domingo, 19 de julho de 2020

Entre a resistência e a queda, o comércio tradicional em modo SOS



REPORTAGEM COVID-19
Entre a resistência e a queda, o comércio tradicional em modo SOS

Os dias são incertos e afundam dificuldades para quem tenta resistir com as lojas abertas nas ruas do Porto e de Lisboa. Os turistas desapareceram, os portugueses são ainda poucos. Comerciantes falam de quebras acima dos 50% e alguns já fecharam mesmo portas. Associações das duas cidades pedem mais apoios

Mariana Correia Pinto e Cristiana Faria Moreira 20 de Julho de 2020, 7:15

A palavra de ordem é “resistir” e Olga Oliveira não prescinde dela. Mas a reabertura do comércio tradicional após o confinamento obrigatório, cumprida há cerca de dois meses, fez dos dias da lojista um jogo de paciência e luta contra o desânimo. Da perfumaria Capitólio vislumbra uma Rua de Santa Catarina como nunca viu. Vazia e mais silenciosa. Quase sem turistas e com poucos portugueses. Dias há em que não tem um único cliente de manhã à noite e as quebras, comparativamente com o mesmo período de outros anos, “chegam aos 80%”. Dos três trabalhadores da casa, apenas ela mantém o emprego.

Este é um drama vivido porta sim porta sim em muitas ruas do Porto e de Lisboa. O comércio tradicional está em crise: alguns estabelecimentos já fecharam portas, muitos estão em risco de o poder fazer. As associações das duas cidades pedem apoio a fundo perdido e no pagamento das rendas — e apelam à eleição deste comércio na hora de fazer compras.

“Temos alturas em que da parte da tarde não entra quase nenhum cliente até à noite”
Num breve passeio pela baixa da capital, o cenário é idêntico. Os turistas que por ali andavam sempre para trás e para a frente, a demorarem-se a mirar as montras, ainda vão demorar a voltar, embora se avistem já alguns de mochila às costas e de telemóvel da mão, seguindo as coordenadas até ao próximo destino.

Turistas? Poucos
Da sua histórica retrosaria, Alfredo Ricardo vê os eléctricos passarem quase sem gente dentro. “Está muito mau mesmo”, resume o proprietário da Alexandre Bento, Lda. Aos 79 anos, mais de seis décadas passadas dentro daquele centenário espaço, Alfredo vê-se em dificuldade para pagar os ordenados aos funcionários — um deles o do filho — que ainda permanecem em lay-off parcial e fazer face às despesas e à renda.

Com quase dois meses sem facturar, as vendas ainda se mantêm hoje a metade dos tempos pré-pandémicos. Valeu-lhe uma corrida inicial aos elásticos e às linhas por quem começou a produzir máscaras em casa para vender e ganhar também algum. Entretanto, esse movimento já amainou.

A clientela que vai aparecendo é muito pouca, queixa-se o lojista. Por ali, o negócio feito com turistas e portugueses era “ela por ela”. Numa baixa desertificada e com o teletrabalho a manter as pessoas em casa, são poucos os que por ali passam. Ainda menos os que entram. “Se estão em teletrabalho e moram nos arredores de Lisboa, não vêm aos sítios para cortar o cabelo, fazer uma barba, comprarem certas coisas. Temos alturas em que da parte da tarde não entra quase nenhum cliente até à noite.”

Onde estão os portugueses?
No Porto, na perfumaria Capitólio, com mais de meio século de vida, a dependência do mercado turístico nem era excessiva. “Tentamos sempre manter o equilíbrio”, conta Olga Oliveira, lojista há 25 anos. Depois da pandemia, no entanto, não foram só os turistas quem desapareceu. E esse é o drama maior.

“Onde estão os portugueses? Queixavam-se que só havia turistas na cidade. E agora que não há turistas, onde estão os portugueses?”, questiona-se, avançando uma teoria que mistura o “receio” da covid-19 e a “falta de dinheiro”. Uma coisa tem por certa: “Se isto se mantiver assim, dentro de um ano mais de metade das lojas de Santa Catarina estão fechadas.”

Alfredo Ricardo não antecipa melhor futuro para as lojas da baixa de Lisboa. “Como era dantes acho que já não vai ser.” Vê já vários espaços fechados nas ruas da Prata, dos Fanqueiros. Além disso, diz o lojista, as máscaras e o distanciamento são “incomodativos”. Por ali, gosta-se de falar com os clientes cara a cara, olhos nos olhos. “Hoje os clientes passam e nem os conhecemos.”

Em Portugal, o comércio significa três milhões de postos de trabalho directos ou indirectos. A Associação de Comerciantes do Porto não tem números da crise actual na cidade, mas fala em “grandes dificuldades” e na “urgência” de apoio. A maioria dos espaços está a “tentar resistir”, mas apresenta quebras “acima dos 50%”. Outros, “já foram ou serão mesmo obrigados a fechar”.

Entre esses, não esconde o presidente da associação, Joel Azevedo, embora prefira não citar exemplos, estão alguns dos estabelecimentos mais simbólicos do Porto. “Existem várias lojas históricas e identitárias da cidade que estão em risco e podem fechar.”

As dificuldades eram expectáveis, mas Joel Azevedo admite que superam o pior cenário traçado: “Este período está a ser mais difícil e a alongar-se mais do que estávamos à espera.” Se durante o confinamento a ordem foi aguentar para reabrir, agora é aguentar para não fechar. “Há custos inerentes à actividade, como rendas, luz, água, pessoal. E a receita é quase a mesma. Não chega para pagar os custos”, explana.

Evitar o endividamento
A linha de crédito anunciada pelo Ministério da Economia para apoio ao comércio é positiva, mas “insuficiente”. E pode até ser uma duplicação do problema. “Em alguns casos pode resolver o problema agora e hipotecar o futuro”, teme Joel Azevedo, alertando para a necessidade de “evitar o endividamento do comércio, sob pena de o condenar definitivamente.”

A conjectura de uma hecatombe exige outro passo, aponta a associação. “Tem de ser colocada a hipótese de uma linha a fundo perdido, com um compromisso de os comerciantes pagarem a cinco ou dez anos, assumindo o compromisso de manter o quadro de pessoal.”

Em Lisboa, a União de Associações de Comércio e Serviços (UACS) concorda com a proposta dos apoios a fundo perdido e lança a ideia ao município para a criação de um fundo de emergência municipal dedicado às empresas. Para a presidente, Lourdes Fonseca, fazem falta também apoios ao pagamento das rendas, à semelhança do que foi feito nos centros comerciais. “Há rendas que estão desajustadas, que sofreram grandes aumentos, e que podem implicar que algumas lojas não consigam manter-se”, nota a responsável.

Segundo as contas da UACS, entre os seus 2500 associados (onde não se incluem os do sector da restauração), cerca de 100 empresas da capital — algumas com vários estabelecimentos — estão a avaliar a sua sustentabilidade e a continuação do negócio. “Existe um desespero muito grande por não saberem se vão conseguir sobreviver”, nota Lourdes Fonseca.

Mercearias aguentam melhor
Quanto a números relativos aos encerramentos já concretizados devido à pandemia, a responsável diz não ter dados, mas adianta que sectores como os da moda, estética, drogarias e lavandarias estão entre os mais “penalizados”. Os negócios que vendem bens de primeira necessidade, como as mercearias, “equilibram-se melhor”.

“Já passei por muito. Mas crise disfarçada como esta nunca vi. Está tudo a queixar-se.”
Se o primeiro impacto é para aqueles que têm a porta aberta, mas não têm clientes, Lourdes Fonseca lembra que há um conjunto de problemas que se formam a jusante: “Com as lojas fechadas, há contabilistas que ficam com menos empresas com quem trabalhar, há vários fornecedores que perdem clientes... isto tem consequências muito maiores.”

Se estes argumentos não chegarem, Joel Azevedo tem um economicista: “A atracção de Portugal em termos turísticos é muito pelo comércio mais tradicional e identitário das cidades. Ao perder este tipo de comércio estamos a pôr em causa parte deste interesse turístico.”

"Quero deixar isto ao meu filho"
Aos 72 anos, Filomena Costa conta, orgulhosa, como a loja de ferragens fundada pelo seu avô há quase cem anos aparece referenciada nos guias turísticos. Ainda que por ali sejam mais os lisboetas a aparecer para comprar, por exemplo, uma torneira ou um toalheiro, ou a pedir uma réplica de um puxador antigo que se estragou, esta pitoresca loja da Rua João das Regras chama a atenção dos turistas.

Quando apareceram no país as grandes cadeias de lojas de bricolagem, a Costa & Costa, L.da ressentiu-se, mas Filomena pôs mãos à obra e fez a loja crescer para mais um andar, sem nunca fechar portas. Por isso, os quase dois meses em que esteve encerrada devido ao estado de emergência foram um momento excepcional para a lojista. E a retoma está a ser lenta. “Tinha dias de atender 90 a 100 clientes. Hoje está fraco. Ontem atendemos quase 40”, conta. Esperançosa em relação ao futuro, por agora, não lhe passa pela cabeça ter de fechar o estabelecimento. “Eu quero deixar isto para o meu filho, que já cá está, e para o meu neto.”

Na Berbicacho de Campo de Ourique, Clotilde Madeira não tem meias palavras para descrever o negócio nos últimos meses: “Tem corrido pessimamente.” Nesta loja onde se vendem casquinhas, peças de decoração de metais banhados a prata, o ano passado tinha preenchido as expectativas. Desde que reabriu, em Maio, Clotilde vendeu quatro peças novas. O que lhe tem permitido aguentar-se são os restauros de peças antigas, a renda baixa e a funcionária que entretanto se reformou.

As quebras são superiores a 70% e semelhantes às de outros negócios da vizinhança. “A maior parte [das lojas] está sem saber que volta vai dar ao texto. Umas lojas já fecharam, outras irão fechar. Há lojas que fecharam na altura do confinamento e nunca mais abriram.”

Na histórica Casa Rocha, no Porto, o desânimo tem mais nuances. Alzira Teixeira, máscara do Harry Potter na cara, repete o verbo “resistir”, tantas vezes ouvido entre lojistas, quando a pergunta é sobre os dias pós-confinamento. Mas na retrosaria, um negócio já com pouca concorrência na zona, beneficia-se do momento: se poupar se tornou mais importante no meio da crise, comprar tecidos, linhas, botões e outros acessórios é essencial. “Houve uma quebra, mas se continuar assim ainda dá para aguentar.”

Recuperação natalícia
O mesmo não se passa na Casa Neves, onde a falta de turistas significa metade da clientela eliminada à partida. Quem o conta é Gonçalo Neves, “da terceira geração de lojistas”, a habituar-se aos dias incertos e a um “processo de recuperação muito lento”: “Ontem foi um dia bom, hoje não está a ser”, exemplifica. Uma diferença é de sublinhar, nota com a concordância da também lojista Ana Maria Freitas: “As pessoas não vêm aqui por vir. Se entram é quase sempre para comprar.”

O anseio de António Reis é o Natal. Pode vir ainda longe no calendário, mas para o homem de 87 anos, nascido no edifício onde se instalou a Pérola do Bolhão, junto ao histórico mercado do Porto actualmente em obras, está já aí. “Estamos aqui sempre à espera que melhore. Estamos a caminho do Natal, chega num instante, e a esperança é que melhore aí”, afirma o proprietário da mercearia. Até agora, “regresso ao trabalho” é expressão que nem gosta de usar: “Não há regresso nenhum. Os poucos turistas que passam não entram. Os nacionais tenho a impressão que estão a poupar porque não sabem o dia de amanhã…”

Uma vida toda no comércio na Rua Formosa já o fez atravessar muitas crises: a das cidades sem gente no centro, a da especulação imobiliária e até a das obras do Bolhão (que de bom só trouxe a “bendita indemnização” da Câmara do Porto). “Já passei por muito. Mas crise disfarçada como esta nunca vi. Está tudo a queixar-se.”

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