Rui Tavares
OPINIÃO
Não destruam o nosso passado mouro
A Sé é hoje uma igreja cristã; mas foi antes uma mesquita
muçulmana e talvez antes disso um templo pagão. Tudo o que vier a ser
recuperado dessa história tem de ser preservado e valorizado.
28 de Setembro de
2020, 0:00
https://www.publico.pt/2020/09/28/opiniao/opiniao/nao-destruam-passado-mouro-1933102
Feitas as contas
entre 711, quando as primeiras tropas muçulmanas cruzaram o Estreito de
Gibraltar e iniciaram a invasão da Península Ibérica, até à conquista
definitiva do Algarve “d’aquém-mar”, em meados do século XIII, o período
islâmico da nossa história durou praticamente cinco séculos e meio. É
praticamente equivalente, em duração, ao período da Lusitânia romana e do
Portugal imperial e colonial — mas é muito menos estudado, conhecido e
celebrado do que estes.
Este período
“mouro” da nossa história, aliás comum com a de Espanha, onde ainda durou até
ao fim do Reino de Granada em 1492, representa um vínculo com um momento único
da história da civilização, quando centros de conhecimento como Córdova faziam
a ponte entre Oriente e Ocidente e preservavam boa parte da literatura legada
pelos gregos antigos, primeiro traduzida para o árabe na Ásia Central e no
Médio Oriente, e depois retraduzida para o latim em Toledo. Em Córdova viveram
quase ao mesmo tempo os dois grandes génios filosóficos do islamismo e do
judaísmo medieval, Averróis e Maimónides. No território que hoje é Portugal a
riqueza da filosofia medieval e renascentista é principalmente judaica, de
Isaac Abravanel a Leão Hebreu, mas a poesia que os muçulmanos nos legaram é da
mais bela que foi escrita e cantada neste território.
Portugal foi, tal
como a Espanha, moldado pelas três culturas do judaísmo, cristianismo e
islamismo. Ao ignorarmos essas dimensões da nossa histórias estamos a
empobrecer-nos; é quase inteiramente desconhecido o grande poeta Al-Mutâmide,
nascido em Beja e crescido em Silves, que foi rei em Sevilha, tal como quase
nunca nos damos conta que o contributo filósofico dos judeus portugueses
exilados é provavelmente o mais importante que gente oriunda deste recanto do
continente europeu deu para a história do pensamento.
Descendo à terra,
é impossível falar português por uns minutos que seja sem dizer umas quantas
palavras que vieram do árabe; muitos de nós nascemos e vivemos em terras ou
bairros com nomes árabes, de Aljezur a Mafamude ou, em Lisboa, de Alfama a
Alcântara.
E, no entanto,
quase não há monumentos desse passado: temos restos no Castelo de Silves e no
Palácio de Sintra, temos a Igreja Matriz de Mértola onde se vê claramente a
mesquita que já foi, temos talvez alguns arcos da antiga Alcáçova de Al-Usbuna
nuns arcos que ainda sobrevivem no Castelo de São Jorge, e sei de pouco mais.
Causa por isso
uma enorme estranheza a notícia de que a Direção-Geral do Património Cultural
(DGPC) se apronte a desmantelar algumas estruturas da Grande Mesquita que,
embora desde sempre se adivinhasse estar por debaixo da Sé de Lisboa, só
recentemente foi descoberta em escavações arqueológicas. Aquele era o templo
que os al-usbunenses muçulmanos frequentavam quando os portucalenses de Afonso
Henriques, e os seus aliados cruzados, conquistaram a cidade que talvez não
imaginassem viria a ser a capital de um novo reino. E os vestígios são tão mais
importantes quanto eles eram na altura relativamente recentes, por serem já do
tempo da invasão Almorávida, berbere e tida por agressivamente religiosa, na
última fase do período islâmico no nosso território (mais ou menos na mesma
altura em que Dom Afonso Henriques chegava a Lisboa, Averróis era forçado a
abandonar Córdova para fugir à intolerância almorávida). Segundo o Sindicato
dos Trabalhadores da Arqueologia, que denunciou as intenções da DGPC, não há
outros vestígios arquitetónicos almorávidas na Península, e mesmo em Marrocos
há poucos. Como é evidente, deve ser dada prioridade à preservação destes
vestígios, como há uns anos foi dada às ruínas do Teatro Romano de Lisboa, por
serem exemplos raros de património legado por épocas marcantes e infelizmente
pouco conhecidas da nossa história.
Não se justifica
que a DGPC siga por diante com os seus planos sem ao menos abrir uma janela
para o debate público, pelo que a petição dos arqueólogos pedindo a atenção da
Assembleia da República para este tema tem todo o cabimento. Se a DGPC quer
destruir uma parte desses vestígios porque o projeto arquitetónico que tinha
para a catedral lisboeta, decidido em conjunto com o Cabido da Sé, não os
contempla, isso seria simplesmente absurdo: em qualquer parte do mundo que leve
a sério a sua história, uma descoberta arqueológica desta importância deve
levar à reavaliação do projeto de arquitetura. Se as estruturas apresentam
riscos de segurança ou outros, justiça-se no mínimo uma segunda opinião e um
debate entre especialistas, que não houve (os historiadores do período islâmico
são unânimes em discordar da decisão).
Aquilo que não
pode acontecer é deixar introduzir-se aqui uma dimensão de memória inventada
que já causou muitos danos à Sé, como quando o salazarismo lhe impôs uma imagem
de uma austeridade medieval que provavelmente nunca existiu. A Sé é hoje uma
igreja cristã; mas foi antes uma mesquita muçulmana e talvez antes disso um
templo pagão. Tudo o que vier a ser recuperado dessa história tem de ser
preservado e valorizado, em nome da nossa própria necessidade de nos
conhecermos e ao nosso passado.
O autor escreve
segundo o novo acordo ortográfico
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