António Guerreiro
CRÓNICA ACÇÃO
PARALELA
O factor F: fascismo e fascinação
25 de Setembro de
2020, 11:16
https://www.publico.pt/2020/09/25/culturaipsilon/cronica/factor-f-fascismo-fascinacao-1932487
Também por cá
estamos agora a assistir à ascensão organizada de um novo radicalismo de
direita. E olhamos o fenómeno como quem observa de fora a vida de um organismo
criado num laboratório.
Na sua coluna de
segunda-feira, no Expresso, Daniel Oliveira apontava o fascínio da comunicação
social pelo congresso do Chega, em Évora – um fascínio que não equivale a um
apoio, dizia Daniel Oliveira, mas tem quase o mesmo efeito. Devemos então
colocar a questão: de onde nasce esse fascínio? Nasce daquilo a que Adorno, na
sua análise da “personalidade autoritária” como fundamento do fascismo, chamou
o “factor F”.
Trata-se do triunfo de uma irracionalidade que gera a
necessidade paranóica, tanto mais forte quanto mais vazia de conteúdos reais,
de crer, odiar e combater um inimigo absoluto. E no combate a esse inimigo
essencialmente abstracto, espectral, mas que depois ganha corpo em pessoas,
entidades e realidades empíricas, o primeiro dever que o combatente assume
perante o seu chefe é o de não ter dúvidas. Por isso, nenhuma racionalidade e
sentido da realidade conseguem ser armas eficazes.
Contra este
radicalismo, não há refutação crítica eficiente. O fascínio por este fenómeno é
muito semelhante ao que sentimos pela estupidez.
Usei com cálculo
a expressão “novo radicalismo de direita” para evocar um texto de Adorno com
esse título, que permaneceu inédito até 2019. Editado na Suhrkamp com um longo
posfácio de Volker Weiss, um historiador alemão que se tem dedicado à história
e à actualidade da extrema-direita, ao fim de menos de um ano esse opúsculo já
tinha vendido na Alemanha 70 mil exemplares, o que se explica pela pertinência
actual do tema, aspecto para o qual Volker Weiss chama a atenção.
Trata-se da
transcrição de uma conferência que Adorno fez em 1967, na Universidade de
Viena, a convite de uma associação de estudantes socialistas austríacos. O
contexto político na República Federal da Alemanha de 1967 explica o conteúdo
desta conferência: um partido neo-nazi, o NPD (Partido Nacional-Democrático),
formado em 1964, tinha obtido óptimos resultados em eleições regionais e esteve
quase a entrar no Bundestag, o parlamento da RFA.
Este texto de
Adorno, embora tenha como objecto imediato uma situação política particular da
RFA naquele momento histórico, inscreve-se nas suas investigações anteriores
sobre a “personalidade autoritária” e prossegue de algum modo o seu ensaio
sobre A Teoria Freudiana e a Estrutura da Propaganda Fascista. As críticas a
esta análise do fascismo, que também pode ser aplicada a esta conferência sobre
a extrema-direita na Alemanha dos anos 60, incidiram sobretudo na
psicologização que des-historiciza.
Na análise de
Adorno, o novo radicalismo de direita manifesta o “eterno retorno” de uma
mitologia reaccionária que se revela uma máquina de propaganda de implacável
eficiência. Dessa mitologia, faz parte o anti-semitismo (na versão actual, anti-migrantes,
xenofobia e racismo), o anti-intelectualismo, o medo da desclassificação e
perda do estatuto social, a caça a um bode expiatório. Muito inquietante, dizia
Adorno (e a nossa experiência actual dá-lhe toda a razão), é o facto de os
seguidores deste novo radicalismo de direita, que coincidem quase sempre com os
defensores do velho e do novo fascismo, estarem distribuídos de modo
transversal entre todas as camadas da população.
Mas o ponto
fundamental da conferência de Adorno é a explicação que ele dá para a ascensão
deste radicalismo de direita: as premissas sociais do fascismo têm a sua origem
nos falhanços da democracia, uma democracia que não está à altura do seu
conceito e em nenhum lado se concretizou de modo efectivo do ponto de vista
económico e social. O ressentimento, fomentando o sentimento anti-democrático e
anti-político, é um falhanço da democracia na realização das suas promessas.
Mas,
evidentemente, a análise de Adorno não é compreensível sem a referência à
sociedade de massa e aos mecanismos da propaganda que criam e fomentam a emoção
induzida, uma ostentação “pática” (patisch, isto é, cheia de pathos) sem
substância. A substância é substituída precisamente pela propaganda que se
torna “a coisa mesma”, a própria substância da política.
Livro de
recitações
“Tump
falsely claims Covid affects ‘virtually’ no young people”
In The Guardian,
22/09/2020
Como sabemos,
Trump fornece todos os dias matéria para uma análise do fenómeno actual a que
se deu o nome de pós-verdade. Parece muito fácil desmenti-lo, e espantamo-nos
como é possível o Presidente dos EUA mentir sistematicamente sem que se
interrompa esta torrente de falsidades, sem que o chamado fact checking, a que
o seu discurso é submetido diariamente no mundo inteiro, tenha qualquer efeito.
O que acontece no actual regime político-mediático é que as categorias de
verdade e mentira como critério de classificação das afirmações deixaram de ter
validade. As intervenções públicas de Trump podem estar recheadas de mentiras,
mas isso não afecta a sua eficiência, a sua “performatividade”, digamos assim.
Trump desafia constantemente a realidade? Pois desafia, mas o seu discurso está
para além da diferença entre realidade e ficção, não é proferido para
representar um estado de coisas, mas para praticar deliberadamente uma acção. É
a isto que se chama pós-verdade.
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