OPINIÃO
O “novo normal” nos museus
Será que alguma vez a curiosidade animal e a capacidade
de intelecção humana se bastarão através de representações virtuais do mundo?
Muitos cremos que não e temos, mesmo no actual contexto, boas indicações neste
sentido.
Luís Raposo
6 de Setembro de
2020, 8:30
https://www.publico.pt/2020/09/06/culturaipsilon/opiniao/novo-normal-museus-1930509
Pouco mais de
meio ano depois do alastramento da Covid-19 a todo o mundo, diz-se que estamos
a entrar, ou entrámos já, em “novo normal”, que tem como traço mais marcante o
recurso ao contacto remoto digital e à representação virtual. Teletrabalho,
compras em linha, seminários via web, aplicações e sítios encantatórios...
enfim, um universo “maravilhoso” na ponta dos dedos, em teclados, ratos,
alavancas de jogo, colunas de som, microfones e écrans.
No campo vasto da
cultura, o mesmo ímpeto digital percorreu por estes meses criadores, mediadores
e empreendedores. Tudo se procurou fazer por via remota, a distância. Tudo
mesmo: leitura dita comum de clássicos da literatura, audição dita imaginativa
de música sem músicos, teatro dito comunitário, visitas ditas educativas a
museus e monumentos… e debates, muitos tele-debates, tantos que fartaram.
Especialmente ocupadas estiveram as chamadas “indústrias criativas”, que
cavalgaram exuberantemente a pandemia e o confinamento, vendendo novos
produtos, abrindo novos negócios.
Inversamente, os
artistas propriamente ditos viram-se desapossados de quase tudo e mergulharam
em poço profundo. Isto foi e ainda é em parte assim especialmente no caso das
chamadas artes performativas, onde, por muita e embasbacante pirotecnia que se
use, não há como substituir o conjunto de sensações físicas imediatas da
música, do teatro ou da dança assistidas ao vivo – a única forma pela qual
qualquer destas e de outras formas de arte merecem realmente os nomes que
transportam desde remota antiguidade, porventura desde sempre.
E os museus, como
se posicionam eles neste quadro? Bom, também aqui os meses que passaram
constituíram terreno fértil de afirmação de quem já do antecedente se extasiava
com o digital e o virtual, encontrando neles propriedades disruptivas (v. Os
museus e o mundo virtual: amigos ou inimigos?, Público, 16.5.2018), quer dizer,
capacidades de não apenas aprofundar e melhorar práticas sedimentadas, mas de
verdadeiramente “revolucionar” os museus, tornando-os outra coisa, servida por
outros agentes. Foi, e continua em parte a ser, o tempo dos vendedores de
linguajar (providers de hardware, software, apps, games, devices, gadgets,
etc.), que as tutelas dos museus, receberam-nos de braços abertos, porque
ninguém deseja passar ao lado do que “está a dar”. Pôde nestes meses não haver
dinheiro para reformular espaços expositivos e reservas, para conservar e
estudar colecções, porventura editar catálogos, para contratar pessoal, em
locais onde os técnicos habilitados vão rareando como água em deserto… mas
houve para comprar produtos encantatórios: cenas de vida mais avançadas do que
o antigo technicolor em cinemascope e quase tão boas como as dos efeitos
especiais por computação gráfica, reconstituições melhores do que rudimentares
hologramas e quase tão perfeitas como as dos ambientes tridimensionais
imersivos.
Durante os dias
do confinamento, as teses dos arautos do digital e do virtual pareciam
irrefutáveis: a procura por via remota seria o futuro; o museu em suporte real
passaria a assimilar-se progressivamente ao modelo de arquivo, dirigido a
minorias cada vez mais reduzidas. Estava a passar a época em que as pessoas se
sentiam empaticamente ligados à aura dos originais, sendo que estes, aliás,
desiludem com frequência, porque descoloridos, fragmentados, enfim, difíceis de
ver e entender. Um “novo normal” emergia, no qual as fronteiras entre
verdadeiro/falso, original/cópia, real/virtual se esbateriam a tal ponto que se
poderia com propriedade falar também em “novo mundo”, que no passado se anteviu
“admirável”.
Chegados aqui,
porém, hesitamos. Será que alguma vez a curiosidade animal, primeiro, e a
capacidade de intelecção humana, depois, se bastarão através de representações
virtuais do mundo? Muitos cremos que não e temos, mesmo no actual contexto,
boas indicações neste sentido. Vejamos uma delas, a que resulta da análise das
tendências de pesquisa no motor de busca mais universalmente usado, o Google.
Em finais de
Abril passado, já dois bisonhos britânicos se digladiavam em torno do que seria
o verdadeiro impacte do digital e do virtual nos museus, usando para o efeito
indicadores retirados da fonte indicada. Primeiro, um deles garantia que as
pessoas não querem visitas virtuais a museus, querem mesmo visitá-los; dias
depois, outro dizia que de facto sim, as pessoas querem mesmo essas visitas.
Passado mais tempo, com os dados até ao final de Agosto, que podemos concluir?
Bom, que talvez ambos tenham alguma razão, mas com inegável e quase esmagadora
tendência no sentido do que afirmava o primeiro deles.
O gráfico acima
mostra a evolução ao longo de um ano das tendências de pesquisa dos seguintes
tópicos no Google, a nível mundial: museu virtual, visita de campo virtual,
museu próximo de mim e visita a museu. Os dois primeiros dão mais conta do que
seria o “novo normal” baseado no digital e no virtual; os dois últimos, o
contrário. Análise mais fina seria interessante e permitiria, por exemplo,
distinguir o que se passa em continentes diferentes (na América do Norte uma
maior afeição ao virtual do que na Europa), mas mesmo a este nível é notório
que a procura pela oferta digital e virtual constituiu um fenómeno explosivo
estritamente ligado ao confinamento, tendo depois vindo a decair rapidamente,
enquanto tendência oposta ocorre na procura de informação para visita física
aos museus. A nível mais detalhado, verifica-se todavia que a atenção dada aos
produtos digitais deverá provavelmente estabilizar em níveis algo superiores
aos do antecedente; e o interesse pela visita a museus ainda não recuperou
totalmente, sendo sobretudo visível nas situações de proximidade.
Veremos com o
passar do tempo e o retomar dos contactos a longa distância qual o “novo
normal” que realmente os museus irão vivenciar. Para já o que podemos prever é
que alguns, os que se deixaram prender pelo beijo de aranha do turismo de
massas e pelos cantos de sereia do “mercado”, poderão talvez tardar em
recuperar os seus públicos. No nosso país, estes serão sobretudo os do
Ministério da Cultura, onde à falta de políticas e de orçamento do Estado se
acrescenta agora a falta de receitas próprias. Mas a maioria, os que vivem
ancorados nas comunidades que afinal os criaram, sofrerão menos e poderão sair
desta crise até em melhores condições, porque mais despertos para as actuais
tecnologias da comunicação a distância. Resta esperar, com algum optimismo
(alguns dirão candura), que tenham também aprendido que o seu “quase” na forma
como se conseguem aproximar às tecnologias de efeitos especiais não chega para
os distinguir e em última análise lhes garantir perenidade. Aquilo que verdadeiramente
os diferencia são as suas colecções de originais, para serem vistas e sentidas
fisicamente.
Arqueólogo; presidente do ICOM Europa
Sem comentários:
Enviar um comentário