quinta-feira, 6 de agosto de 2020

O canal secreto que Salgado montou no BES para comunicar com a Suíça


BANCA

O canal secreto que Salgado montou no BES para comunicar com a Suíça

 

Núcleo restrito do BES trocava mensagens com funcionários da sociedade Eurofin através de plataforma clandestina. Quando o sistema falhava, falavam por chat ou através de “consolas telefónicas”. Objectivo: dar instruções e consultar registos das offshores.

 

Pedro Crisóstomo 6 de Agosto de 2020, 12:49

https://www.publico.pt/2020/08/06/economia/noticia/canal-secreto-salgado-montou-bes-comunicar-suica-1927268

 

O antigo banqueiro Ricardo Salgado montou um sistema de comunicação paralelo no Banco Espírito Santo (BES) para que um núcleo restrito de responsáveis do departamento financeiro do banco comunicasse secretamente para a Suíça com os funcionários da Eurofin, uma empresa-órbita do Grupo Espírito Santo que servia para fazer circular dinheiro entre o banco e o GES através de um esquema fraudulento com recurso a sociedades offshore.

 

A plataforma era “clandestina”, pois funcionava à margem dos sistemas normais de comunicação do BES, descreve o Ministério Público no despacho final do inquérito principal ao universo Espírito Santo.

 

O sistema foi instalado no final de 2006 por ordem de Salgado e do administrador financeiro, Amílcar Morais Pires, e esteve a funcionar desde pelo menos 2008 até à saída de Ricardo Salgado, em Julho de 2014. Serviu para o Departamento Financeiro de Mercados e Estudos (DFME) dar instruções escritas para a Eurofin, para ordenar operações, celebrar contratos, agendar encontros e passar informação sensível de Lausana para Lisboa sobre a situação financeira das sociedades que foram absorvendo os negócios ruinosos do grupo.

 

A Eurofin fora criada no início do milénio por Ricardo Salgado “como centro de acompanhamento” de entidades offshore e fundos de investimento que prestavam serviços ao GES através da compra e recompra de títulos de dívida de holdings do grupo, operando de forma alegadamente fraudulenta com o dinheiro conseguido junto dos clientes do banco português.

 

O GES chegou a ter uma participação nesta empresa, mas a partir de 2009/2010, quando a empresa suíça já acumulava milhões em prejuízos, Salgado arranjou uma forma de camuflar essa ligação, tornando accionistas os homens da sua confiança em Lausana.

 

Além de as sociedades veículos terem tido perdas com a crise financeira internacional e absorvido activos tóxicos que Salgado queria afastar do BES (pois iam acumulando falhas com as operações dos clientes do BES), as empresas parqueadas na Eurofin serviram como “centrais de liquidez” para concretizar os pagamentos de dinheiro através dos sacos azuis do GES.

 

Para ocultar essa actividade, era preciso garantir que a comunicação fluía em circuito fechado entre Lisboa e Lausana. E fluiu. A “plataforma CPS de transmissão escrita de mensagens” que ligava a sede do BES à Eurofin foi usada diariamente “para executar comportamentos criminosos”, contornando a “obrigatoriedade de gravação, e salvaguarda, dos sistemas de comunicação corrente do BES, imposta pelo Código de Valores Mobiliários e pelos regulamentos internos do banco”, escrevem os procuradores do Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP) no despacho de acusação.

 

O sistema secreto funcionava através de uma rede VPN (virtual private network). É muito comum as empresas usarem uma VPN para garantir a segurança da informação e a privacidade, pois esse é um canal mais seguro para a troca de informação entre vários dispositivos. O que já não é comum — “nada normal”, como comenta ao PÚBLICO um engenheiro informático na área da cibersegurança — é um banco montar um sistema à margem, não documentado, nem autorizado, pois estes sistemas de comunicação devem existir em mapas de redes para se verificar se estão bem configurados e a trabalhar correctamente.

 

No BES, só um pequeno núcleo de funcionários do departamento financeiro conheceria este mecanismo. Quando a CPS não funcionava ou quando era preciso tratar rapidamente de algum pormenor, os elementos do departamento financeiro e da Eurofin usavam o chat da Bloomberg (terminal de informação e gestão financeira instalado nas salas de mercados dos bancos) ou decidiam falar através de “consolas telefónicas” (uma alternativa que a acusação não explicita se se travava de consolas como as que os grupos terroristas usam para comunicar em alternativa a aplicações que em teoria são encriptadas, como o Whatsapp). Algumas vezes, a plataforma de conversação instantânea da Bloomberg também era usada simplesmente para os funcionários anunciarem que tinham enviado mensagens pelo CPS.

 

Era através da plataforma clandestina que os funcionários da Eurofin tratavam “de toda a informação patrimonial das sociedades” ali parqueadas, o que permitia a “alguns elementos” do departamento do BES consultar directamente esses registos e ficar a par dos activos, do passivo, das perdas, dos ganhos e das responsabilidades das sociedades offshore que, segundo o Ministério Público, serviam os “interesses” de Ricardo Salgado — como alegadamente aconteceu com as empresas de fachada Zyrcan, Jarvis ou Martz Brenan (todas constituídas nas ilhas Virgens Britânicas, tinham como beneficiários elementos da família Espírito Santo ou os interesse do GES e serviram para vender obrigações próprias, acções preferenciais ou emitir obrigações colocadas em clientes do BES).

 

Primeiro, por email

Até finais de 2006, os quadros do departamento financeiro do BES “envolvidos nos actos criminosos” davam as instruções escritas aos colegas da Eurofin por email. Mas, a determinado momento, Salgado e Morais Pires decidiram que era melhor criar este sistema paralelo e informal, que não foi sequer aprovado pela comissão executiva do BES, nem teve direito a parecer da área de compliance, em que deveriam ser monitorizados os mecanismos de controlo de risco interno.

 

Segundo o Ministério Público, a directora coordenadora do DFME, Isabel Almeida, e o director que lhe reportava, António Soares, estavam a par do esquema e foram eles que “escolheram individualmente” os funcionários do departamento que usavam a plataforma. Deram autorização de acesso a nove funcionários (três deles arguidos no processo), mas seis desconheciam os “reais propósitos” prosseguidos pelos outros.

 

Em Lausana, eram vários os interlocutores. A empresa era dirigida por dois gestores que o Ministério Público alega serem testas-de-ferro de Salgado, Alexandre Cadosch e Michel Creton. E era sob os alegados “comandos criminosos” dos dois que os funcionários da Eurofin recebiam as instruções de Lisboa sobre o que fazer com os veículos offshore.

 

Cadosch, Creton e um terceiro gestor suíço, Nicoló di San Germano, tornaram-se accionistas da Eurofin em 2010, porque foi a forma que Salgado encontrou para camuflar a ligação do GES. Os três foram financiados indirectamente pela Espírito Santo Resources (ESR), sediada nas Baamas, através de contratos que, na verdade, pretendiam “dissimular a ligação directa entre a origem do dinheiro, a ESR, e os seus destinatários, os accionistas/administradores nominativamente escolhidos” por Salgado.

 

Essas alterações deram-se quando o sistema de comunicação não oficial já funcionava. Ao longo dos anos, os quadros do BES em Lisboa — Amílcar Morais Pires, Isabel Almeida e António Soares, todos eles arguidos no processo — “conceberam três perfis” que eram usados diariamente. Um primeiro teve três nomes: “consult”, “lisco” e “nuno”; um segundo chamava-se “lismes” ou “discover”; e um terceiro actuava com o nome “lisad”.

 

À procura dos registos

O Ministério Público não tem dúvidas de que os utilizadores do CPS “tinham perfeita noção do seu carácter reservado”. No BES, três funcionárias do departamento financeiro “tinham o controlo do registo e reconciliação de operações sobre títulos realizadas pelas sociedades de investimento Eurofin” para verificarem a situação patrimonial desses veículos.

 

O perfil “lismes”/“discover”, por exemplo, servia para a “troca de ficheiros organizados relativos a operações, informação sobre liquidez disponível, transmissão de consolidação de posições patrimoniais das várias sociedades de investimento, reconciliação de títulos transaccionados, indicação das posições em carteira por sociedade, indicação de saldos de contas bancárias, remessa de ficheiros recapitulativos das operações com a ESR [Espírito Santo Resources] e indicação das necessidades de liquidez de outros negócios de Ricardo Salgado noutros veículos Eurofin.”

 

A partir de Julho de 2014, mês em que Salgado deixa a presidência do BES, o acesso à plataforma secreta foi “desconectado”, sem que a equipa de investigação do DCIAP tenha conseguido saber quem desligara o sistema.

 

Quando em Novembro seguinte o Ministério Público descobriu o canal no BES/Novo Banco, verificou que “o registo histórico dos dados” da actividade desenvolvida desde 2006 “não existia” nos sistemas informáticos operativos da instituição de crédito. No entanto, foi descobri-lo mais tarde em Lausana, pois Alexandre Cadosch e Michel Creton ainda tinham esse conteúdo guardado “em Agosto de 2015” na sede da Eurofin.

 

Salgado, Morais Pires, Almeida, Soares, Cadosch e Creton são seis das 18 pessoas a quem o Ministério Público imputou crimes.


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