Estação Fluvial Sul e Sueste reabre 90 anos depois da
inauguração
O edifício sofreu uma reabilitação profunda conduzida por
Ana Costa, neta de Cotinelli Telmo, o homem que projetou a estação inaugurada
em 1932. Os trabalhos demoraram mais que o previsto, mas foram mantidos os
traços originais.
Elsa Araújo
Rodrigues
30 Abril 2021 —
00:38
Com a estrutura
de contenção sísmica renovada, de cara lavada e com novas valências, o edifício
da Estação Fluvial Sul e Sueste, inaugurado a 23 de maio de 1932, volta a abrir
portas amanhã (1 de maio). O terminal de atividade marítimo-turística passa a
acolher as bilheteiras de empresas do setor, um espaço de restauração com
esplanada voltada para o rio e também o Centro Tejo, espaço da Associação
Turismo de Lisboa (ATL) que promove a oferta cultural e turística dos
municípios ribeirinhos.
As obras de
restauração e reabilitação da estação foram aprovadas pelo executivo camarário
em 2018, três anos depois de terem começado os trabalhos na extensão de
requalificação da frente ribeirinha (entre o Cais do Sodré e o Campo das
Cebolas, incluindo a zona do novo terminal de cruzeiros desenhado por Carrilho
da Graça) e três meses depois da data prevista para o fim das obras, em finais
de 2017.
A empreitada
deveria ter ficado concluída no segundo semestre de 2019 mas o avançado estado
de degradação geral do edifício fez com que as acabassem por demorar mais do
que o previsto, como explicou Ana Costa, autora do projeto, ao DN. O trabalho
do seu gabinete de arquitetura começou no edifício do lado, onde atualmente
funciona o Terminal Fluvial do Terreiro do Paço, um interface com a estação do
metro.
"O primeiro
desafio foi resolver um problema de desenho da reabilitação da sala de bagagens
do Cottinelli Telmo - que é o edifício ao lado - para integrar o grande átrio
da estação do metropolitano", explica. Depois dessa intervenção, "a
degradação no edifício principal ainda era maior, sobretudo na parte da
estrutura e a contenção estrutural do edifício obrigou a muito mais trabalho do
que aquilo que se imaginava". Os danos estruturais obrigaram à contratação
de uma equipa de engenharia especializada para "resolver todas as
necessidades de contenção sísmica e de reestruturação do edificado sem o
desmantelar completamente".
Um projeto
familiar
Um trabalho árduo
e moroso, que implicou "um reforço estrutural delicado, quase cirúrgico
para se manter a escala e as proporções do edifício", detalha.
"Chegou a uma altura em que estava praticamente no osso e eu vi jeitos de
não nos aguentarmos de pé", confidencia a arquiteta.
A preocupação de
Ana Costa com as fundações e as paredes da estação ia muito para além das
razões estritamente profissionais. É que a arquiteta é neta de Cottinelli
Telmo, o projetista do edifício inaugurado em 1932, e fala com visível carinho
do trabalho do avô. "É uma obra que tem para mim uma história também
pessoal. Essa carga emocional e familiar também teve algum significado no
trabalho que foi feito aqui", conta. Para além do desenho original da
autoria do avô, este projeto reflete também a relação de trabalho que teve com
o pai, Daciano da Costa.
"Quando o
projeto começou foi entregue na altura ao atelier do meu pai e eu fazia parte
dessa equipa", conta Ana Costa, revelando que foi um dos primeiros
projetos em que trabalhou, na altura, como jovem arquiteta. "Tem essa
carga. Sem querer ser sentimental, não posso deixar de dizer que não me sinto
sozinha, como a autora disto. É algo que tem um lastro de mais de 90 anos e, no
fundo, é quase um projeto familiar", frisou.
Ana Costa admite
que este projeto foi "quase um projeto familiar", afinal foi o
continuar de algo iniciado
Ana Costa admite
que este projeto foi "quase um projeto familiar", afinal foi o
continuar de algo iniciado pelo avô há mais de 90 anos.© PAULO SPRANGER /
Global Imagens
Reabilitar sem
alterar
O icónico
edifício modernista de Cottinelli Telmo apresentou vários desafios à
reabilitação projetada, com o objetivo de se manter fiel ao desenho original. O
primeiro foi manter a forma distintiva da estação baseada numa "malha de
pilares organizada numa métrica quadricular de cobertura, com grandes aberturas
de claraboias", tendo em conta a fragilidade estrutural em que o edifício
se encontrava. "Não podíamos mudar a configuração dos pilares, não
podíamos engordá-los, não podíamos mudar a cobertura, para poder manter viva
essa razão de ser do edifício", refere a arquiteta.
Outro dos
desafios, foi respeitar a questão funcional das bilheteiras - outra das razões
de ser do edifício, que nasceu para permitir a ligação ferroviária de Lisboa ao
Alentejo e ao Algarve. Era dali que partiam os barcos para o Barreiro, onde
depois se apanhava o comboio para diversos pontos no sul e sueste do país,
regiões que acabaram por dar o nome à estação. A gare fluvial foi desativada em
2011 e o projeto de reabilitação chegou a ter várias versões ao longo dos anos
- foi equacionada a sua transformação numa Loja do Cidadão.
Atualmente, vai
ser um espaço dedicado a barcos para passeios turísticos e os locais de venda
de bilhetes continuam a ser necessários. "As bilheteiras dos anos 60 eram
umas grandes aberturas com uns envidraçados, que não acompanhavam a escala e a
intenção do projeto original", descreve Ana Costa. "O que nós fizemos
foi ir buscar os desenhos originais de Cottinelli Telmo - com bilheteiras em
madeira - e perceber como é que se poderia dar uma demão de modernização."
E são agora mais discretas do que já foram, com janelas mais pequenas, para
cumprir o objetivo de as "fazer desaparecer" e não serem
protagonistas no espaço do átrio da estação como chegaram a ser no passado.
Azulejos
restaurados
Para além das
bilheteiras, foi também necessário remover acrescentos que se foram fazendo ao
edifício ao longo dos anos com o objetivo de repor elementos que faziam parte
do projeto inicial, desenhado em 1929. Os painéis de azulejos distintivos do
átrio principal da estação, com os brasões das cidades para onde dali se podia
partir, foram restaurados e mantidos, podendo agora ser apreciados a uma nova
luz. "Todos os frisos dos azulejos, estão iluminados discretamente por uma
linha LED que vai 'varrer com luz' estes painéis de forma muito discreta",
descreve Ana Costa.
Apesar de serem
os mais conhecidos, estes não são os únicos painéis de azulejos da estação. As
salas de espera da primeira e segunda classes eram também forradas a azulejos
que haviam sido retirados e agora foram recolocados. "Tivemos a ajuda de
pessoas especializadas no restauro de azulejos porque não é tarefa fácil. Mas
também se percebeu que faltavam muitos azulejos, sobretudo numa das salas, que
não era, felizmente, a sala de espera da primeira classe que está neste momento
completa", refere a arquiteta. Assim, essa sala pode ser apreciada por
todos os que visitem a cafetaria: "Está praticamente com todos os azulejos
que tinha na altura."
Detalhes
recuperados
Já os painéis da
antiga sala de espera da segunda classe - agora integrada na área onde está
instalado o Centro Tejo - estavam incompletos e "a opção foi manterem-se
apenas duas das paredes e assumir isso, em vez de estar a reproduzir
integralmente uma parede".
Os azulejos são
um dos elementos distintivos do edifício que Ana Costa descreve como "uma
interpretação muito própria de Cottinelli Telmo dessa linguagem" mas não
são os únicos. "Na época foi um grande desafio fazer um edifício com uma
estrutura de cimento armado aqui em Lisboa com todas as críticas possíveis e
imaginárias", conta. "Foi importante estar desviado do Terreiro do
Paço porque havia a ideia de que iria competir com a arquitetura
pombalina" e foi para se afastar ainda mais de uma possível
"competição" que o avô Cottinelli Telmo terá optado por "um
edifício muito depurado segundo os padrões da altura porque este edifício tem
bastante decoração", considera.
E de todos esses
elementos decorativos, qual destaca? "Destaco um detalhe: os copos de luz
em mármore", responde. "Que já não existiam há muito tempo e que nós
descobrimos nos desenhos e nas fotografias da inauguração da estação. Tivemos o
cuidado de os redesenhar integrando iluminação LED e a iluminação de
emergência", explica, acrescentando que "não foi fácil, mas era
essencial repor esses elementos que davam de novo esse toque Art Déco que se
tinha perdido".
Após a
reabilitação, Ana Costa considera que o edifício está mais perto do desenho
inicial, mas sem se ter afastado da sua função original. "Os edifícios têm
de resistir às demãos da época e dos tempos que se vivem - têm de ter patine,
mas têm de absorver as novas funções que para eles vêm. Neste caso, felizmente,
continua a ser um grande edifício de passagem. Uma porta de entrada em Lisboa,
onde se faz a passagem do rio para a cidade", caracteriza.
"Essa viagem
rio-terra, que também foi muito festejada na inauguração de há 90 anos"
vai continuar a ser possível, também porque a envolvente da estação foi
transformada numa área pedonal mais de acordo com as fachadas do edifício, um
"grande detalhe" que passa despercebido. "São fachadas
espelhadas, ou seja, o edifício não tem uma frente e um detrás, são equivalentes.
Acho uma ideia genial porque normalmente não é assim", destaca. Ana Costa
sintetiza que "a grande força do edifício" desenhado pelo avô é o
fato de afirmar que "a importância do rio é tão grande como a da
cidade".
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