sexta-feira, 25 de setembro de 2020

Direcção-Geral do Património Cultural acusada de mandar destruir vestígios islâmicos na Sé de Lisboa

 


PATRIMÓNIO

Direcção-Geral do Património Cultural acusada de mandar destruir vestígios islâmicos na Sé de Lisboa

 

Sindicato, Associação dos Arqueólogos Portugueses e profissionais do meio denunciam intenção do organismo que tutela o Património Cultural. Este responde que está em causa “um pequeno troço” e que apenas “no estritamente necessário” foram já “desmontadas algumas estruturas arqueológicas”.

 

João Pedro Pincha

João Pedro Pincha 25 de Setembro de 2020, 18:59

https://www.publico.pt/2020/09/25/local/noticia/direccaogeral-patrimonio-cultural-acusada-mandar-destruir-vestigios-islamicos-lisboa-1932905

 

Novos e relevantes vestígios da antiga mesquita principal de Lisboa foram encontrados nos claustros da Sé e a Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC) deu ordem para que estes fossem desmontados por interferirem com o projecto arquitectónico em curso, que visa a musealização e valorização das ruínas arqueológicas.

 

A situação foi denunciada pelo Sindicato dos Trabalhadores em Arqueologia (STARQ) e deu origem a uma petição pública online que em poucas horas recolheu mais de 750 assinaturas, levando a Associação dos Arqueólogos Portugueses (AAP) a pedir explicações e a uma mobilização rara entre arqueólogos e historiadores.

 

 

A DGPC responde que apenas será desmontado “um pequeno troço” e que é necessário fazê-lo por motivos de segurança.

 

Nos últimos meses foram identificados nove compartimentos que se julga terem feito parte da principal mesquita de Lisboa durante o período medieval, bem como o piso inferior e escadas do minarete dessa mesquita. Trata-se, segundo informações recolhidas pelo PÚBLICO, de estruturas bem conservadas, ainda com paredes altas, arcos, janelas e portas, que permitem identificar diferentes espaços do complexo da antiga mesquita. É uma descoberta inédita em Portugal, sublinham ao PÚBLICO vários especialistas.

 

De acordo com a denúncia do STARQ, vertida na petição pública, a DGPC autorizou a destruição de sete dos nove compartimentos para não ter de pedir uma nova alteração ao projecto do núcleo museológico. Desenhado pelo arquitecto Adalberto Dias, o projecto já foi revisto uma vez para acomodar vestígios arqueológicos encontrados há dois anos.

 

“Este património não pode ser desmontado de maneira alguma, o projecto tem de ser alterado para o incluir”, afirma Regis Barbosa, presidente do STARQ, que na terça-feira pediu esclarecimentos à DGPC. “Até ao momento não temos qualquer resposta. Temos plena consciência de que é um projecto muito complexo, mas certas decisões não podem ser tomadas e, sobretudo, devia haver mais transparência no processo de decisão da DGPC”, diz o dirigente sindical.

 

Em resposta a perguntas do PÚBLICO, a DGPC confirma que vão ser desmontadas estruturas arqueológicas, mas diz que “correspondem a um pequeno troço de parede à qual se encontra adossado um banco construído em alvenaria de tijolo com dois pequenos arcos”.

 

“Verificou-se que a sua preservação in situ não é compatível com a execução da obra em curso, colocando em risco a estabilidade estrutural de parte substancial da ala sul do claustro da sé patriarcal (Monumento Nacional), e pondo em causa a própria implementação do projecto reformulado e o investimento associado”, esclarece aquela direcção-geral.

 

 

“Os trabalhos arqueológicos no local têm decorrido na conjugação de esforços permitindo a minimização dos impactes sobre o património arqueológico subjacente e os elementos estruturais do imóvel classificado, evitando o seu colapso, não obstante a implementação de fortes e apertadas medidas de estabilização e sustentação dos mesmos”, acrescenta a resposta.

 

“Nada parecido em Portugal”

Há muitos anos que se desconfia que a principal mesquita da Lisboa muçulmana tivesse existido no local onde se erigiu a Sé depois da chegada das tropas de D. Afonso Henriques, em 1147. Duas décadas de escavações foram revelando vestígios islâmicos por baixo dos claustros, mas só em 2018, com o projecto de musealização já em curso, é que começaram a aparecer sinais mais robustos.

 

Desde então, como o PÚBLICO noticiou em Dezembro do ano passado, o projecto arquitectónico foi alterado para se adaptar às estruturas descobertas, mas os vestígios não pararam de surgir. De acordo com Jacinta Bugalhão, arqueóloga da DGPC com vasto trabalho sobre o Portugal islâmico, os compartimentos agora encontrados “são espectaculares, são bonitos, são antigos e têm um grande potencial de leitura, quer para a comunidade científica quer para um público mais leigo”.

 

“É indigno, é imoral, é inadmissível que a DGPC, que tem como única missão a defesa do património cultural, esteja a autorizar a destruição deste património”, critica Jacinta Bugalhão. “Não passa pela cabeça de ninguém não o conservar. Uma mesquita sob a sé patriarcal da capital de um país é algo extraordinário”, sublinha.

 

“Nós não temos nada parecido em Portugal”, resume Cláudio Torres, especialista na presença islâmica no país e considerado uma referência na arqueologia portuguesa. “Nós andámos muitos anos à procura desta mesquita e finalmente aparecem elementos fundamentais. Obviamente que o projecto tem de ser modificado. Este é um acontecimento destacado para a nossa História e para a nossa arqueologia.”

 

Na sua resposta ao PÚBLICO, a DGPC garante que, ao longo de uma empreitada que já leva dois anos e meio, apenas “no estritamente necessário” foram já “desmontadas algumas estruturas arqueológicas”, optando-se nesses casos pela “conservação pelo registo científico”. Ou seja, através de um “rigoroso registo descritivo, gráfico e fotográfico”.

 

“Comprar uma guerra”

A denúncia do STARQ está a originar várias reacções. José Arnaud, presidente da Associação dos Arqueólogos Portugueses (AAP), informa que enviou na quinta-feira “um apelo ao sr. director-geral do Património Cultural para que se faça uma revisão do projecto que preveja a conservação integral de todas as estruturas relacionadas com a antiga mesquita”.

 

“Tudo o que ali se conseguir recuperar é precioso. Isto não é um capricho de arqueólogos, é algo que ultrapassa largamente o âmbito arqueológico. Se a DGPC não tomar as atitudes adequadas, vai comprar aqui uma guerra”, avisa Arnaud. “Não nos queremos substituir à DGPC, mas a AAP não deixará de fazer tudo o possível para evitar que desta situação resulte destruição de património.”

 

A intervenção em curso nos claustros resulta de uma parceria entre o Cabido da Sé e a DGPC, a quem compete tomar decisões sobre a empreitada. Uma eventual nova revisão do projecto está dependente de um pedido desta entidade, que funciona na dependência do Ministério da Cultura, ao arquitecto, que desenhou o núcleo museológico sem saber que estes vestígios ali estavam.

 

Filomena Barros, especialista em História Medieval da Universidade de Évora, tece também duras críticas à tutela e diz que estes achados constituem “património único no contexto português”, uma vez que “vestígios de mesquitas do século XII não temos absolutamente nenhum”. Tratando-se de uma “zona perfeitamente marginal” no vasto território dominado pelos árabes, sobre Lisboa há “pouca documentação” desta época, explica a docente, “daí a importância de vestígios arqueológicos”.

 

“Percebo perfeitamente que haja vestígios materiais que têm de ser destruídos pelas contingências do presente, mas é extremamente desolador sabermos que um conjunto único como este vai ser destruído quando viu a luz por tão pouco tempo”, opina Filomena Barros.

 

As obras na Sé de Lisboa iniciaram-se em Fevereiro de 2018 e deviam ter terminado em Abril de 2019. Tinham um orçamento inicial de 4,1 milhões de euros, proveniente de fundos europeus, do Estado e de um empréstimo bancário contraído pela Igreja.

 

tp.ocilbup@ahcnip.oaoj

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