EDITORIAL
O exemplo que vem da América
O “grande Governo”, empenhado em criar rumos ou moldar a
redistribuição, está de volta. Por ideologia? Talvez. Mas, essencialmente, por
necessidade.
Manuel Carvalho
29 de Abril de
2021, 21:00
https://www.publico.pt/2021/04/29/mundo/noticia/exemplo-vem-america-1960574
Cem dias depois,
a presidência tranquila de Joe Biden trouxe boas notícias ao mundo. Os Estados
Unidos regressaram à linha da frente no combate à crise climática. O diálogo e
a parceria transatlântica foram reestabelecidos. O populismo histriónico deu
lugar ao comedimento e à previsibilidade que se esperam da grande potência
mundial. Mais recentemente, a administração Biden deu mostras de ousadia ao
lançar um gigantesco plano de investimento em infra-estruturas de 1,9 biliões
de euros, que transforma a “bazuca” europeia numa irrelevante espingarda de
pressão de ar. E anunciou um ambicioso plano fiscal que mobilizará 1,8 biliões
de euros para apoios sociais. Discreto, mas assertivo e eficaz, Biden faz
regressar os Estados Unidos aos grandes momentos transformadores da Great
Society de Lyndon B. Johnson ou o New Deal de Franklin D. Roosevelt. O
Presidente merece a aprovação de 59% dos americanos.
Se a recuperação
do multilateralismo é um regresso e o pacote de estímulos uma repetição, o
aumento dos impostos sobre o capital e sobre os rendimentos dos 1% mais ricos é
um passo inovador na política dos últimos 30 ou 40 anos. O “grande Governo”,
empenhado em criar rumos ou moldar a redistribuição, está de volta. Por
ideologia? Talvez. Mas, essencialmente, por necessidade. O furacão Trump
mostrou que a democracia vacila quando 1% dos mais ricos controla 19% da
riqueza de um país antes de impostos e os 50% mais pobres são forçados a viver
com 13% – em Portugal, essa percentagem é de 12% e 18%, respectivamente. A
desigualdade, agravada pela pandemia, tornou-se o maior inimigo da democracia.
E do próprio capitalismo.
A acumulação de
riqueza chegou ao ponto em que o proverbial laissez-faire, o mantra das
políticas económicas do Ocidente depois de 1980, precisa de tempero. Já não são
os partidos da esquerda, radical ou não, a defendê-lo. Nas mais insuspeitas
escolas de economia ou nos jornais que fazem a apologia da liberdade económica,
as correcções das desigualdades por via fiscal tornaram-se banais. Pascal
Saint-Amans, director da área fiscal da OCDE, dizia recentemente ao PÚBLICO que
“este tipo de mudanças nos impostos não só não tem efeitos negativos sobre o
crescimento, como pode mesmo torná-lo mais sustentável e inclusivo”. Biden não
é Sanders. É um centrista moderado.
Cem dias depois,
os Estados Unidos ensaiam caminhos para um capitalismo que tenta recuperar o
rosto humano. As propostas de Biden têm ainda de ser aprovadas. A tributação
das plataformas digitais tem ainda de ser discutida. Os paraísos fiscais terão
de ser regulados. Mas, depois deste passo, o drama da desigualdade nas
sociedades democráticas ganhou outro espaço na ordem do dia. Os Estados
Unidos voltam a dar exemplos ao mundo.
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