PATRIMÓNIO
Direcção-Geral do Património Cultural acusada de mandar
destruir vestígios islâmicos na Sé de Lisboa
Sindicato, Associação dos Arqueólogos Portugueses e
profissionais do meio denunciam intenção do organismo que tutela o Património
Cultural. Este responde que está em causa “um pequeno troço” e que apenas “no
estritamente necessário” foram já “desmontadas algumas estruturas
arqueológicas”.
João Pedro Pincha
João Pedro Pincha
25 de Setembro de 2020, 18:59
Novos e
relevantes vestígios da antiga mesquita principal de Lisboa foram encontrados
nos claustros da Sé e a Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC) deu ordem
para que estes fossem desmontados por interferirem com o projecto
arquitectónico em curso, que visa a musealização e valorização das ruínas
arqueológicas.
A situação foi
denunciada pelo Sindicato dos Trabalhadores em Arqueologia (STARQ) e deu origem
a uma petição pública online que em poucas horas recolheu mais de 750
assinaturas, levando a Associação dos Arqueólogos Portugueses (AAP) a pedir
explicações e a uma mobilização rara entre arqueólogos e historiadores.
A DGPC responde
que apenas será desmontado “um pequeno troço” e que é necessário fazê-lo por
motivos de segurança.
Nos últimos meses
foram identificados nove compartimentos que se julga terem feito parte da
principal mesquita de Lisboa durante o período medieval, bem como o piso
inferior e escadas do minarete dessa mesquita. Trata-se, segundo informações
recolhidas pelo PÚBLICO, de estruturas bem conservadas, ainda com paredes
altas, arcos, janelas e portas, que permitem identificar diferentes espaços do
complexo da antiga mesquita. É uma descoberta inédita em Portugal, sublinham ao
PÚBLICO vários especialistas.
De acordo com a
denúncia do STARQ, vertida na petição pública, a DGPC autorizou a destruição de
sete dos nove compartimentos para não ter de pedir uma nova alteração ao
projecto do núcleo museológico. Desenhado pelo arquitecto Adalberto Dias, o
projecto já foi revisto uma vez para acomodar vestígios arqueológicos
encontrados há dois anos.
“Este património
não pode ser desmontado de maneira alguma, o projecto tem de ser alterado para
o incluir”, afirma Regis Barbosa, presidente do STARQ, que na terça-feira pediu
esclarecimentos à DGPC. “Até ao momento não temos qualquer resposta. Temos plena
consciência de que é um projecto muito complexo, mas certas decisões não podem
ser tomadas e, sobretudo, devia haver mais transparência no processo de decisão
da DGPC”, diz o dirigente sindical.
Em resposta a
perguntas do PÚBLICO, a DGPC confirma que vão ser desmontadas estruturas
arqueológicas, mas diz que “correspondem a um pequeno troço de parede à qual se
encontra adossado um banco construído em alvenaria de tijolo com dois pequenos
arcos”.
“Verificou-se que
a sua preservação in situ não é compatível com a execução da obra em curso,
colocando em risco a estabilidade estrutural de parte substancial da ala sul do
claustro da sé patriarcal (Monumento Nacional), e pondo em causa a própria
implementação do projecto reformulado e o investimento associado”, esclarece
aquela direcção-geral.
“Os trabalhos
arqueológicos no local têm decorrido na conjugação de esforços permitindo a
minimização dos impactes sobre o património arqueológico subjacente e os
elementos estruturais do imóvel classificado, evitando o seu colapso, não
obstante a implementação de fortes e apertadas medidas de estabilização e
sustentação dos mesmos”, acrescenta a resposta.
“Nada parecido em
Portugal”
Há muitos anos
que se desconfia que a principal mesquita da Lisboa muçulmana tivesse existido
no local onde se erigiu a Sé depois da chegada das tropas de D. Afonso
Henriques, em 1147. Duas décadas de escavações foram revelando vestígios
islâmicos por baixo dos claustros, mas só em 2018, com o projecto de
musealização já em curso, é que começaram a aparecer sinais mais robustos.
Desde então, como
o PÚBLICO noticiou em Dezembro do ano passado, o projecto arquitectónico foi
alterado para se adaptar às estruturas descobertas, mas os vestígios não
pararam de surgir. De acordo com Jacinta Bugalhão, arqueóloga da DGPC com vasto
trabalho sobre o Portugal islâmico, os compartimentos agora encontrados “são
espectaculares, são bonitos, são antigos e têm um grande potencial de leitura,
quer para a comunidade científica quer para um público mais leigo”.
“É indigno, é
imoral, é inadmissível que a DGPC, que tem como única missão a defesa do
património cultural, esteja a autorizar a destruição deste património”, critica
Jacinta Bugalhão. “Não passa pela cabeça de ninguém não o conservar. Uma
mesquita sob a sé patriarcal da capital de um país é algo extraordinário”,
sublinha.
“Nós não temos
nada parecido em Portugal”, resume Cláudio Torres, especialista na presença
islâmica no país e considerado uma referência na arqueologia portuguesa. “Nós
andámos muitos anos à procura desta mesquita e finalmente aparecem elementos
fundamentais. Obviamente que o projecto tem de ser modificado. Este é um
acontecimento destacado para a nossa História e para a nossa arqueologia.”
Na sua resposta
ao PÚBLICO, a DGPC garante que, ao longo de uma empreitada que já leva dois
anos e meio, apenas “no estritamente necessário” foram já “desmontadas algumas
estruturas arqueológicas”, optando-se nesses casos pela “conservação pelo
registo científico”. Ou seja, através de um “rigoroso registo descritivo,
gráfico e fotográfico”.
“Comprar uma
guerra”
A denúncia do
STARQ está a originar várias reacções. José Arnaud, presidente da Associação
dos Arqueólogos Portugueses (AAP), informa que enviou na quinta-feira “um apelo
ao sr. director-geral do Património Cultural para que se faça uma revisão do
projecto que preveja a conservação integral de todas as estruturas relacionadas
com a antiga mesquita”.
“Tudo o que ali
se conseguir recuperar é precioso. Isto não é um capricho de arqueólogos, é
algo que ultrapassa largamente o âmbito arqueológico. Se a DGPC não tomar as
atitudes adequadas, vai comprar aqui uma guerra”, avisa Arnaud. “Não nos
queremos substituir à DGPC, mas a AAP não deixará de fazer tudo o possível para
evitar que desta situação resulte destruição de património.”
A intervenção em
curso nos claustros resulta de uma parceria entre o Cabido da Sé e a DGPC, a
quem compete tomar decisões sobre a empreitada. Uma eventual nova revisão do
projecto está dependente de um pedido desta entidade, que funciona na
dependência do Ministério da Cultura, ao arquitecto, que desenhou o núcleo
museológico sem saber que estes vestígios ali estavam.
Filomena Barros,
especialista em História Medieval da Universidade de Évora, tece também duras
críticas à tutela e diz que estes achados constituem “património único no
contexto português”, uma vez que “vestígios de mesquitas do século XII não
temos absolutamente nenhum”. Tratando-se de uma “zona perfeitamente marginal”
no vasto território dominado pelos árabes, sobre Lisboa há “pouca documentação”
desta época, explica a docente, “daí a importância de vestígios arqueológicos”.
“Percebo
perfeitamente que haja vestígios materiais que têm de ser destruídos pelas
contingências do presente, mas é extremamente desolador sabermos que um
conjunto único como este vai ser destruído quando viu a luz por tão pouco
tempo”, opina Filomena Barros.
As obras na Sé de
Lisboa iniciaram-se em Fevereiro de 2018 e deviam ter terminado em Abril de
2019. Tinham um orçamento inicial de 4,1 milhões de euros, proveniente de
fundos europeus, do Estado e de um empréstimo bancário contraído pela Igreja.
tp.ocilbup@ahcnip.oaoj
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