OPINIÃO
A vista não resolve a vida cinzenta do Bairro Amarelo
Por muito boa que a vista seja, os desafios dos
residentes destes bairros são tão colossais que, provavelmente, nem reparam
nela.
SUSANA PERALTA
25 de Setembro de
2020, 0:00
Inês de Medeiros,
presidente da Câmara Municipal de Almada, num momento irrefletido de que
certamente já se arrependeu, afirmou-se disposta a mudar para o Bairro Amarelo
“amanhã” por ser apreciadora da vista. Veio entretanto explicar que a sua
afirmação estava descontextualizada e que tem uma preocupação genuína pela
situação dos bairros degradados de Almada. Não duvido. Mas a frase desmerece
quem tem de (sobre)viver todos os dias em bairros como o Amarelo.
A vista é um
atributo, chamemos-lhe assim, burguês, na escolha de casas. Por muito boa que
seja, os desafios dos residentes destes bairros são tão colossais que,
provavelmente, nem reparam nela. Em primeiro lugar, têm de se preocupar com a
qualidade das casas. Uma busca rápida na Internet devolveu uma tese de
licenciatura em engenharia civil da vizinha Faculdade de Ciências e Tecnologia
da Universidade Nova dedicada à reabilitação do Bairro Amarelo. A autora, já
agora, é Margarida Cassiano. O Bairro Amarelo é, portanto, um caso de estudo de
casas degradadas.
No Portal da
Habitação do IHRU encontrei informação sobre o projeto de “Reabilitação do
Bairro Amarelo em Almada (1.ª fase – lotes 1 a 14)”, que consiste na
“reabilitação das partes comuns gerais do conjunto de 14 edifícios do Bairro
Amarelo, em Almada, com vista à correção das anomalias resultantes dos
problemas higrotérmicos e da falta de manutenção, bem como a adaptação de
acessibilidade e a melhoria da imagem arquitetónica.” E mais: “Pretende-se
reabilitar todo o Bairro de forma faseada, delimitando, nesta primeira fase, os
14 edifícios em pior estado de conservação.” A lista de melhorias é tal que não
deixa margem para dúvidas: reabilitação de coberturas, fachadas, reparar
fendas, degraus, corrimãos, substituir prumadas de esgoto e deixo-vos adivinhar
o resto.
A segunda
preocupação é que viver num bairro destes é um entrave a uma vida decente. O
trabalho escasseia, não só porque o transporte é um problema, como porque
potenciais empregadores olham de lado para moradas destas. As crianças e jovens
não têm acesso a escolas de qualidade. Ao Observador, os moradores do Bairro
Amarelo falam em “droga, lixo, tiros e corridas de motas”. Esta exposição à
pobreza e aos comportamentos de risco tem efeitos perniciosos no futuro dos
residentes mais jovens, também (mas não só) porque condiciona a forma como se
projetam no futuro.
Já se sabe que é
difícil ter informação para estas coisas ao nível do bairro em Portugal. Mas
encontrei um artigo publicado em 2005 na Revista da Faculdade de Ciências
Sociais e Humanas por uma antropóloga, Ana Sofia Costa. Reza assim sobre o
espaço público do bairro: “segundo o IGAPHE estão em funcionamento 68 unidades
comerciais; contudo, verificámos que a maior parte se encontra desocupada ou
com actividade irregular. (…) O espaço
de recreio e lazer consiste num campo de jogos (sem gestão) numa praceta
interior. Não existem espaços verdes de lazer e o único local com possibilidade
de apropriação festiva, um átrio pavimentado no fim da rua do Moinho,
encontra-se bastante degradado; os dois campos de jogos pavimentados (também
sem gestão) estão mais afastados do seu centro.” Quanto a empregos, do total de
cerca de 5000 residentes contabilizados pelas instituições de solidariedade
social do bairro, apenas cerca de 1400 trabalhavam, maioritariamente “trabalhos
semiespecializados, no caso dos homens (...) mecânica automóvel, carpintaria e
serralharia” e no das mulheres grande concentração na indústria têxtil. E mais:
“o bairro concentra o maior número de indivíduos sem exercerem qualquer atividade
económica, pensionistas e reformados, em relação aos valores concelhios
congéneres.”
Investigação
recente feita nos EUA pela equipa de Raj Chetty na Universidade de Harvard
documenta como a vida cinzenta dos bairros amarelos deste mundo influencia o futuro
de quem nele cresce. Este conhecimento tornou-se possível porque nos EUA se
pode cruzar a informação dos censos da população ao longo do tempo com as
declarações de rendimento para fins de IRS, assim ligando a vida adulta dos
indivíduos aos bairros onde cresceram e ao rendimento das famílias de origem.
Tudo, como é natural, devidamente anonimizado. Numa série de artigos recentes,
Chetty e os seus co-autores mostram que sair a tempo (mais precisamente, antes
dos 13 anos) de bairros pobres muda a vida das crianças e jovens. De que forma?
Aumenta a probabilidade de completarem o
ensino superior, diminui a probabilidade de gravidezes e maternidades
adolescentes, e aumenta o rendimento, chegada a idade adulta. A importância de
mudar cedo mostra que a exposição aos bairros pobres e degradados amputa os
sonhos deste jovens e quanto mais tempo durar, pior.
Inês de Medeiros
gosta de viver onde o preço por metro quadrado é mais elevado. Nada contra;
aliás, quem não prefere?. Primeiro, candidatou-se a deputada pelo círculo de
Lisboa, guardando a sua residência em Paris. Depois, foi eleita presidente da
câmara de Almada sendo residente de Lisboa. O Observador tinha na quarta feira
uma reportagem sobre Rafaela e João, casal acabado de chegar da Vidigueira.
Mudaram-se há quinze dias com os três filhos para o sexto andar do último
prédio da Rua do Miradouro de Alfazina, no Bairro Amarelo, para um T2 pelo qual
pagam uma renda mensal de 200 euros. Muito dinheiro para Rafaela e João, ambos
desempregados, mas uma quantia módica para o orçamento da presidente da câmara.
Por este preço, se Inês de Medeiros estivesse mesmo disposta a mudar amanhã, já
se podia ter mudado ontem.
Professora de
Economia na Nova SBE
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