sexta-feira, 30 de abril de 2021

O exemplo que vem da América

 



EDITORIAL

O exemplo que vem da América

 

O “grande Governo”, empenhado em criar rumos ou moldar a redistribuição, está de volta. Por ideologia? Talvez. Mas, essencialmente, por necessidade.

 

Manuel Carvalho

29 de Abril de 2021, 21:00

https://www.publico.pt/2021/04/29/mundo/noticia/exemplo-vem-america-1960574

 

Cem dias depois, a presidência tranquila de Joe Biden trouxe boas notícias ao mundo. Os Estados Unidos regressaram à linha da frente no combate à crise climática. O diálogo e a parceria transatlântica foram reestabelecidos. O populismo histriónico deu lugar ao comedimento e à previsibilidade que se esperam da grande potência mundial. Mais recentemente, a administração Biden deu mostras de ousadia ao lançar um gigantesco plano de investimento em infra-estruturas de 1,9 biliões de euros, que transforma a “bazuca” europeia numa irrelevante espingarda de pressão de ar. E anunciou um ambicioso plano fiscal que mobilizará 1,8 biliões de euros para apoios sociais. Discreto, mas assertivo e eficaz, Biden faz regressar os Estados Unidos aos grandes momentos transformadores da Great Society de Lyndon B. Johnson ou o New Deal de Franklin D. Roosevelt. O Presidente merece a aprovação de 59% dos americanos.

 

Se a recuperação do multilateralismo é um regresso e o pacote de estímulos uma repetição, o aumento dos impostos sobre o capital e sobre os rendimentos dos 1% mais ricos é um passo inovador na política dos últimos 30 ou 40 anos. O “grande Governo”, empenhado em criar rumos ou moldar a redistribuição, está de volta. Por ideologia? Talvez. Mas, essencialmente, por necessidade. O furacão Trump mostrou que a democracia vacila quando 1% dos mais ricos controla 19% da riqueza de um país antes de impostos e os 50% mais pobres são forçados a viver com 13% – em Portugal, essa percentagem é de 12% e 18%, respectivamente. A desigualdade, agravada pela pandemia, tornou-se o maior inimigo da democracia. E do próprio capitalismo.

 

A acumulação de riqueza chegou ao ponto em que o proverbial laissez-faire, o mantra das políticas económicas do Ocidente depois de 1980, precisa de tempero. Já não são os partidos da esquerda, radical ou não, a defendê-lo. Nas mais insuspeitas escolas de economia ou nos jornais que fazem a apologia da liberdade económica, as correcções das desigualdades por via fiscal tornaram-se banais. Pascal Saint-Amans, director da área fiscal da OCDE, dizia recentemente ao PÚBLICO que “este tipo de mudanças nos impostos não só não tem efeitos negativos sobre o crescimento, como pode mesmo torná-lo mais sustentável e inclusivo”. Biden não é Sanders. É um centrista moderado.

 

Cem dias depois, os Estados Unidos ensaiam caminhos para um capitalismo que tenta recuperar o rosto humano. As propostas de Biden têm ainda de ser aprovadas. A tributação das plataformas digitais tem ainda de ser discutida. Os paraísos fiscais terão de ser regulados. Mas, depois deste passo, o drama da desigualdade nas sociedades democráticas ganhou outro espaço na ordem do dia. Os Estados Unidos voltam a dar exemplos ao mundo.

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