quinta-feira, 24 de setembro de 2020

As três chagas da democracia portuguesa

 


OPINIÃO

As três chagas da democracia portuguesa

 

Se a corrupção atinge em simultâneo a cúpula da política, da banca e da justiça é porque o sistema permite e incentiva a corrupção. Se não fossem estes, seriam outros. E, muito provavelmente, já estão a ser outros, neste preciso momento.

 

JOÃO MIGUEL TAVARES

24 de Setembro de 2020, 0:01

https://www.publico.pt/2020/09/24/opiniao/opiniao/tres-chagas-democracia-portuguesa-1932652

 

A acusação ao ex-primeiro-ministro José Sócrates, no âmbito da Operação Marquês, em Outubro de 2017; a acusação ao ex-banqueiro Ricardo Salgado, no âmbito do caso BES, em Julho de 2020; e a acusação ao ex-juiz Rui Rangel (e outros juízes do Tribunal da Relação de Lisboa), no âmbito da Operação Lex, em Setembro de 2020, compõem o triunvirato de acusações mais importantes da história da democracia portuguesa, e são, à sua maneira, o culminar da falência moral e política do regime.

 

Três acusações desta magnitude no intervalo de três anos significam que o problema da corrupção chegou ao topo das três pirâmides que sustentam qualquer Estado: o poder político, o poder económico e o poder judicial. Não fica nada de fora. Não é possível subir mais alto com práticas mais baixas. O cancro da corrupção não se limitou a metastizar-se – ele atingiu os órgãos vitais do sistema.

 

E se falo numa falência moral e política do regime, não o faço pelo gosto do tremendismo ou porque tenha uma especial paixão por hipérboles. Faço-o porque não vejo à minha volta qualquer reacção significativa a estes processos. Quer dizer: é evidente que as pessoas se indignam; que os colunistas chamam a atenção para o que se está a passar; que as televisões abrem telejornais com estas notícias. Mas da parte de quem detém o poder, e que é atingido por suspeitas nunca antes vistas, não se nota um estremecimento, um desejo de arrepiar caminho, uma vontade genuína de mudar leis e práticas para que tais factos não se voltem a repetir e para que os responsáveis sejam punidos em tempo útil.

 

A nova estratégia de combate à corrupção é uma aspirina na mão de um decepado. O mantra do “à justiça o que é da justiça, à política o que é da política” é apenas uma forma habilidosa de não assumir responsabilidades. As infinitas conversas sobre o “Estado de Direito” parecem preocupar-se com tudo, menos com o funcionamento eficaz da justiça. Damos como perdido aquilo que é essencial em qualquer país civilizado: que se acuse e se condene quem prevaricou com rapidez. Em dois anos, no máximo – não em dez anos, no mínimo.

 

Claro que nós adoramos fulanizar, e eu não escapo a essa tentação. Sócrates é isto, Salgado é aquilo, Rangel é aqueloutro. Mas se a corrupção atinge em simultâneo a cúpula da política, da banca e da justiça, não pode ser por causa de uma coincidência cósmica que colocou três alegados trafulhas em simultâneo nas pirâmides do poder em Portugal – é porque o sistema permite e incentiva a corrupção. Se não fossem estes, seriam outros. E, muito provavelmente, já estão a ser outros, neste preciso momento.

 

Esse sistema é composto por leis, práticas, escolhas, nomeações, que são políticas e que só podem ser mudadas por quem detém o poder. Ora, não vislumbro qualquer interesse em que isso aconteça. Dir-se-á: mas se há acusações é porque a justiça funciona. Lamento – não chega. Porque a própria velocidade a que a justiça é aplicada – Sócrates foi detido há quase seis anos e ainda não foi a julgamento; Salgado será nonagenário se algum dia entrar numa prisão; Rangel levará para a cova os segredos das centenas de acórdãos que pode ter manipulado – funciona como um sedativo (“já não há pachorra para o Sócrates!”) e um simulacro de Estado de Direito. E isto enquanto a corrupção continua protegida pela complexidade da prova e por leis amigas. Aquilo que conduz ao apodrecimento do regime não são as más práticas – é mesmo esta falta de vontade de se regenerar.

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