposto um regulamento claro à Airbnb, ocupação máxima  de 60 dias por ano e o máximo de quatro pessoas por edifício, os efeitos sociais de descaracterização dos bairros têm sido devastadores. O investimento especulativo junto à forte subida do preço da habitação (também no aluguer a “expats” do mundo empresarial ) está a expulsar progressivamente os habitantes locais,  transformando os bairros em plataformas rotativas e contínuas de “idas e vindas” de forasteiros híper individualizados e indiferentes aos locais, e a transformar os antigos bairros em locais alienados onde ninguém se conhece e onde reina o anonimato.

Amsterdão tem  fiscalizado intensamente a ocupação através da  Airbnb mas é confrontada com a recusa pela própria Airbnb de fornecimento de dados. Num espaço limitado fisicamente como a pitoresca Amsterdão, a invasão turística low-cost / aluguer Airbnb, está a levar a efeitos explosivos no trânsito, no comércio local onde polulam as lojas de vocação turística e de souvenirs e está a provocar uma avalanche de insatisfação traduzida em irritação ou animosidade explícita para com o turismo.

 De tal forma que, muito recentemente, a autarquia fez um discurso explícito inteiramente dedicado a estes temas, onde anunciou uma atitude de exigência e fiscalização ainda mais rigorosa para com a Airbnb, medidas legislativas em conjunto com Haia que tornem possível a escolha do tipo de lojas a instalar em cada rua e uma atitude nítida de selecção do tipo de turismo,  numa definição e escolha dirigida à clara diferenciação entre o turismo desejável e indesejável.

Numa entrevista publicada a 18 de Janeiro no PÚBLICO, o Director Ibérico da Airbnb anunciava orgulhoso: “A evolução em 2015 face ao ano anterior foi de 65%. Portugal está no 11.º lugar mundial em termos de anúncios na Airbnb, num ranking liderado pelos EUA. A Airbnb captou um milhão de pessoas em 2015.”

Orgulhoso, e claro, satisfeito. A Airbnb não está sujeita a qualquer tipo de regulamento, exigência ou fiscalização em Portugal. Mais. A AIRBNB colabora com a Autarquia e o Governo, de forma a que os impostos sejam cobrados ao Alojamento Local. Estes aumentaram.

Mas os efeitos devastadores são ignorados ou mesmo negados por Fernando Medina que se tem mostrado irónico ou furtivo sobre estes problemas fundamentais para o presente e o futuro estratégico da cidade de Lisboa.

Que este se torne o tema fundamental de discussão de todas as forças políticas em direcção às eleições autárquicas, é um imperativo. Não se trata de cor política, mas de um tema Universal de Ecologia Urbana e de equilíbrio salutar no organismo vivo que constitui uma verdadeira cidade.

A Turistificação desenfreada, a Globalização desmedida e a Gentrificaçào galopante estão a matar as cidades.


                                           Historiador de Arquitectura

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