EDITORIAL
O esplêndido isolamento de António Costa
Por muito que se critique António Costa por ser hoje o
arauto da austeridade, por ser arrogante com as restantes forças políticas ou
por ser ingrato com o Presidente, a sua decisão tem uma indiscutível virtude: a
de não deixar que o estado de emergência dê lugar a um estado em que vale tudo,
até ignorar a Constituição.
Manuel Carvalho
31 de Março de
2021, 21:30
https://www.publico.pt/2021/03/31/politica/editorial/esplendido-isolamento-antonio-costa-1956759
Seria de esperar
que, perante o risco de um conflito com o Parlamento, o Presidente da República
e uma parte importante da opinião pública, o primeiro-ministro gerisse a crise
das três leis que alargam os apoios sociais como habitualmente: com tacticismo
e paciência, até que a névoa se dissipasse. Não foi isso que António Costa fez.
Pelo contrário, fez o mais difícil e contra-atacou. Mais: contra-atacou contra
tudo e contra todos. O tempo dos equilíbrios precários obtidos com jeitinho e à
última hora com a esquerda e com o beneplácito de Belém ficou suspenso. Só a
certeza absoluta de que se encontra do lado da razão explica esta ousadia. Só
um acórdão favorável do Tribunal Constitucional poderá reparar os riscos que
comporta.
Já estávamos num
território difícil. Nunca há uma solução a preto e branco quando há uma crise
entre os princípios basilares do Estado de direito e necessidades urgentes de
pessoas reais. António Costa colocou-se na defesa dos princípios
substituindo-se ao Presidente, que tem como sua primeira missão cumprir e fazer
cumprir a Constituição. Mas seria inocente acreditar que foi essa a sua única
motivação. Costa apega-se à lei fundamental porque é esta que o protege de
despesas avulsas que, ao porem em crise a norma-travão, corrompem as
competências do poder executivo, transferindo-as para o poder legislativo. O
conflito constitucional é fundamentalmente o cenário do conflito de poderes em
curso do qual só Marcelo beneficia à partida.
Há um preço a
pagar? Talvez. O diálogo parlamentar fica mais precário. A cooperação
estratégica com o Presidente pode sofrer um forte abalo. A crise política pode
juntar-se às outras crises. Mas, por muito que se critique António Costa por
ser hoje o arauto da austeridade, por ser arrogante com as restantes forças
políticas ou por ser ingrato com o Presidente, a sua decisão tem uma
indiscutível virtude: a de não deixar que o estado de emergência dê lugar a um
estado em que vale tudo, até ignorar a Constituição.
OPINIÃO
Criatividade política e rebaldaria orçamental
Em termos constitucionais, sim, é a oficialização da
rebaldaria orçamental – só que essa rebaldaria já existe, em termos políticos,
desde 2015. É por isso que o presidente está errado, estando, ao mesmo tempo,
certo.
João Miguel
Tavares
1 de Abril de
2021, 1:00
António Costa tem
razão numa coisa: a decisão do Presidente da República de promulgar os três
diplomas sobre apoios sociais aprovados pela oposição, que obviamente infringem
a norma-travão inserida na Constituição, é realmente criativa. No entanto, como
o mundo é sempre mais complexo do que as regras que o tentam ordenar, acontece
isto: a decisão de Marcelo é totalmente inaceitável enquanto máximo garante das
regras constitucionais, e absolutamente compreensível enquanto máximo
responsável pelos equilíbrios políticos do sistema. Portanto, o presidente da
República esteve muito mal. E também esteve muito bem.
A política é uma
actividade divertida, e não admira que Marcelo goste tanto dela. Diz o número 2
do artigo 167 da Constituição Portuguesa que os partidos não podem apresentar
propostas ou projectos de lei que “envolvam, no ano económico em curso, aumento
das despesas ou diminuição das receitas do Estado previstas no Orçamento”. Esta
norma-travão já deu muita conversa no passado durante debates acerca de
orçamentos rectificativos ou suplementares, mas não é isso que agora está em
causa: os três diplomas sobre apoios sociais urgentes foram aprovados fora da
discussão do orçamento e, nesse sentido, podem até ser essencialíssimos, mas
não vejo como seja possível argumentar que não aumentam as despesas previstas
no OE2021, violando dessa forma a Constituição.
Eu não vejo,
claro, porque sou de vistas curtas. Marcelo vê, e de forma particularmente
engenhosa. Na nota que deixou no site da Presidência, o essencial da sua
argumentação está reunido em dois pontos. No ponto 4, afirma que os três
diplomas não têm montantes “definidos à partida”, e nessa medida estão
“largamente dependentes de circunstâncias que só a evolução da pandemia permite
concretizar”. Logo, deixam “em aberto a incidência efectiva na execução do
Orçamento do Estado”. Tudo isso é verdade, mas esta matemática marcelista é a
mesma que em 2016 foi usada para aprovar a reversão das 35 horas, dando o
“benefício da dúvida” ao governo, que jurou não ir aumentar a despesa geral do
Estado. Por Zeus: como é possível defender que medidas de aumento de despesa,
só porque o seu impacto não está definido à partida, não vão aumentar a
despesa?
A resposta
criativa de Marcelo a esta pergunta vem no ponto 5: “O próprio Governo tem,
prudentemente, enfrentado a incerteza do processo pandémico, quer adiando a
aprovação do Decreto de Execução Orçamental, quer flexibilizando a gestão
deste, como aconteceu no ano 2020.” O ano 2020 só está ali por simpatia.
Flexibilizar a gestão de orçamentos de Estado até ao ponto da mais espectacular
espargata foi o grande truque da dupla de mágicos Centeno/Costa, e essa
elasticidade, a que se deu o nome popular de cativações, é a grande responsável
pelo controlo das finanças públicas, e o cimento que segurou a “geringonça” em
ambiente de austeridade. Prometia-se muito a cada orçamento – para contentar a
esquerda – e deixava-se nas mãos de Centeno a torneira da execução – para
contentar Bruxelas.
O que Marcelo
agora vem dizer é isto: se não há “geringonça” oficial, então a oposição também
tem direito a brincar aos orçamentos, para mais quando as medidas são justas.
António Costa não gostou. Em termos constitucionais, sim, é a oficialização da
rebaldaria orçamental – só que essa rebaldaria já existe, em termos políticos,
desde 2015. É por isso que o presidente está errado, estando, ao mesmo tempo,
certo.
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