Manuel Carvalho
EDITORIAL
Portugal não é um quintal das traseiras de Washington
Ou Portugal afasta a chinesa Huawei da expansão da
tecnologia 5G ou, se desrespeitar o diktat de Washington, terá de pagar pela
ousadia. Isto tem um nome: coacção
26 de Setembro de
2020, 21:39
Um ano e meio
depois das últimas ameaças ao Governo, os Estados Unidos voltam à carga na sua
tentativa de pôr Portugal na ordem. Numa entrevista ao Expresso, o embaixador
George E. Glass voltou a dizer o que dissera em Fevereiro de 2019 e, ao dizer o
que disse, confirmou o ultimato: ou Portugal afasta a chinesa Huawei da
expansão da tecnologia 5G ou, se desrespeitar o diktat de Washington, terá de
pagar pela ousadia. Isto tem um nome: coacção.
O contra-ataque
do embaixador não pode passar despercebido, até porque suscita duas questões
fundamentais. A primeira é a de saber se a exigência para que Portugal se
afaste da Huawei no 5G faz sentido; a segunda é a de discutir se a coacção que
faz sobre um aliado é legítima. Começando por aqui, a resposta é óbvia: não é
legítima. Como o ministro Augusto Santos Silva fez questão de recordar, “em
Portugal, as decisões são tomadas pelas autoridades competentes”, de acordo com
a lei, e não na sequência de pressões externas.
Mas se a pressão
é deplorável e faz lembrar a arrogância norte-americana dos tempos em que
tratava países (principalmente os da América Latina) como o quintal das
traseiras, a substância obriga a uma reflexão mais cuidada. Num momento em que
é clara a ambição chinesa de expandir o seu poder pelo globo, conceder a uma
das suas empresas emblemáticas influência numa área estratégica como a das
telecomunicações é um risco.
Depois dos avisos
da União Europeia, depois de a França e o Reino Unido terem afastado a Huawei
dos seus planos para o 5G, depois de a Alemanha instituir limites à sua
intervenção, Portugal deve repensar o poder que quer conceder à tecnológica
chinesa. E deve fazê-lo à luz dos seus interesses, dos interesses europeus e,
claro, dos interesses dos seus aliados transatlânticos. O que, obviamente,
dispensa os recados insolentes do embaixador. Pelo mais elementar decoro
diplomático e pela constatação de que hoje a América está longe de se poder
assumir como um exemplo em matérias de democracia ou de transparência.
Saber que o
representante diplomático de um Governo entregue a um demagogo populista, que
ameaça a ordem multilateral, que resvala para o nacionalismo proteccionista e
que afaga os piores governos europeus em nome da sua aversão à União Europeia
não credibiliza as ameaças.
Se entre a China
e os Estados Unidos, não temos dúvidas na escolha, há palavras e atitudes que
se tornam ainda mais inaceitáveis quando vêm de um aliado.
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