quinta-feira, 24 de setembro de 2020

A vista não resolve a vida cinzenta do Bairro Amarelo

 


OPINIÃO

A vista não resolve a vida cinzenta do Bairro Amarelo

 

Por muito boa que a vista seja, os desafios dos residentes destes bairros são tão colossais que, provavelmente, nem reparam nela.

 

SUSANA PERALTA

25 de Setembro de 2020, 0:00

https://www.publico.pt/2020/09/25/opiniao/opiniao/vista-nao-resolve-vida-cinzenta-bairro-amarelo-1932743

 

Inês de Medeiros, presidente da Câmara Municipal de Almada, num momento irrefletido de que certamente já se arrependeu, afirmou-se disposta a mudar para o Bairro Amarelo “amanhã” por ser apreciadora da vista. Veio entretanto explicar que a sua afirmação estava descontextualizada e que tem uma preocupação genuína pela situação dos bairros degradados de Almada. Não duvido. Mas a frase desmerece quem tem de (sobre)viver todos os dias em bairros como o Amarelo.

 

A vista é um atributo, chamemos-lhe assim, burguês, na escolha de casas. Por muito boa que seja, os desafios dos residentes destes bairros são tão colossais que, provavelmente, nem reparam nela. Em primeiro lugar, têm de se preocupar com a qualidade das casas. Uma busca rápida na Internet devolveu uma tese de licenciatura em engenharia civil da vizinha Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova dedicada à reabilitação do Bairro Amarelo. A autora, já agora, é Margarida Cassiano. O Bairro Amarelo é, portanto, um caso de estudo de casas degradadas.

 

 

No Portal da Habitação do IHRU encontrei informação sobre o projeto de “Reabilitação do Bairro Amarelo em Almada (1.ª fase – lotes 1 a 14)”, que consiste na “reabilitação das partes comuns gerais do conjunto de 14 edifícios do Bairro Amarelo, em Almada, com vista à correção das anomalias resultantes dos problemas higrotérmicos e da falta de manutenção, bem como a adaptação de acessibilidade e a melhoria da imagem arquitetónica.” E mais: “Pretende-se reabilitar todo o Bairro de forma faseada, delimitando, nesta primeira fase, os 14 edifícios em pior estado de conservação.” A lista de melhorias é tal que não deixa margem para dúvidas: reabilitação de coberturas, fachadas, reparar fendas, degraus, corrimãos, substituir prumadas de esgoto e deixo-vos adivinhar o resto.

 

A segunda preocupação é que viver num bairro destes é um entrave a uma vida decente. O trabalho escasseia, não só porque o transporte é um problema, como porque potenciais empregadores olham de lado para moradas destas. As crianças e jovens não têm acesso a escolas de qualidade. Ao Observador, os moradores do Bairro Amarelo falam em “droga, lixo, tiros e corridas de motas”. Esta exposição à pobreza e aos comportamentos de risco tem efeitos perniciosos no futuro dos residentes mais jovens, também (mas não só) porque condiciona a forma como se projetam no futuro.

 

Já se sabe que é difícil ter informação para estas coisas ao nível do bairro em Portugal. Mas encontrei um artigo publicado em 2005 na Revista da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas por uma antropóloga, Ana Sofia Costa. Reza assim sobre o espaço público do bairro: “segundo o IGAPHE estão em funcionamento 68 unidades comerciais; contudo, verificámos que a maior parte se encontra desocupada ou com actividade irregular.  (…) O espaço de recreio e lazer consiste num campo de jogos (sem gestão) numa praceta interior. Não existem espaços verdes de lazer e o único local com possibilidade de apropriação festiva, um átrio pavimentado no fim da rua do Moinho, encontra-se bastante degradado; os dois campos de jogos pavimentados (também sem gestão) estão mais afastados do seu centro.” Quanto a empregos, do total de cerca de 5000 residentes contabilizados pelas instituições de solidariedade social do bairro, apenas cerca de 1400 trabalhavam, maioritariamente “trabalhos semiespecializados, no caso dos homens (...) mecânica automóvel, carpintaria e serralharia” e no das mulheres grande concentração na indústria têxtil. E mais: “o bairro concentra o maior número de indivíduos sem exercerem qualquer atividade económica, pensionistas e reformados, em relação aos valores concelhios congéneres.”

 

Investigação recente feita nos EUA pela equipa de Raj Chetty na Universidade de Harvard documenta como a vida cinzenta dos bairros amarelos deste mundo influencia o futuro de quem nele cresce. Este conhecimento tornou-se possível porque nos EUA se pode cruzar a informação dos censos da população ao longo do tempo com as declarações de rendimento para fins de IRS, assim ligando a vida adulta dos indivíduos aos bairros onde cresceram e ao rendimento das famílias de origem. Tudo, como é natural, devidamente anonimizado. Numa série de artigos recentes, Chetty e os seus co-autores mostram que sair a tempo (mais precisamente, antes dos 13 anos) de bairros pobres muda a vida das crianças e jovens. De que forma? Aumenta a probabilidade de completarem o  ensino superior, diminui a probabilidade de gravidezes e maternidades adolescentes, e aumenta o rendimento, chegada a idade adulta. A importância de mudar cedo mostra que a exposição aos bairros pobres e degradados amputa os sonhos deste jovens e quanto mais tempo durar, pior.

 

Inês de Medeiros gosta de viver onde o preço por metro quadrado é mais elevado. Nada contra; aliás, quem não prefere?. Primeiro, candidatou-se a deputada pelo círculo de Lisboa, guardando a sua residência em Paris. Depois, foi eleita presidente da câmara de Almada sendo residente de Lisboa. O Observador tinha na quarta feira uma reportagem sobre Rafaela e João, casal acabado de chegar da Vidigueira. Mudaram-se há quinze dias com os três filhos para o sexto andar do último prédio da Rua do Miradouro de Alfazina, no Bairro Amarelo, para um T2 pelo qual pagam uma renda mensal de 200 euros. Muito dinheiro para Rafaela e João, ambos desempregados, mas uma quantia módica para o orçamento da presidente da câmara. Por este preço, se Inês de Medeiros estivesse mesmo disposta a mudar amanhã, já se podia ter mudado ontem.

 

Professora de Economia na Nova SBE

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