REPORTAGEM
COVID-19
Entre a resistência e a queda, o comércio tradicional em
modo SOS
Os dias são incertos e afundam dificuldades para quem
tenta resistir com as lojas abertas nas ruas do Porto e de Lisboa. Os turistas
desapareceram, os portugueses são ainda poucos. Comerciantes falam de quebras
acima dos 50% e alguns já fecharam mesmo portas. Associações das duas cidades
pedem mais apoios
Mariana Correia
Pinto e Cristiana Faria Moreira 20 de Julho de 2020, 7:15
A palavra de
ordem é “resistir” e Olga Oliveira não prescinde dela. Mas a reabertura do
comércio tradicional após o confinamento obrigatório, cumprida há cerca de dois
meses, fez dos dias da lojista um jogo de paciência e luta contra o desânimo.
Da perfumaria Capitólio vislumbra uma Rua de Santa Catarina como nunca viu.
Vazia e mais silenciosa. Quase sem turistas e com poucos portugueses. Dias há
em que não tem um único cliente de manhã à noite e as quebras, comparativamente
com o mesmo período de outros anos, “chegam aos 80%”. Dos três trabalhadores da
casa, apenas ela mantém o emprego.
Este é um drama
vivido porta sim porta sim em muitas ruas do Porto e de Lisboa. O comércio
tradicional está em crise: alguns estabelecimentos já fecharam portas, muitos
estão em risco de o poder fazer. As associações das duas cidades pedem apoio a
fundo perdido e no pagamento das rendas — e apelam à eleição deste comércio na
hora de fazer compras.
“Temos alturas em
que da parte da tarde não entra quase nenhum cliente até à noite”
Num breve passeio
pela baixa da capital, o cenário é idêntico. Os turistas que por ali andavam
sempre para trás e para a frente, a demorarem-se a mirar as montras, ainda vão
demorar a voltar, embora se avistem já alguns de mochila às costas e de
telemóvel da mão, seguindo as coordenadas até ao próximo destino.
Turistas? Poucos
Da sua histórica
retrosaria, Alfredo Ricardo vê os eléctricos passarem quase sem gente dentro.
“Está muito mau mesmo”, resume o proprietário da Alexandre Bento, Lda. Aos 79
anos, mais de seis décadas passadas dentro daquele centenário espaço, Alfredo
vê-se em dificuldade para pagar os ordenados aos funcionários — um deles o do
filho — que ainda permanecem em lay-off parcial e fazer face às despesas e à
renda.
Com quase dois
meses sem facturar, as vendas ainda se mantêm hoje a metade dos tempos
pré-pandémicos. Valeu-lhe uma corrida inicial aos elásticos e às linhas por
quem começou a produzir máscaras em casa para vender e ganhar também algum.
Entretanto, esse movimento já amainou.
A clientela que
vai aparecendo é muito pouca, queixa-se o lojista. Por ali, o negócio feito com
turistas e portugueses era “ela por ela”. Numa baixa desertificada e com o
teletrabalho a manter as pessoas em casa, são poucos os que por ali passam.
Ainda menos os que entram. “Se estão em teletrabalho e moram nos arredores de
Lisboa, não vêm aos sítios para cortar o cabelo, fazer uma barba, comprarem
certas coisas. Temos alturas em que da parte da tarde não entra quase nenhum
cliente até à noite.”
Onde estão os
portugueses?
No Porto, na
perfumaria Capitólio, com mais de meio século de vida, a dependência do mercado
turístico nem era excessiva. “Tentamos sempre manter o equilíbrio”, conta Olga
Oliveira, lojista há 25 anos. Depois da pandemia, no entanto, não foram só os
turistas quem desapareceu. E esse é o drama maior.
“Onde estão os
portugueses? Queixavam-se que só havia turistas na cidade. E agora que não há
turistas, onde estão os portugueses?”, questiona-se, avançando uma teoria que
mistura o “receio” da covid-19 e a “falta de dinheiro”. Uma coisa tem por
certa: “Se isto se mantiver assim, dentro de um ano mais de metade das lojas de
Santa Catarina estão fechadas.”
Alfredo Ricardo
não antecipa melhor futuro para as lojas da baixa de Lisboa. “Como era dantes
acho que já não vai ser.” Vê já vários espaços fechados nas ruas da Prata, dos
Fanqueiros. Além disso, diz o lojista, as máscaras e o distanciamento são “incomodativos”.
Por ali, gosta-se de falar com os clientes cara a cara, olhos nos olhos. “Hoje
os clientes passam e nem os conhecemos.”
Em Portugal, o
comércio significa três milhões de postos de trabalho directos ou indirectos. A
Associação de Comerciantes do Porto não tem números da crise actual na cidade,
mas fala em “grandes dificuldades” e na “urgência” de apoio. A maioria dos
espaços está a “tentar resistir”, mas apresenta quebras “acima dos 50%”.
Outros, “já foram ou serão mesmo obrigados a fechar”.
Entre esses, não
esconde o presidente da associação, Joel Azevedo, embora prefira não citar
exemplos, estão alguns dos estabelecimentos mais simbólicos do Porto. “Existem
várias lojas históricas e identitárias da cidade que estão em risco e podem
fechar.”
As dificuldades
eram expectáveis, mas Joel Azevedo admite que superam o pior cenário traçado:
“Este período está a ser mais difícil e a alongar-se mais do que estávamos à
espera.” Se durante o confinamento a ordem foi aguentar para reabrir, agora é
aguentar para não fechar. “Há custos inerentes à actividade, como rendas, luz,
água, pessoal. E a receita é quase a mesma. Não chega para pagar os custos”,
explana.
Evitar o
endividamento
A linha de
crédito anunciada pelo Ministério da Economia para apoio ao comércio é
positiva, mas “insuficiente”. E pode até ser uma duplicação do problema. “Em
alguns casos pode resolver o problema agora e hipotecar o futuro”, teme Joel
Azevedo, alertando para a necessidade de “evitar o endividamento do comércio,
sob pena de o condenar definitivamente.”
A conjectura de
uma hecatombe exige outro passo, aponta a associação. “Tem de ser colocada a
hipótese de uma linha a fundo perdido, com um compromisso de os comerciantes
pagarem a cinco ou dez anos, assumindo o compromisso de manter o quadro de
pessoal.”
Em Lisboa, a
União de Associações de Comércio e Serviços (UACS) concorda com a proposta dos
apoios a fundo perdido e lança a ideia ao município para a criação de um fundo
de emergência municipal dedicado às empresas. Para a presidente, Lourdes
Fonseca, fazem falta também apoios ao pagamento das rendas, à semelhança do que
foi feito nos centros comerciais. “Há rendas que estão desajustadas, que
sofreram grandes aumentos, e que podem implicar que algumas lojas não consigam
manter-se”, nota a responsável.
Segundo as contas
da UACS, entre os seus 2500 associados (onde não se incluem os do sector da
restauração), cerca de 100 empresas da capital — algumas com vários
estabelecimentos — estão a avaliar a sua sustentabilidade e a continuação do
negócio. “Existe um desespero muito grande por não saberem se vão conseguir
sobreviver”, nota Lourdes Fonseca.
Mercearias
aguentam melhor
Quanto a números
relativos aos encerramentos já concretizados devido à pandemia, a responsável
diz não ter dados, mas adianta que sectores como os da moda, estética,
drogarias e lavandarias estão entre os mais “penalizados”. Os negócios que
vendem bens de primeira necessidade, como as mercearias, “equilibram-se
melhor”.
“Já passei por
muito. Mas crise disfarçada como esta nunca vi. Está tudo a queixar-se.”
Se o primeiro
impacto é para aqueles que têm a porta aberta, mas não têm clientes, Lourdes
Fonseca lembra que há um conjunto de problemas que se formam a jusante: “Com as
lojas fechadas, há contabilistas que ficam com menos empresas com quem
trabalhar, há vários fornecedores que perdem clientes... isto tem consequências
muito maiores.”
Se estes
argumentos não chegarem, Joel Azevedo tem um economicista: “A atracção de
Portugal em termos turísticos é muito pelo comércio mais tradicional e
identitário das cidades. Ao perder este tipo de comércio estamos a pôr em causa
parte deste interesse turístico.”
"Quero
deixar isto ao meu filho"
Aos 72 anos,
Filomena Costa conta, orgulhosa, como a loja de ferragens fundada pelo seu avô
há quase cem anos aparece referenciada nos guias turísticos. Ainda que por ali
sejam mais os lisboetas a aparecer para comprar, por exemplo, uma torneira ou
um toalheiro, ou a pedir uma réplica de um puxador antigo que se estragou, esta
pitoresca loja da Rua João das Regras chama a atenção dos turistas.
Quando apareceram
no país as grandes cadeias de lojas de bricolagem, a Costa & Costa, L.da
ressentiu-se, mas Filomena pôs mãos à obra e fez a loja crescer para mais um
andar, sem nunca fechar portas. Por isso, os quase dois meses em que esteve
encerrada devido ao estado de emergência foram um momento excepcional para a
lojista. E a retoma está a ser lenta. “Tinha dias de atender 90 a 100 clientes.
Hoje está fraco. Ontem atendemos quase 40”, conta. Esperançosa em relação ao
futuro, por agora, não lhe passa pela cabeça ter de fechar o estabelecimento.
“Eu quero deixar isto para o meu filho, que já cá está, e para o meu neto.”
Na Berbicacho de
Campo de Ourique, Clotilde Madeira não tem meias palavras para descrever o
negócio nos últimos meses: “Tem corrido pessimamente.” Nesta loja onde se
vendem casquinhas, peças de decoração de metais banhados a prata, o ano passado
tinha preenchido as expectativas. Desde que reabriu, em Maio, Clotilde vendeu
quatro peças novas. O que lhe tem permitido aguentar-se são os restauros de
peças antigas, a renda baixa e a funcionária que entretanto se reformou.
As quebras são
superiores a 70% e semelhantes às de outros negócios da vizinhança. “A maior
parte [das lojas] está sem saber que volta vai dar ao texto. Umas lojas já
fecharam, outras irão fechar. Há lojas que fecharam na altura do confinamento e
nunca mais abriram.”
Na histórica Casa
Rocha, no Porto, o desânimo tem mais nuances. Alzira Teixeira, máscara do Harry
Potter na cara, repete o verbo “resistir”, tantas vezes ouvido entre lojistas,
quando a pergunta é sobre os dias pós-confinamento. Mas na retrosaria, um
negócio já com pouca concorrência na zona, beneficia-se do momento: se poupar
se tornou mais importante no meio da crise, comprar tecidos, linhas, botões e
outros acessórios é essencial. “Houve uma quebra, mas se continuar assim ainda
dá para aguentar.”
Recuperação
natalícia
O mesmo não se
passa na Casa Neves, onde a falta de turistas significa metade da clientela
eliminada à partida. Quem o conta é Gonçalo Neves, “da terceira geração de
lojistas”, a habituar-se aos dias incertos e a um “processo de recuperação
muito lento”: “Ontem foi um dia bom, hoje não está a ser”, exemplifica. Uma
diferença é de sublinhar, nota com a concordância da também lojista Ana Maria
Freitas: “As pessoas não vêm aqui por vir. Se entram é quase sempre para
comprar.”
O anseio de
António Reis é o Natal. Pode vir ainda longe no calendário, mas para o homem de
87 anos, nascido no edifício onde se instalou a Pérola do Bolhão, junto ao
histórico mercado do Porto actualmente em obras, está já aí. “Estamos aqui
sempre à espera que melhore. Estamos a caminho do Natal, chega num instante, e
a esperança é que melhore aí”, afirma o proprietário da mercearia. Até agora,
“regresso ao trabalho” é expressão que nem gosta de usar: “Não há regresso
nenhum. Os poucos turistas que passam não entram. Os nacionais tenho a impressão
que estão a poupar porque não sabem o dia de amanhã…”
Uma vida toda no
comércio na Rua Formosa já o fez atravessar muitas crises: a das cidades sem
gente no centro, a da especulação imobiliária e até a das obras do Bolhão (que
de bom só trouxe a “bendita indemnização” da Câmara do Porto). “Já passei por
muito. Mas crise disfarçada como esta nunca vi. Está tudo a queixar-se.”
tp.ocilbup@otniP.anairaM
tp.ocilbup@arierom.anaitsirc
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