quarta-feira, 28 de abril de 2021

Movimento Europa e Liberdade e tudo o que a direita não precisa

 



OPINIÃO

Movimento Europa e Liberdade e tudo o que a direita não precisa

 

O que tanto me entristece como diverte é ver a direita (masculina e empresarial) muito satisfeita debatendo os seus delírios, em vez dos problemas dos portugueses.

 

Maria João Marques

28 de Abril de 2021, 0:10

https://www.publico.pt/2021/04/28/opiniao/noticia/movimento-europa-liberdade-direita-nao-precisa-1960268

 

Quando surgiu o Movimento Europa e Liberdade, em 2019, e as suas conferências para discutir o país e a direita, tive sentimentos mistos. Por um lado, gosto de pessoas que tenham iniciativa, pensem em projetos e os concretizem, espicacem a nossa sociedade civil normalmente amorfa. Gosto ainda mais quando o fazem com recursos próprios ou apoio de empresas (se bem que neste caso há a aferir o interesse das empresas patrocinarem tais projetos), ao invés de correrem atrás do subsídio do Estado. A discussão e o debate públicos são bons, certo? Quem os promove não merece censura.

 

Por outro lado, era muito visível que o MEL não trazia nada de novo. Organizado por dois homens, de perfil corporativo, zero imaginação, o clímax do statu quo, centrados exclusivamente em temas económicos e naqueles assuntos que as ditas direitas alternativas adoram por todo o mundo: o politicamente correto e queixumes sobre o estado e a esquerda (nos mantras ‘esquerda radical’ ou ‘socialismo radical’). Movimento assumidamente de direita – e, novamente, nada contra – mas, infelizmente, só trazendo o que a direita já tem em demasia e não faz falta mais. Pelo contrário.

 

Uma direita sectária, cinzenta, a piscar o olho aos temas trumpistas: as aleivosias da imprensa (‘a manipulação da esfera pública e o papel da comunicação social’); ‘a ditadura do politicamente correto e o domínio cultural da esquerda radical’; ‘as novas ameaças à liberdade’ (contando a liberdade só de alguns, e algumas escolhidas a dedo, bem entendido). De resto, os temas dos painéis, bem como os oradores, repetem-se de ano para ano, com pequenas mudanças cirúrgicas. Não entendo se é falta de imaginação se muitos convites recusados.

 

Temas de cidadania não se vislumbram nos eventos do MEL. Aparentemente não interessam a uns estados gerais da direita. O mundo inteiro (incluindo os partidos de direita inteligentes – a CDU alemã, por exemplo) fala de sexismo, racismo, necessidade de sociedades inclusivas. Não só porque é justo e moral, mas também porque as sociedades inclusivas aproveitam melhor o talento de todos, são mais produtivas, inovadoras e eficientes. Estranho: pessoas de perfil tão corporativo como os fundadores do MEL não conhecerem os vários e elucidativos relatórios da consultora McKinsey sobre diversidade, dando conta de como diversidade nos executivos de uma empresa está associado a maior rentabilidade.

 

Sintomaticamente, o evento de 2019 tinha um rácio de género interessante. Sete mulheres para quarenta e quatro homens. Este ano há 20% de mulheres. É a loucura. Também é uma direita masculina, reputando os assuntos que lhe apelam os únicos que contam.

 

Questões de educação? Tema que é só dos pilares mais estruturantes para o sucesso de uma comunidade? Outra vez: não interessam para a direita MEL. Estrangulamentos na Justiça mais que evidentes? Criando distorções na vida social e, ademais, impedimentos sérios àquilo que preocupa todos os segundos de vida dos fundadores e participantes do MEL – a atividade económica? Não querem saber.

 

A habitação? Problema muito sério e que está longe de se sentir só em Lisboa e Porto? Falta de casas para arrendar para habitação permanente nas cidades grandes, médias e pequenas? Não há um painel com pessoas fazendo propostas interessantes para tornar fiscalmente apelativo aos donos das casas arrendarem para habitação permanente (e que não impliquem quase um contrato para a vida com os inquilinos)? Resolução rápida de despejo de inquilinos incumpridores (não, ainda não acontece; há inúmeras manobras dilatórias possíveis)? Simplificação dos absurdos regulamentos de construção e reabilitação de casas que tornem o processo mais fácil e barato? (Por que carga de água em 2021 é obrigatório por um bidé em cada casa?)

 

Bom, discutir este problema que aflige as novas gerações e boa parte dos portugueses, bem como debater as suas possíveis soluções, significaria tirar tempo ao politicamente correto, ou a dizer mal dos socialistas nacionais, pelo que não pode ser. As prioridades da direita MEL estão bem definidas. O problema social da habitação é-lhes indiferente e nem entendem as potencialidades económicas que daí poderiam advir.

 

Cultura? Para rir. As pessoas da direita MEL, no máximo, vão ao cinema. Os mais afoitos talvez à ópera ou à Gulbenkian – para serem vistos. A arte, a cultura e as atividades criativas são setores com grande potencial de crescimento, que de resto se interligam por todo o mundo com outra atividade tão necessária para o país: o turismo. Debalde: são ignoradas mesmo assim.

 

Os fundadores do MEL convidaram no ano passado, e reincidem nas conferências do próximo mês, André Ventura. Não espanta: afinal, o que conta é só a economia e trumpismos avulsos e aqui Ventura não destoa. Tudo o resto, para esta direita, são assuntos menores

 

Atentem: não obsto, pelo contrário, à direita valorizar e discutir temas económicos. E que não se embarque no lirismo da esquerda mais floreada que considera taxar ricos em Portugal uma panaceia (sem perceber que fora meia dúzia de pessoas não haveria ricos para taxar). Ou, dando um exemplo do presente, se prepara para burocratizar tanto e tornar o teletrabalho tão caro para as empresas que vão conseguir espatifar a possibilidade de trabalhadores usufruírem desta flexibilidade – porque as empresas não estarão para isso. (Claro que há detalhes a afinar, sobretudo quanto à separação de vida privada e profissional. Mas afogar a solução em burocracia e custos é exterminá-la.) É muito redutor, no entanto, centrarem-se exclusivamente na economia. Para mais entendida de forma preguiçosa e com vistas estreitas.

 

Não bastando já esta versão paroquial e pequena da direita, os fundadores do MEL convidaram no ano passado, e reincidem nas conferências do próximo mês, André Ventura. Numa clara intenção de normalizar o Chega. De criar o ambiente propício a uma união da direita em futuro governo incluindo quem propõe a prisão perpétua, a diabolização de certos cidadãos portugueses e tem os direitos das mulheres como alvos a abater. Não espanta: afinal, o que conta é só a economia e trumpismos avulsos e aqui Ventura não destoa. Tudo o resto, para esta direita, são assuntos menores.

 

O MEL é em partes iguais sintoma e catalisador do bafio que se alarga à direita. O que tanto me entristece como diverte é ver a direita (masculina e empresarial) muito satisfeita debatendo os seus delírios, em vez dos problemas dos portugueses. (Delírios que entusiasmam uma dúzia de excitados das redes sociais e geram bocejos nos demais.) E julgando-se, assim, a construir uma alternativa aos maldosos encarnados que nos governam. O PS agradece.

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