EXTREMA-DIREITA
Governo propôs protecção policial a deputadas ameaçadas
O secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, Duarte
Cordeiro, foi “intermediário” no contacto com as deputadas. Alexandre
Guerreiro, analista de segurança e ex-membro das secretas, disse ao PÚBLICO que
a “situação é muito grave” e “nunca pode ser tratada como histeria”.
Ricardo Cabral
Fernandes 14 de Agosto de 2020, 6:56
O Governo
contactou as deputadas Joacine Katar Moreira (não inscrita), Mariana Mortágua e
Beatriz Gomes Dias (do BE) e propôs-lhes protecção policial especial na
sequência das ameaças de que foram alvo. O secretário de Estado dos Assuntos
Parlamentares, Duarte Cordeiro, foi “intermediário” na oferta, confirmou o
mesmo ao PÚBLICO, remetendo todos os esclarecimentos para o Ministério da Administração
Interna (MAI). O BE não confirmou. Katar Moreira não reagiu às tentativas de
contacto do PÚBLICO.
A Polícia
Judiciária está a investigar o envio de um email, assinado pela Nova Ordem de
Avis e pela Resistência Nacional, ao SOS Racismo e à Frente Unitária
Antifascista com os nomes de dez pessoas, o das três deputadas e de outros sete
activistas antifascistas e anti-racistas, dando-lhes um prazo de 48 horas para
abandonarem o “território nacional”. Caso contrário, “medidas serão tomadas
contra estes dirigentes e os seus familiares, de forma a garantir a segurança
do povo português”. O Ministério Público confirmou esta quinta-feira que
instaurou um inquérito-crime.
É o mais recente
sinal de uma escalada da extrema-direita vista no país nas últimas semanas,
depois da parada com tochas e máscaras, na noite de sábado, em frente à sede do
SOS Racismo, em Lisboa, e de dois episódios de vandalização da sua fachada e de
um primeiro email em que a Nova Ordem de Avis se apresenta e garante que o
“medo irá mudar de lado”. As ameaças a activistas antifascistas e antiracistas
têm sido uma constante nos últimos meses, mas não há memória de actuações
destas nos últimos anos.
Mamadou Ba,
dirigente do SOS Racismo e um dos visados, pediu nesta quarta-feira protecção
policial quando foi prestar declarações à sede nacional da Polícia Judiciária,
sem que tenha recebido resposta até ao momento, disse o próprio ao PÚBLICO. Há
um ano, depois de também ter recebido ameaças e sido “vítima de duas
emboscadas”, fez pedido semelhante, tendo-lhe sido recusado, contou. O
dirigente é há anos um dos principais alvos de ameaças e discurso de ódio da
extrema-direita portuguesa.
Questionado pelo
PÚBLICO sobre se ofereceu protecção policial às deputadas, o secretário de
Estado dos Assuntos Parlamentares recusou comentar, admitindo no entanto ter
procedido como “intermediário” no contacto com as mesmas. E remeteu mais
esclarecimentos para o MAI, que não respondeu ao pedido de comentário do
PÚBLICO. A deputada Joacine Katar Moreira esteve incontactável ao longo desta
quinta-feira, apesar das tentativas do PÚBLICO, e o Bloco de Esquerda não
confirmou nem desmentiu que as suas deputadas tenham recebido oferta de
protecção policial.
Ameaças são
graves
Um outro sinal da
escalada da extrema-direita ficou espelhado no início de Julho, quando
militantes anónimos criaram uma página de Facebook denominada Piratas do
Regime. O seu objectivo era denunciar o “marxismo cultural” na sociedade
portuguesa. Fotografias com rostos de académicos, jornalistas (incluindo do
PÚBLICO) e dirigentes de organizações de apoio a refugiados eram acompanhadas
por pequenos textos em que se explica as razões de serem inimigos da pátria e
ideólogos do anti-racismo na sociedade, principalmente no meio académico. Os
alvos foram sobretudo académicos da Universidade de Coimbra, mas também houve
do ISCTE-IUL, do Politécnico de Setúbal e da Universidade Nova de Lisboa.
As suas
publicações, muitas das vezes com dezenas de partilhas, circularam em grupos da
extrema-direita portuguesa e algumas tiveram centenas de “gostos”. A página
anunciou, no final de Julho, a intenção de ficar, “por agora”, adormecida, sem
dar mais explicações. Mas continua até hoje acessível na rede social, apesar
das denúncias feitas ao Facebook.
A análise da
ameaça do email (agente, motivação, capacidade e oportunidade) é realizada pelo
Serviço de Informações e de Segurança (SIS) e, conforme as conclusões, as
autoridades podem sugerir ou não protecção policial especial. Há várias
estratégias ao seu dispor, de um simples aumento presencial no bairro de
residência a protecção individual, cuja responsabilidade caberia ao Corpo de
Segurança Pessoal da PSP, ou até mesmo uma vigilância mais atenta aos
principais suspeitos das ameaças. Contactada sobre a oferta de protecção
policial, fonte oficial da PSP limitou-se a dizer que a instituição “mantinha
reserva” sobre o assunto.
“É uma situação
muito grave que tem de merecer da parte das autoridades uma resposta adequada e
nunca pode ser tratada como histeria”, disse ao PÚBLICO Alexandre Guerreiro,
analista de justiça e segurança e ex-elemento da secreta portuguesa Serviço de
Informações Estratégicas de Defesa (SIED). “O grave no meio de tudo isto é a
imprevisibilidade com que os visados se vão debater no dia-a-dia, porque não
sabem se vão ser atacados hoje ou daqui a um mês, circunstância que lhes tira o
sossego e limita a actividade política.”
O especialista em
segurança delineou três hipóteses sobre quem pode estar por detrás do email com
a ameaça, sublinhando a prioridade de se apurar a responsabilidade: um grupo
que está a ser sinalizado pela comunicação social ou alguém desse grupo que
possa estar a agir em nome da causa, para “marcar pontos internamente”. Ou, num
cenário “bem menos provável”, alguém “desligado da causa nacionalista que possa
estar a lançar esta campanha para lançar suspeitas sobre esta organização”.
O PÚBLICO teve
acesso, por WhatsApp, a uma gravação da Resistência Nacional, criada no início
de Julho, em que esta nega ser a autora do email com as ameaças. “Não somos a
Nova Ordem de Avis nem temos qualquer associação com a mesma”, ouve-se. “Todas
as nossas acções são pacíficas e apartidárias, por isso usamos máscara e não
temos qualquer identificação. Não temos que nos esconder, não destruímos
património com pinturas nem usamos qualquer forma de violência.” A pessoa do
grupo usou uma aplicação text to speech (onde se escreve e a aplicação lê) para
criar a gravação, escondendo assim a voz.
A extrema-direita
europeia violenta é caracterizada por ameaçar os seus adversários políticos e,
não poucas vezes, de levar a cabo as ameaças que faz. Aconteceu, por exemplo,
em 2016 no Reino Unido. A deputada trabalhista Helen Joanne Cox foi assassinada
por um homem bem integrado no circuito da extrema-direita, ao ponto de ter
feito num comício a segurança pessoal de uma das figuras mais conhecidas desse
quadrante político no país, Tommy Robinson, cujo nome verdadeiro é Stephen
Christopher Yaxley-Lennon. O homem foi condenado a prisão perpétua.
Passados dois
meses do assassínio, 25 deputados britânicos receberam ameaças de morte,
principalmente contra deputadas. E, em 2019, a Hope Not Hate, organização que
monitoriza a extrema-direita britânica e europeia, foi bem-sucedida em impedir
um assassínio de outra deputada, também trabalhista, e de uma responsável das
forças de segurança. A organização tinha um infiltrado no circuito de
extrema-direita que passou a informação a tempo, com a Hope Not Hate a
contactar as autoridades. Ambos os casos tiveram comportamentos de lobo
solitário, mas os indivíduos estavam bem integrados na extrema-direita.
tp.ocilbup@sednanref.odracir

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