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Balada de despedida: a insustentabilidade das carreiras
científicas em Portugal
Tenho 30 anos, doutorei-me há quase três e nunca tive um
contrato permanente. Nunca tive mais do que quatro anos assegurados. Trabalhei
sem remuneração durante um ano e meio, antes de conseguir a primeira bolsa e,
neste momento, estou desempregada, sem apoio salarial.
Inês Trindade
Doutorada em
Psicologia Clínica, investigadora em medicina comportamental
12 de Março de
2021, 9:20
Escrevo este
texto com um enorme sentimento de desânimo, perda e revolta, como cientista
exausta, a quem Portugal não deu nenhuma hipótese razoável a não ser emigrar.
Conto a minha história porque reflecte muitas outras e porque traduz a forma
deplorável com que Portugal trata os seus investigadores, especialmente os seus
investigadores jovens.
Ao longo de oito
duros anos construí um percurso científico que posso afirmar que é internacionalmente
reconhecido, mas que, ainda assim, não foi suficiente para assegurar um
contrato de seis anos através do Concurso para o Estímulo ao Emprego Científico
promovido pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), tutelada pelo
Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior. Esta avaliação, que
apresento com mais detalhe de seguida, foi ostensivamente injusta e arbitrária,
como, aliás, já é comum esperar por parte da FCT.
Semanas após este
resultado, obtive financiamento, enquanto principal investigator (PI), para um
projecto de I&D da FCT, que imediatamente levantou problemas em relação à
minha posição para o aceitar. O contrato de trabalho que ainda tinha com a
minha universidade, e que se mantinha por não ter conseguido obter uma posição
através do Estímulo ao Emprego Científico, foi-me apresentado como incompatível
com a posição de PI nesse projecto, ou mesmo com a pertença a qualquer outro
projecto de investigação. Tinha duas opções: ou mantinha o meu emprego e
deixava os meus projectos, para os quais trabalhei arduamente para conseguir
financiamento; ou mantinha os meus projectos e deixava o meu emprego. Devo
dizer que fui pressionada para escolher a primeira e que essa opção foi
apresentada pela FCT como a “solução” para o meu problema. Foi-me indicado que
deveria pedir a minha saída da equipa dos projectos e entregá-los a outros
investigadores. Escolhi fazer o contrário: rescindir o meu contrato de trabalho
e procurar outro emprego (leia-se, emigrar) para poder manter aspectos cruciais
da minha carreira científica; para poder, essencialmente, ter condições para
executar o meu trabalho.
Porque não, não
vou negligenciar a minha carreira e desvalorizar o meu trabalho para manter o
meu emprego num país em que é a FCT que controla, e ao que tudo indica, quase
arbitrariamente, a maioria do financiamento para a ciência. Não num país que
trata tão lamentavelmente a sua mão-de-obra científica. Não num país quase sem
oportunidades para cientistas júnior. Não num país incapaz de sustentar
carreiras científicas. Porque, sinceramente, atingi o meu limite. Tenho 30
anos, doutorei-me há quase três e nunca tive um contrato permanente. Nunca tive
mais do que quatro anos assegurados. Aconteceu pelo menos uma vez ter apenas
três meses de salário assegurados. Trabalhei sem remuneração durante um ano e
meio, antes de conseguir a primeira bolsa e, neste momento, estou desempregada,
sem apoio salarial, enquanto mantenho funções de coordenação de projectos de
I&D e escrevo artigos que contarão para o posicionamento da minha
universidade em rankings internacionais.
Durante a minha
“carreira” científica (e escrevo carreira entre aspas porque em Portugal não
existe carreira científica desde há bons largos anos), fui estagiária, bolseira
de doutoramento, gestora de ciência e investigadora doutorada contratada,
publiquei mais de 50 artigos científicos em revistas internacionais indexadas,
obtive financiamento como PI ou co-PI de três projectos de I&D, assumi
posições na direcção de associações científicas internacionais, dei aulas e
supervisão, e estabeleci uma rede de colaboração internacional considerável.
Este percurso não foi, no entanto, considerado suficiente pela FCT para que me
fosse atribuído um contrato de seis anos através do Estímulo ao Emprego
Científico.
Observei
disparidades muito significativas entre aquilo que foi contabilizado a outros
candidatos e o que me foi contabilizado. Observei que as minhas métricas
científicas eram equivalentes às dos cinco investigadores melhor classificados,
juntos. Observei que foram nitidamente ignorados aspectos importantes do meu
percurso, que a outros candidatos foram muito valorizados. Aconteceu só a mim?
Não. Aconteceu só neste concurso? Também não. Este tipo de avaliação sem
sentido aparente ou justificado por parte da FCT acontece constantemente. Há
anos.
Ilustro o meu
exemplo porque é aquele que conheço melhor. Mas tenho tido conhecimento de
inúmeros outros casos semelhantes. Colegas que não conseguiram o Estímulo ao
Emprego Científico por terem currículos “brilhantes, mas demasiado bons para o
nível a que correm”, quando não são os investigadores que escolhem o nível para
o qual concorrem, são sim condicionados pela FCT a concorrer a determinado
nível dependendo do número de anos pós-doutoramento. Colegas que observam a FCT
a infringir os próprios regulamentos em concursos para bolsas de doutoramento
(ao, por exemplo, excluir candidaturas por o candidato não ter apresentado
certo documento, quando no regulamento é expressamente indicado que esse
documento pode ser entregue apenas em caso de aceitação da bolsa).
Colegas que pedem
recurso das decisões da FCT, as quais recebem respostas, às vezes após anos,
como “tem razão, mas não alteramos a decisão”. Colegas que reclamam por escrito
de erros da FCT e são integralmente ignorados, sem qualquer tipo de resposta, a
não ser, por telefone, “isto é a vida a ensinar-lhe a lutar contra
adversidades”. Colegas que colocariam estes casos em tribunal, provavelmente
com taxas de sucesso significativas, mas que não têm rendimentos para
prosseguir com tal. Colegas que, efectivamente, ficam largos meses
desempregados à espera de decisões alheias, à espera de burocracias
infindáveis, ou simplesmente a trabalhar gratuitamente na esperança de um dia
obter uma posição. E isto tudo, não nos esqueçamos, é feito com dinheiro
público. Dinheiro público vindo, pelo menos em parte, da contribuição dos
portugueses, completamente ignorantes que, à custa da tremenda má gestão dos
fundos nacionais para a ciência, um número inimaginável de investigadores
portugueses vive precariamente e com uma saúde mental preocupante, acabando,
muitos deles, a serem forçados a sair do país para ter condições mínimas para
trabalhar.
Ao falar da FCT
estamos a falar de uma instituição que sai absoluta e constantemente impune de
violações de regulamentos e falta de transparência. Uma instituição que é alvo
de descrença, e, muitas vezes, também de chacota pela comunidade científica
portuguesa. Uma instituição que manipula dados para enganar os contribuintes
(divulgando, por exemplo, taxas de aceitação de projetos na ordem dos 9,4%,
quando na verdade foram de 5%). Uma instituição que, e não por acaso, é
provavelmente das mais criticadas neste país.
Foi-me indicado que deveria pedir a minha saída da equipa
dos projectos e entregá-los a outros investigadores. Escolhi fazer o contrário:
rescindir o meu contrato de trabalho e procurar outro emprego (leia-se,
emigrar) para poder manter aspectos cruciais da minha carreira científica; para
poder, essencialmente, ter condições para executar o meu trabalho.
Além de tudo
isto, importa também ter em conta que, e conforme o último relatório da
Fenprof, são os investigadores jovens quem suporta a maioria da ciência
realizada neste país, em estados alarmantes de burnout e desânimo, numa academia
cúmplice, endogâmica, sexista e vertical como em raros outros países
ocidentais, traumatizante para muitos, e com poucas ou nenhumas oportunidades
de trabalho não precárias.
Quando descrevi a
minha situação a investigadores estrangeiros, de oito países, a reacção foi
unânime: incredulidade pela falta de meios e condições (para não falar de
consideração) que Portugal oferece aos seus investigadores jovens. Muitos não
conseguiram, simplesmente, compreender o que pode levar um país a desperdiçar
assim os seus cientistas. A minha situação particular acabou por correr bem,
consegui uma posição num laboratório de referência na minha área de paixão,
onde sei que serei bem acolhida e onde terei oportunidades de crescer enquanto
cientista que Portugal nunca seria capaz de me oferecer. Era escusado, no
entanto, o sentimento de ter sido atirada para fora do meu país.
Levo boas
memórias dos meus colegas com quem tanto aprendi, vivi e partilhei. Levo
preocupação e receio também. Por eles, pelos investigadores portugueses em
formação, e por aqueles com famílias ou sem contexto favorável para emigrar. A
ciência em Portugal não tem futuro se este cenário permanecer o mesmo – e já
assim se mantém há décadas.
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