domingo, 27 de setembro de 2020

Não destruam o nosso passado mouro

 


Rui Tavares

OPINIÃO

Não destruam o nosso passado mouro

 

A Sé é hoje uma igreja cristã; mas foi antes uma mesquita muçulmana e talvez antes disso um templo pagão. Tudo o que vier a ser recuperado dessa história tem de ser preservado e valorizado.

 

28 de Setembro de 2020, 0:00

https://www.publico.pt/2020/09/28/opiniao/opiniao/nao-destruam-passado-mouro-1933102

 

Feitas as contas entre 711, quando as primeiras tropas muçulmanas cruzaram o Estreito de Gibraltar e iniciaram a invasão da Península Ibérica, até à conquista definitiva do Algarve “d’aquém-mar”, em meados do século XIII, o período islâmico da nossa história durou praticamente cinco séculos e meio. É praticamente equivalente, em duração, ao período da Lusitânia romana e do Portugal imperial e colonial — mas é muito menos estudado, conhecido e celebrado do que estes.

 

Este período “mouro” da nossa história, aliás comum com a de Espanha, onde ainda durou até ao fim do Reino de Granada em 1492, representa um vínculo com um momento único da história da civilização, quando centros de conhecimento como Córdova faziam a ponte entre Oriente e Ocidente e preservavam boa parte da literatura legada pelos gregos antigos, primeiro traduzida para o árabe na Ásia Central e no Médio Oriente, e depois retraduzida para o latim em Toledo. Em Córdova viveram quase ao mesmo tempo os dois grandes génios filosóficos do islamismo e do judaísmo medieval, Averróis e Maimónides. No território que hoje é Portugal a riqueza da filosofia medieval e renascentista é principalmente judaica, de Isaac Abravanel a Leão Hebreu, mas a poesia que os muçulmanos nos legaram é da mais bela que foi escrita e cantada neste território.

 

Portugal foi, tal como a Espanha, moldado pelas três culturas do judaísmo, cristianismo e islamismo. Ao ignorarmos essas dimensões da nossa histórias estamos a empobrecer-nos; é quase inteiramente desconhecido o grande poeta Al-Mutâmide, nascido em Beja e crescido em Silves, que foi rei em Sevilha, tal como quase nunca nos damos conta que o contributo filósofico dos judeus portugueses exilados é provavelmente o mais importante que gente oriunda deste recanto do continente europeu deu para a história do pensamento.

 

Descendo à terra, é impossível falar português por uns minutos que seja sem dizer umas quantas palavras que vieram do árabe; muitos de nós nascemos e vivemos em terras ou bairros com nomes árabes, de Aljezur a Mafamude ou, em Lisboa, de Alfama a Alcântara.

 

E, no entanto, quase não há monumentos desse passado: temos restos no Castelo de Silves e no Palácio de Sintra, temos a Igreja Matriz de Mértola onde se vê claramente a mesquita que já foi, temos talvez alguns arcos da antiga Alcáçova de Al-Usbuna nuns arcos que ainda sobrevivem no Castelo de São Jorge, e sei de pouco mais.

 

Causa por isso uma enorme estranheza a notícia de que a Direção-Geral do Património Cultural (DGPC) se apronte a desmantelar algumas estruturas da Grande Mesquita que, embora desde sempre se adivinhasse estar por debaixo da Sé de Lisboa, só recentemente foi descoberta em escavações arqueológicas. Aquele era o templo que os al-usbunenses muçulmanos frequentavam quando os portucalenses de Afonso Henriques, e os seus aliados cruzados, conquistaram a cidade que talvez não imaginassem viria a ser a capital de um novo reino. E os vestígios são tão mais importantes quanto eles eram na altura relativamente recentes, por serem já do tempo da invasão Almorávida, berbere e tida por agressivamente religiosa, na última fase do período islâmico no nosso território (mais ou menos na mesma altura em que Dom Afonso Henriques chegava a Lisboa, Averróis era forçado a abandonar Córdova para fugir à intolerância almorávida). Segundo o Sindicato dos Trabalhadores da Arqueologia, que denunciou as intenções da DGPC, não há outros vestígios arquitetónicos almorávidas na Península, e mesmo em Marrocos há poucos. Como é evidente, deve ser dada prioridade à preservação destes vestígios, como há uns anos foi dada às ruínas do Teatro Romano de Lisboa, por serem exemplos raros de património legado por épocas marcantes e infelizmente pouco conhecidas da nossa história.

 

Não se justifica que a DGPC siga por diante com os seus planos sem ao menos abrir uma janela para o debate público, pelo que a petição dos arqueólogos pedindo a atenção da Assembleia da República para este tema tem todo o cabimento. Se a DGPC quer destruir uma parte desses vestígios porque o projeto arquitetónico que tinha para a catedral lisboeta, decidido em conjunto com o Cabido da Sé, não os contempla, isso seria simplesmente absurdo: em qualquer parte do mundo que leve a sério a sua história, uma descoberta arqueológica desta importância deve levar à reavaliação do projeto de arquitetura. Se as estruturas apresentam riscos de segurança ou outros, justiça-se no mínimo uma segunda opinião e um debate entre especialistas, que não houve (os historiadores do período islâmico são unânimes em discordar da decisão).

 

 

Aquilo que não pode acontecer é deixar introduzir-se aqui uma dimensão de memória inventada que já causou muitos danos à Sé, como quando o salazarismo lhe impôs uma imagem de uma austeridade medieval que provavelmente nunca existiu. A Sé é hoje uma igreja cristã; mas foi antes uma mesquita muçulmana e talvez antes disso um templo pagão. Tudo o que vier a ser recuperado dessa história tem de ser preservado e valorizado, em nome da nossa própria necessidade de nos conhecermos e ao nosso passado.

 

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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