BANCA
O canal secreto que Salgado montou no BES para comunicar
com a Suíça
Núcleo restrito do BES trocava mensagens com funcionários
da sociedade Eurofin através de plataforma clandestina. Quando o sistema
falhava, falavam por chat ou através de “consolas telefónicas”. Objectivo: dar
instruções e consultar registos das offshores.
Pedro Crisóstomo
6 de Agosto de 2020, 12:49
O antigo
banqueiro Ricardo Salgado montou um sistema de comunicação paralelo no Banco
Espírito Santo (BES) para que um núcleo restrito de responsáveis do
departamento financeiro do banco comunicasse secretamente para a Suíça com os
funcionários da Eurofin, uma empresa-órbita do Grupo Espírito Santo que servia
para fazer circular dinheiro entre o banco e o GES através de um esquema
fraudulento com recurso a sociedades offshore.
A plataforma era
“clandestina”, pois funcionava à margem dos sistemas normais de comunicação do
BES, descreve o Ministério Público no despacho final do inquérito principal ao
universo Espírito Santo.
O sistema foi
instalado no final de 2006 por ordem de Salgado e do administrador financeiro,
Amílcar Morais Pires, e esteve a funcionar desde pelo menos 2008 até à saída de
Ricardo Salgado, em Julho de 2014. Serviu para o Departamento Financeiro de
Mercados e Estudos (DFME) dar instruções escritas para a Eurofin, para ordenar
operações, celebrar contratos, agendar encontros e passar informação sensível
de Lausana para Lisboa sobre a situação financeira das sociedades que foram
absorvendo os negócios ruinosos do grupo.
A Eurofin fora
criada no início do milénio por Ricardo Salgado “como centro de acompanhamento”
de entidades offshore e fundos de investimento que prestavam serviços ao GES
através da compra e recompra de títulos de dívida de holdings do grupo,
operando de forma alegadamente fraudulenta com o dinheiro conseguido junto dos
clientes do banco português.
O GES chegou a
ter uma participação nesta empresa, mas a partir de 2009/2010, quando a empresa
suíça já acumulava milhões em prejuízos, Salgado arranjou uma forma de camuflar
essa ligação, tornando accionistas os homens da sua confiança em Lausana.
Além de as
sociedades veículos terem tido perdas com a crise financeira internacional e
absorvido activos tóxicos que Salgado queria afastar do BES (pois iam
acumulando falhas com as operações dos clientes do BES), as empresas parqueadas
na Eurofin serviram como “centrais de liquidez” para concretizar os pagamentos
de dinheiro através dos sacos azuis do GES.
Para ocultar essa
actividade, era preciso garantir que a comunicação fluía em circuito fechado
entre Lisboa e Lausana. E fluiu. A “plataforma CPS de transmissão escrita de
mensagens” que ligava a sede do BES à Eurofin foi usada diariamente “para
executar comportamentos criminosos”, contornando a “obrigatoriedade de
gravação, e salvaguarda, dos sistemas de comunicação corrente do BES, imposta
pelo Código de Valores Mobiliários e pelos regulamentos internos do banco”,
escrevem os procuradores do Departamento Central de Investigação e Acção Penal
(DCIAP) no despacho de acusação.
O sistema secreto
funcionava através de uma rede VPN (virtual private network). É muito comum as
empresas usarem uma VPN para garantir a segurança da informação e a
privacidade, pois esse é um canal mais seguro para a troca de informação entre
vários dispositivos. O que já não é comum — “nada normal”, como comenta ao
PÚBLICO um engenheiro informático na área da cibersegurança — é um banco montar
um sistema à margem, não documentado, nem autorizado, pois estes sistemas de
comunicação devem existir em mapas de redes para se verificar se estão bem
configurados e a trabalhar correctamente.
No BES, só um
pequeno núcleo de funcionários do departamento financeiro conheceria este
mecanismo. Quando a CPS não funcionava ou quando era preciso tratar rapidamente
de algum pormenor, os elementos do departamento financeiro e da Eurofin usavam
o chat da Bloomberg (terminal de informação e gestão financeira instalado nas
salas de mercados dos bancos) ou decidiam falar através de “consolas
telefónicas” (uma alternativa que a acusação não explicita se se travava de
consolas como as que os grupos terroristas usam para comunicar em alternativa a
aplicações que em teoria são encriptadas, como o Whatsapp). Algumas vezes, a
plataforma de conversação instantânea da Bloomberg também era usada
simplesmente para os funcionários anunciarem que tinham enviado mensagens pelo
CPS.
Era através da
plataforma clandestina que os funcionários da Eurofin tratavam “de toda a
informação patrimonial das sociedades” ali parqueadas, o que permitia a “alguns
elementos” do departamento do BES consultar directamente esses registos e ficar
a par dos activos, do passivo, das perdas, dos ganhos e das responsabilidades
das sociedades offshore que, segundo o Ministério Público, serviam os
“interesses” de Ricardo Salgado — como alegadamente aconteceu com as empresas
de fachada Zyrcan, Jarvis ou Martz Brenan (todas constituídas nas ilhas Virgens
Britânicas, tinham como beneficiários elementos da família Espírito Santo ou os
interesse do GES e serviram para vender obrigações próprias, acções preferenciais
ou emitir obrigações colocadas em clientes do BES).
Primeiro, por email
Até finais de
2006, os quadros do departamento financeiro do BES “envolvidos nos actos
criminosos” davam as instruções escritas aos colegas da Eurofin por email. Mas,
a determinado momento, Salgado e Morais Pires decidiram que era melhor criar
este sistema paralelo e informal, que não foi sequer aprovado pela comissão
executiva do BES, nem teve direito a parecer da área de compliance, em que
deveriam ser monitorizados os mecanismos de controlo de risco interno.
Segundo o
Ministério Público, a directora coordenadora do DFME, Isabel Almeida, e o
director que lhe reportava, António Soares, estavam a par do esquema e foram
eles que “escolheram individualmente” os funcionários do departamento que
usavam a plataforma. Deram autorização de acesso a nove funcionários (três
deles arguidos no processo), mas seis desconheciam os “reais propósitos”
prosseguidos pelos outros.
Em Lausana, eram
vários os interlocutores. A empresa era dirigida por dois gestores que o
Ministério Público alega serem testas-de-ferro de Salgado, Alexandre Cadosch e
Michel Creton. E era sob os alegados “comandos criminosos” dos dois que os
funcionários da Eurofin recebiam as instruções de Lisboa sobre o que fazer com
os veículos offshore.
Cadosch, Creton e
um terceiro gestor suíço, Nicoló di San Germano, tornaram-se accionistas da
Eurofin em 2010, porque foi a forma que Salgado encontrou para camuflar a
ligação do GES. Os três foram financiados indirectamente pela Espírito Santo
Resources (ESR), sediada nas Baamas, através de contratos que, na verdade,
pretendiam “dissimular a ligação directa entre a origem do dinheiro, a ESR, e
os seus destinatários, os accionistas/administradores nominativamente
escolhidos” por Salgado.
Essas alterações
deram-se quando o sistema de comunicação não oficial já funcionava. Ao longo
dos anos, os quadros do BES em Lisboa — Amílcar Morais Pires, Isabel Almeida e
António Soares, todos eles arguidos no processo — “conceberam três perfis” que
eram usados diariamente. Um primeiro teve três nomes: “consult”, “lisco” e
“nuno”; um segundo chamava-se “lismes” ou “discover”; e um terceiro actuava com
o nome “lisad”.
À procura dos registos
O Ministério
Público não tem dúvidas de que os utilizadores do CPS “tinham perfeita noção do
seu carácter reservado”. No BES, três funcionárias do departamento financeiro
“tinham o controlo do registo e reconciliação de operações sobre títulos
realizadas pelas sociedades de investimento Eurofin” para verificarem a
situação patrimonial desses veículos.
O perfil
“lismes”/“discover”, por exemplo, servia para a “troca de ficheiros organizados
relativos a operações, informação sobre liquidez disponível, transmissão de
consolidação de posições patrimoniais das várias sociedades de investimento,
reconciliação de títulos transaccionados, indicação das posições em carteira
por sociedade, indicação de saldos de contas bancárias, remessa de ficheiros
recapitulativos das operações com a ESR [Espírito Santo Resources] e indicação
das necessidades de liquidez de outros negócios de Ricardo Salgado noutros
veículos Eurofin.”
A partir de Julho
de 2014, mês em que Salgado deixa a presidência do BES, o acesso à plataforma
secreta foi “desconectado”, sem que a equipa de investigação do DCIAP tenha
conseguido saber quem desligara o sistema.
Quando em
Novembro seguinte o Ministério Público descobriu o canal no BES/Novo Banco,
verificou que “o registo histórico dos dados” da actividade desenvolvida desde
2006 “não existia” nos sistemas informáticos operativos da instituição de
crédito. No entanto, foi descobri-lo mais tarde em Lausana, pois Alexandre
Cadosch e Michel Creton ainda tinham esse conteúdo guardado “em Agosto de 2015”
na sede da Eurofin.
Salgado, Morais
Pires, Almeida, Soares, Cadosch e Creton são seis das 18 pessoas a quem o
Ministério Público imputou crimes.
Sem comentários:
Enviar um comentário