quinta-feira, 13 de agosto de 2020

PJ investiga escalada de extrema-direita. Deputadas e activistas receberam ameaças para sair de Portugal

A fachada da sede do SOS Racismo foi vandalizada na noite de 17 para 18 de Julho


EXTREMA-DIREITA

PJ investiga escalada de extrema-direita. Deputadas e activistas receberam ameaças para sair de Portugal

 

Deputadas Beatriz Gomes Dias, Mariana Mortágua e Joacine Katar Moreira estavam entre as destinatárias da mensagem enviada por extrema-direita radical. Isto depois de “parada Ku Klux Klan” à porta do SOS Racismo. Polícia Judiciária e secretas já estão a investigar. PÚBLICO monitorizou mensagens racistas em rede fechada.

 

Joana Gorjão Henriques e Ricardo Cabral Fernandes 12 de Agosto de 2020, 19:40

https://www.publico.pt/2020/08/12/sociedade/noticia/pj-investiga-escalada-extremadireita-tres-deputadas-ameacadas-sair-portugal-1927902

 

Um grupo de dez pessoas recebeu uma ameaça por email a intimá-las a abandonar o “território nacional” em 48 horas e a rescindir “as suas funções políticas”. Entre elas estão as deputadas Beatriz Gomes Dias, Mariana Mortágua (do Bloco de Esquerda) e Joacine Katar Moreira (deputada não inscrita), Mamadou Ba, dirigente do SOS Racismo, Danilo Moreira, sindicalista, Jonathan Costa e Rita Osório, da frente unitária antifascista, Vasco Santos, do Movimento Alternativa Socialista, e Melissa Rodrigues, do Núcleo Anti-racista do Porto.

 

No email que foi enviado na noite desta terça-feira, os autores que se identificam como Nova Ordem de Avis-Resistência Nacional, ameaçam aqueles cidadãos dizendo que, se o prazo for “ultrapassado, medidas serão tomadas contra estes dirigentes e os seus familiares, de forma a garantir a segurança do povo português”: “O mês de Agosto será mês da luta contra os traidores da nação e seus apoiantes. O mês de Agosto será o mês do reerguer nacionalista.”

 

Autoridades como a Polícia Judiciária (PJ) e as secretas estão a investigar e atentas àquilo que, apurou o PÚBLICO, consideram ser “uma escalada” de grupos, discursos e narrativas para segmentar pessoas negras, ciganas e imigrantes e veicular “a supremacia branca”. Encaram as ameaças, bem como a “parada Ku Klux Klan” em frente à sede do SOS Racismo na noite de sábado, como um “salto de confrontação, incluindo a órgãos de soberania”, que “ainda não existia”. Apesar disso, sabe o PÚBLICO, não consideram a situação como “ameaça iminente”. As ameaças a dirigentes antifascistas e anti-racistas têm sido constantes nos últimos meses.

 

As duas deputadas do Bloco de Esquerda vão apresentar uma queixa-crime ao Ministério Público em nome individual. Ao PÚBLICO Beatriz Dias comentou: “Esta forma de intimidação é grave, é crime e tem de ser tratada como tal. Queremos que a investigação decorra o mais célere possível, que sejam identificados e responsabilizados os autores.” Já Joacine Katar Moreira estava a entrar para uma reunião e remeteu comentários para mais tarde.

 

“É um perigo para a própria democracia e pedimos ao Estado que comece a agir contra estes grupos que se começam a organizar e a ter uma projecção no espaço público que não é aceitável”, disse ao PÚBLICO Vasco Santos, um dos visados, em nome da Frente Unitária Antifascista. “Está mais do que na hora de o Governo português e deputados tomarem uma posição sobre o crescimento do ódio”, continuou o militante, salientando estarem a ser “atacados por estes grupos por defenderem a democracia”.

 

Mamadou Ba foi prestar declarações à Polícia Judiciária esta quarta-feira. A PJ foi à sede do SOS Racismo para fazer perícias técnicas. O SOS Racismo está também a preparar uma queixa ao MP. “Esta última ameaça é a prova de que é preciso levar muito a sério o nível de escalada a que estamos a assistir. Significa que não são apenas ameaças de redes sociais e que tenham que ver com disputa política mas com terrorismo e ameaças directa de morte”, comenta.

 

 

Grupo declara ódios

No início de Agosto, o SOS Racismo e a Frente Unitária Antifascista receberam um primeiro email com a ameaça de uma recém-formada milícia chamada Nova Ordem de Avis dedicada a combater os refugiados, estrangeiros que dirijam “o nosso país” e “negros a mandarem em nós”.

 

O seu ódio não se fica por aqui: “Não iremos mais aceitar a degeneração dos homossexuais e transexuais na nossa sociedade. Não iremos mais tolerar a presença dos terroristas antifas nas nossas ruas e o perigo que representam para cada pessoa de bem deste país.” E terminam dizendo: “A partir de hoje o medo irá mudar de lado. Para cada nacionalista preso, um antifa será enterrado. Para cada cidadão morto, dez estrangeiros serão eliminados.”

 

Dias depois, a nova organização Resistência Nacional realizou uma parada, com tochas e máscaras brancas, em frente à sede do SOS Racismo, como o PÚBLICO noticiou na segunda-feira. No mesmo dia defenderam que fizeram uma “vigília em honra a forças de segurança mortas por ‘jovens'” — as aspas na palavra jovens são dos autores — e disseram que condenavam “quaisquer actos de violência ou desordem pública”.

 

O segundo email é subscrito pela Nova Ordem de Avis e Resistência Nacional. Porém, a Resistência Nacional nega ter enviado essa mensagem, segundo disse uma fonte ao PÚBLICO. Os dois emails foram enviados por meio de um serviço de correio electrónico que não deixa registo e cujo email tem a duração de 60 minutos, dificultando o seu rastreamento.

 

O SOS Racismo irá fazer queixa ao Ministério Público por ameaças à integridade física, ofensas morais e danos patrimoniais e incitamento ao ódio e violência, nomeadamente com a “parada Ku Klux Klan”, como Mamadou Ba a caracterizou.

 

Isto aconteceu depois de, em Junho, vários locais na Área Metropolitana de Lisboa terem sido alvo de ataques com mensagens racistas e xenófobas e ameaças — locais como o Conselho Português para os Refugiados (“A Europa aos europeus” e “morte aos refugiados”) ou o mural de homenagem ao antifascista José Carvalho, assassinado por skinheads (com “guerra aos inimigos da minha pátria”).

 

“Esta sequência dá-nos a ver que não se trata de brincadeiras de lobos solitários da extrema-direita, mas que pretende ter carácter organizado com consequências trágicas”, afirmou Mamadou Ba. “Quando um grupo faz um ultimato para abandonar o território, incluindo deputados, estamos a ultrapassar os limites que passam de violência verbal — não se limitam a dizer que as ameaças se dirigem a nós,  mas também a membros das nossas famílias.”

 

Flash mobs neonazis

A extrema-direita mais agressiva continua dividida em vários grupos, mas a tendência para a unidade começa a ser notada. Houve dois encontros em Julho com o objectivo explícito de se ultrapassarem as divergências, uma vez que a entrada do Chega na Assembleia da República lhes apresentou um novo caminho.

 

A Resistência Nacional diz ter como objectivo organizar “protestos silenciosos” em frente a instituições que consideram antipatriotas, explicou uma fonte ao PÚBLICO. É composta por antigos elementos da Nova Ordem Social, entretanto suspensa por Mário Machado, do Partido Nacional Renovador e membros dos Portugal Hammer Skins. Também tem apoiantes do Chega, de André Ventura, e elementos ligados ao grupo de futebol 1143, apoiante do Sporting.

 

Um dos principais elementos da organização chegou a representar a Nova Ordem Social numa manifestação com mais de dois mil nacionais-socialistas em Sófia, Bulgária, em Fevereiro de 2019, em homenagem ao general pró-nazi búlgaro Hristo Lukok, assassinado por dois militantes antifascistas em 1943. 

 

Os seus membros afirmam não ser racistas e acusam o SOS Racismo de promover o ódio racial no país e de ser “antinacional”. Porém, as mensagens trocadas na rede social de mensagens encriptadas Telegram, que o PÚBLICO monitorizou no início desta semana, mostram o contrário.

 

“O islâmico é perigoso, causa terrorismo, mata. O africano causa miscigenação, trás [sic] sida, aumenta a criminalidade, mata”, escreveu um membro do grupo. “Perigoso mesmo e é só a lei deles que conta, nada mais”, disse outro. As mensagens do género sucedem-se e os restantes elementos concordam com as ideias racistas, relacionando afrodescendentes com a criminalidade, uma derivante do racismo biológico.

 

O grupo de chat é público e lá são trocadas notícias que confirmem as suas crenças ideológicas, dicas de livros sobre a II Guerra Mundial, que mostrem o “outro lado da História”, e os avisos acontecem de tempos a tempos para se ter cuidado com o que se diz – pode haver jornalistas a ler as mensagens, foi dito. Este é o grupo secundário da organização. Há um outro na mesma rede social, muito mais restrito, e cujos membros devem passar por um processo de interrogatório para entrar, em que se discute estratégia e futuras acções. É apenas para “militantes” cuja identidade e nacionalismo tenham sido confirmados por outros membros.

 

No grupo público, entretanto eliminado, chegaram, no entanto, a discutir fazer acções à porta de dirigentes do movimento negro, até os mais “graduados” do grupo afastarem de imediato a ideia por ser uma grande escalada. Os seus membros também recusaram ser responsáveis pelos episódios de vandalização da sede da organização anti-racista em Junho e Julho, dizendo mesmo desconhecer quem o terá feito.

 

A próxima acção do grupo já começou a ser abordada e deverá ser no Porto, sem se saber onde e quando – apenas quem participa nela sabe a data, hora e local, por motivos de sigilo. Os preparativos já estão a ser feitos e contactos já estarão a ser estabelecidos para alargar a organização ao plano nacional, junto de outras organizações de extrema-direita como é o caso do Escudo Identitário, uma organização neofascista inspirada no italiano Casa Pound Italy. No entanto, por agora, não passam de umas poucas dezenas – limitaram-se a comprar 30 máscaras para a acção na sede do SOS Racismo.

 

O modus operandi deste grupo é uma réplica adaptada ao contexto português, por terem poucos membros, da actuação de um grupo alemão neonazi chamado Imortais (Die Unsterblichen, em alemão). Este grupo organizou na Alemanha uma série de flash mobs com centenas de neonazis (de cem a 300), empunhando tochas e máscaras brancas, em marchas semelhantes às dos nacionais-socialistas de Adolf Hitler na década de 1930. O objectivo de ambas as marchas era disputar o espaço público e intimidar a oposição política e social. Sabe-se que as ligações entre a extrema-direita portuguesa e alemã são constantes.

 

Os Imortais usavam redes sociais encriptadas para organizarem as suas acções e o YouTube para difundirem vídeos (entretanto apagados) dos seus feitos – as mesmas aplicações a que a Resistência Nacional dá primazia – e conquistarem apoiantes entre as camadas mais jovens da sociedade. Os participantes apareciam em grupo, faziam o flash mob, gritavam slogans de extrema-direita e desapareciam tão depressa como apareciam, dificultando a reacção das autoridades. O movimento antifascista também tinha dificuldade em travá-los.

 

O primeiro grupo a usar esta tipologia de protesto na Alemanha, inspirando a extrema-direita internacional, como aconteceu com o partido neonazi grego Aurora Dourada, foi o Movimento de Resistência do Sul de Brandeburgo, em 2009, e dando origem à rede Spreelichter, até ser banido pelas autoridades em Junho de 2012.

 

Esta nova tipologia de protesto, até agora ausente em Portugal, é uma estratégia da organização para “ganhar espaço entre as diferentes organizações de extrema-direita radical”, apurou o PÚBLICO junto das autoridades, cujo universo continua bastante fragmentado, apesar das mais recentes tentativas em prol da convergência.

 

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