sexta-feira, 14 de agosto de 2020

Governo propôs protecção policial a deputadas ameaçadas

 

EXTREMA-DIREITA

Governo propôs protecção policial a deputadas ameaçadas

 

O secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, Duarte Cordeiro, foi “intermediário” no contacto com as deputadas. Alexandre Guerreiro, analista de segurança e ex-membro das secretas, disse ao PÚBLICO que a “situação é muito grave” e “nunca pode ser tratada como histeria”.

 

Ricardo Cabral Fernandes 14 de Agosto de 2020, 6:56

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O Governo contactou as deputadas Joacine Katar Moreira (não inscrita), Mariana Mortágua e Beatriz Gomes Dias (do BE) e propôs-lhes protecção policial especial na sequência das ameaças de que foram alvo. O secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, Duarte Cordeiro, foi “intermediário” na oferta, confirmou o mesmo ao PÚBLICO, remetendo todos os esclarecimentos para o Ministério da Administração Interna (MAI). O BE não confirmou. Katar Moreira não reagiu às tentativas de contacto do PÚBLICO.

 

A Polícia Judiciária está a investigar o envio de um email, assinado pela Nova Ordem de Avis e pela Resistência Nacional, ao SOS Racismo e à Frente Unitária Antifascista com os nomes de dez pessoas, o das três deputadas e de outros sete activistas antifascistas e anti-racistas, dando-lhes um prazo de 48 horas para abandonarem o “território nacional”. Caso contrário, “medidas serão tomadas contra estes dirigentes e os seus familiares, de forma a garantir a segurança do povo português”. O Ministério Público confirmou esta quinta-feira que instaurou um inquérito-crime.

 

 

É o mais recente sinal de uma escalada da extrema-direita vista no país nas últimas semanas, depois da parada com tochas e máscaras, na noite de sábado, em frente à sede do SOS Racismo, em Lisboa, e de dois episódios de vandalização da sua fachada e de um primeiro email em que a Nova Ordem de Avis se apresenta e garante que o “medo irá mudar de lado”. As ameaças a activistas antifascistas e antiracistas têm sido uma constante nos últimos meses, mas não há memória de actuações destas nos últimos anos.

 

Mamadou Ba, dirigente do SOS Racismo e um dos visados, pediu nesta quarta-feira protecção policial quando foi prestar declarações à sede nacional da Polícia Judiciária, sem que tenha recebido resposta até ao momento, disse o próprio ao PÚBLICO. Há um ano, depois de também ter recebido ameaças e sido “vítima de duas emboscadas”, fez pedido semelhante, tendo-lhe sido recusado, contou. O dirigente é há anos um dos principais alvos de ameaças e discurso de ódio da extrema-direita portuguesa.

 

Questionado pelo PÚBLICO sobre se ofereceu protecção policial às deputadas, o secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares recusou comentar, admitindo no entanto ter procedido como “intermediário” no contacto com as mesmas. E remeteu mais esclarecimentos para o MAI, que não respondeu ao pedido de comentário do PÚBLICO. A deputada Joacine Katar Moreira esteve incontactável ao longo desta quinta-feira, apesar das tentativas do PÚBLICO, e o Bloco de Esquerda não confirmou nem desmentiu que as suas deputadas tenham recebido oferta de protecção policial.

 

Ameaças são graves

 

Um outro sinal da escalada da extrema-direita ficou espelhado no início de Julho, quando militantes anónimos criaram uma página de Facebook denominada Piratas do Regime. O seu objectivo era denunciar o “marxismo cultural” na sociedade portuguesa. Fotografias com rostos de académicos, jornalistas (incluindo do PÚBLICO) e dirigentes de organizações de apoio a refugiados eram acompanhadas por pequenos textos em que se explica as razões de serem inimigos da pátria e ideólogos do anti-racismo na sociedade, principalmente no meio académico. Os alvos foram sobretudo académicos da Universidade de Coimbra, mas também houve do ISCTE-IUL, do Politécnico de Setúbal e da Universidade Nova de Lisboa.

 

As suas publicações, muitas das vezes com dezenas de partilhas, circularam em grupos da extrema-direita portuguesa e algumas tiveram centenas de “gostos”. A página anunciou, no final de Julho, a intenção de ficar, “por agora”, adormecida, sem dar mais explicações. Mas continua até hoje acessível na rede social, apesar das denúncias feitas ao Facebook.

 

A análise da ameaça do email (agente, motivação, capacidade e oportunidade) é realizada pelo Serviço de Informações e de Segurança (SIS) e, conforme as conclusões, as autoridades podem sugerir ou não protecção policial especial. Há várias estratégias ao seu dispor, de um simples aumento presencial no bairro de residência a protecção individual, cuja responsabilidade caberia ao Corpo de Segurança Pessoal da PSP, ou até mesmo uma vigilância mais atenta aos principais suspeitos das ameaças. Contactada sobre a oferta de protecção policial, fonte oficial da PSP limitou-se a dizer que a instituição “mantinha reserva” sobre o assunto.

 

“É uma situação muito grave que tem de merecer da parte das autoridades uma resposta adequada e nunca pode ser tratada como histeria”, disse ao PÚBLICO Alexandre Guerreiro, analista de justiça e segurança e ex-elemento da secreta portuguesa Serviço de Informações Estratégicas de Defesa (SIED). “O grave no meio de tudo isto é a imprevisibilidade com que os visados se vão debater no dia-a-dia, porque não sabem se vão ser atacados hoje ou daqui a um mês, circunstância que lhes tira o sossego e limita a actividade política.”

 

O especialista em segurança delineou três hipóteses sobre quem pode estar por detrás do email com a ameaça, sublinhando a prioridade de se apurar a responsabilidade: um grupo que está a ser sinalizado pela comunicação social ou alguém desse grupo que possa estar a agir em nome da causa, para “marcar pontos internamente”. Ou, num cenário “bem menos provável”, alguém “desligado da causa nacionalista que possa estar a lançar esta campanha para lançar suspeitas sobre esta organização”.

 

O PÚBLICO teve acesso, por WhatsApp, a uma gravação da Resistência Nacional, criada no início de Julho, em que esta nega ser a autora do email com as ameaças. “Não somos a Nova Ordem de Avis nem temos qualquer associação com a mesma”, ouve-se. “Todas as nossas acções são pacíficas e apartidárias, por isso usamos máscara e não temos qualquer identificação. Não temos que nos esconder, não destruímos património com pinturas nem usamos qualquer forma de violência.” A pessoa do grupo usou uma aplicação text to speech (onde se escreve e a aplicação lê) para criar a gravação, escondendo assim a voz.

 

A extrema-direita europeia violenta é caracterizada por ameaçar os seus adversários políticos e, não poucas vezes, de levar a cabo as ameaças que faz. Aconteceu, por exemplo, em 2016 no Reino Unido. A deputada trabalhista Helen Joanne Cox foi assassinada por um homem bem integrado no circuito da extrema-direita, ao ponto de ter feito num comício a segurança pessoal de uma das figuras mais conhecidas desse quadrante político no país, Tommy Robinson, cujo nome verdadeiro é Stephen Christopher Yaxley-Lennon. O homem foi condenado a prisão perpétua.

 

Passados dois meses do assassínio, 25 deputados britânicos receberam ameaças de morte, principalmente contra deputadas. E, em 2019, a Hope Not Hate, organização que monitoriza a extrema-direita britânica e europeia, foi bem-sucedida em impedir um assassínio de outra deputada, também trabalhista, e de uma responsável das forças de segurança. A organização tinha um infiltrado no circuito de extrema-direita que passou a informação a tempo, com a Hope Not Hate a contactar as autoridades. Ambos os casos tiveram comportamentos de lobo solitário, mas os indivíduos estavam bem integrados na extrema-direita.

 

tp.ocilbup@sednanref.odracir

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