quinta-feira, 1 de abril de 2021

O esplêndido isolamento de António Costa // Criatividade política e rebaldaria orçamental

 


EDITORIAL

O esplêndido isolamento de António Costa

 

Por muito que se critique António Costa por ser hoje o arauto da austeridade, por ser arrogante com as restantes forças políticas ou por ser ingrato com o Presidente, a sua decisão tem uma indiscutível virtude: a de não deixar que o estado de emergência dê lugar a um estado em que vale tudo, até ignorar a Constituição.

 

Manuel Carvalho

31 de Março de 2021, 21:30

https://www.publico.pt/2021/03/31/politica/editorial/esplendido-isolamento-antonio-costa-1956759

 

Seria de esperar que, perante o risco de um conflito com o Parlamento, o Presidente da República e uma parte importante da opinião pública, o primeiro-ministro gerisse a crise das três leis que alargam os apoios sociais como habitualmente: com tacticismo e paciência, até que a névoa se dissipasse. Não foi isso que António Costa fez. Pelo contrário, fez o mais difícil e contra-atacou. Mais: contra-atacou contra tudo e contra todos. O tempo dos equilíbrios precários obtidos com jeitinho e à última hora com a esquerda e com o beneplácito de Belém ficou suspenso. Só a certeza absoluta de que se encontra do lado da razão explica esta ousadia. Só um acórdão favorável do Tribunal Constitucional poderá reparar os riscos que comporta.

 

Já estávamos num território difícil. Nunca há uma solução a preto e branco quando há uma crise entre os princípios basilares do Estado de direito e necessidades urgentes de pessoas reais. António Costa colocou-se na defesa dos princípios substituindo-se ao Presidente, que tem como sua primeira missão cumprir e fazer cumprir a Constituição. Mas seria inocente acreditar que foi essa a sua única motivação. Costa apega-se à lei fundamental porque é esta que o protege de despesas avulsas que, ao porem em crise a norma-travão, corrompem as competências do poder executivo, transferindo-as para o poder legislativo. O conflito constitucional é fundamentalmente o cenário do conflito de poderes em curso do qual só Marcelo beneficia à partida.

 

 Se há um demérito neste passo surpreendente do primeiro-ministro, há que o procurar na obsessão com o défice que levou o Governo a gastar menos 1000 milhões de euros em 2020 do que o previsto. Ou seja, num erro de cálculo anterior. Mas se há um mérito é o de garantir que numa democracia madura a lei impera sobre os expedientes e a Constituição prevalece sobre as manobras políticas, por mais nobres que sejam. É neste ponto que o pedido de fiscalização sucessiva do Tribunal Constitucional funciona a favor do regime e do país: perante dúvidas de violação da norma-travão, seria errado tapar os olhos e deixar correr o marfim.

 

Há um preço a pagar? Talvez. O diálogo parlamentar fica mais precário. A cooperação estratégica com o Presidente pode sofrer um forte abalo. A crise política pode juntar-se às outras crises. Mas, por muito que se critique António Costa por ser hoje o arauto da austeridade, por ser arrogante com as restantes forças políticas ou por ser ingrato com o Presidente, a sua decisão tem uma indiscutível virtude: a de não deixar que o estado de emergência dê lugar a um estado em que vale tudo, até ignorar a Constituição.

 

 


OPINIÃO

Criatividade política e rebaldaria orçamental

 

Em termos constitucionais, sim, é a oficialização da rebaldaria orçamental – só que essa rebaldaria já existe, em termos políticos, desde 2015. É por isso que o presidente está errado, estando, ao mesmo tempo, certo.

 

João Miguel Tavares

1 de Abril de 2021, 1:00

https://www.publico.pt/2021/04/01/politica/opiniao/criatividade-politica-rebaldaria-orcamental-1956754

 

António Costa tem razão numa coisa: a decisão do Presidente da República de promulgar os três diplomas sobre apoios sociais aprovados pela oposição, que obviamente infringem a norma-travão inserida na Constituição, é realmente criativa. No entanto, como o mundo é sempre mais complexo do que as regras que o tentam ordenar, acontece isto: a decisão de Marcelo é totalmente inaceitável enquanto máximo garante das regras constitucionais, e absolutamente compreensível enquanto máximo responsável pelos equilíbrios políticos do sistema. Portanto, o presidente da República esteve muito mal. E também esteve muito bem.

 

A política é uma actividade divertida, e não admira que Marcelo goste tanto dela. Diz o número 2 do artigo 167 da Constituição Portuguesa que os partidos não podem apresentar propostas ou projectos de lei que “envolvam, no ano económico em curso, aumento das despesas ou diminuição das receitas do Estado previstas no Orçamento”. Esta norma-travão já deu muita conversa no passado durante debates acerca de orçamentos rectificativos ou suplementares, mas não é isso que agora está em causa: os três diplomas sobre apoios sociais urgentes foram aprovados fora da discussão do orçamento e, nesse sentido, podem até ser essencialíssimos, mas não vejo como seja possível argumentar que não aumentam as despesas previstas no OE2021, violando dessa forma a Constituição.

 

Eu não vejo, claro, porque sou de vistas curtas. Marcelo vê, e de forma particularmente engenhosa. Na nota que deixou no site da Presidência, o essencial da sua argumentação está reunido em dois pontos. No ponto 4, afirma que os três diplomas não têm montantes “definidos à partida”, e nessa medida estão “largamente dependentes de circunstâncias que só a evolução da pandemia permite concretizar”. Logo, deixam “em aberto a incidência efectiva na execução do Orçamento do Estado”. Tudo isso é verdade, mas esta matemática marcelista é a mesma que em 2016 foi usada para aprovar a reversão das 35 horas, dando o “benefício da dúvida” ao governo, que jurou não ir aumentar a despesa geral do Estado. Por Zeus: como é possível defender que medidas de aumento de despesa, só porque o seu impacto não está definido à partida, não vão aumentar a despesa?

 

A resposta criativa de Marcelo a esta pergunta vem no ponto 5: “O próprio Governo tem, prudentemente, enfrentado a incerteza do processo pandémico, quer adiando a aprovação do Decreto de Execução Orçamental, quer flexibilizando a gestão deste, como aconteceu no ano 2020.” O ano 2020 só está ali por simpatia. Flexibilizar a gestão de orçamentos de Estado até ao ponto da mais espectacular espargata foi o grande truque da dupla de mágicos Centeno/Costa, e essa elasticidade, a que se deu o nome popular de cativações, é a grande responsável pelo controlo das finanças públicas, e o cimento que segurou a “geringonça” em ambiente de austeridade. Prometia-se muito a cada orçamento – para contentar a esquerda – e deixava-se nas mãos de Centeno a torneira da execução – para contentar Bruxelas.

 

O que Marcelo agora vem dizer é isto: se não há “geringonça” oficial, então a oposição também tem direito a brincar aos orçamentos, para mais quando as medidas são justas. António Costa não gostou. Em termos constitucionais, sim, é a oficialização da rebaldaria orçamental – só que essa rebaldaria já existe, em termos políticos, desde 2015. É por isso que o presidente está errado, estando, ao mesmo tempo, certo.

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