quinta-feira, 6 de agosto de 2020

Evitar a ressaca da orgia financeira

 

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OPINIÃO

Evitar a ressaca da orgia financeira

 

Será que Portugal vai estar à altura do desafio? Não vou esconder que estou pessimista. E se daqui a dez anos acordarmos da orgia com uma grande ressaca, teremos perdido a oportunidade não de uma, mas de várias gerações.

 

SUSANA PERALTA

7 de Agosto de 2020, 0:00

https://www.publico.pt/2020/08/07/opiniao/opiniao/evitar-ressaca-orgia-financeira-1927348

 

Na entrevista desta semana ao Observador, Durão Barroso qualificou o Fundo de Recuperação da União Europeia de “orgia financeira” e deixou um aviso: ter dinheiro não é tudo, é preciso usá-lo bem. Para promover a transparência na utilização dos fundos, Durão Barroso aconselha a criação de uma comissão junto da Assembleia da República.

 

Como este é um tema que me é caro, vou aproveitar a boleia de Barroso para me repetir. No início de junho, quando havia menos certezas relativamente ao pacote de recuperação da UE, escrevi aqui sobre a importância da transparência, que é mais do que uma condição para os fundos serem bem utilizados. É um imperativo de democracia. Sem transparência, não sabemos como se gasta o dinheiro e não podemos, nas eleições, usar o voto para punir ou premiar os representantes políticos que gastam o dinheiro em nosso nome.

 

O Índice de Transparência Orçamental, calculado pela International Budget Partnership desde 2006 para uma série de países, e para Portugal desde 2010, compila a transparência num valor numérico, partindo da análise dos vários documentos de suporte ao Orçamento do Estado, da possibilidade de os cidadãos participarem no processo orçamental e do papel de órgãos de fiscalização como o Parlamento ou o Tribunal de Contas. Em Portugal, este trabalho é feito pelo think tank Institute of Public Policy. Em 2019, Portugal era o 23.º país mais transparente, um pouco abaixo da média da OCDE, mas longe dos campeões da transparência: Suécia, Noruega, Estados Unidos e França. Com base no Open Budget Index ou em formas semelhantes de quantificar a transparência orçamental, a investigação tem mostrado que ela está associada a sistemas políticos mais abertos, ou seja, com maior número de partidos que partilham o poder entre si, a eleições mais livres e justas, a maior participação dos cidadãos nas decisões políticas, e até a melhor rating da dívida pública.

 

A crise atual suscita cuidados especiais na utilização do dinheiro público, tanto no momento mais imediato de combate à crise, que começou em fevereiro e março na maior parte dos países, como no que aí vem, quando os países se prepararem para recuperar as suas economias com enormes esforços de despesa. Muito dinheiro para ser gasto depressa é uma receita perfeita para o desastre. É por isso que a International Budget Partnership, o Banco Mundial ou, em Portugal, a Transparência e Integridade, têm sublinhado a importância do reforço dos mecanismos de transparência e responsabilização política neste momento.

 

Será que Portugal vai estar à altura do desafio? Não vou esconder que estou pessimista. Fiz parte do Grupo de Trabalho para a Reavaliação da Lei de Enquadramento Orçamental, carinhosamente designada entre as pessoas que se preocupam com estas coisas por LEO, sob a coordenação de Fernando Rocha Andrade. O relatório com as reflexões e recomendações do grupo está disponível no site do Parlamento. Para não correr o risco de escrever aqui algo em que os restantes membros do grupo de trabalho não se revejam, vou copiar diretamente um parágrafo da página 13 do relatório. “O Grupo de Trabalho foi sistematicamente confrontado com as dificuldades de cumprimento das regras contidas na nova LEO, especialmente no que toca à adoção de uma orçamentação por programas e do novo regime contabilístico. Na verdade, a LEO repousa num conjunto de exigências de reporte de informação e gestão de programas que exige competências avançadas da parte dos funcionários públicos que lidam com aspetos orçamentais, tanto no Ministério das Finanças como nos restantes ministérios e diferentes entidades públicas. Para conseguir fazer a aplicação cabal de todas as vertentes da LEO, é fundamental capacitar as pessoas que estarão envolvidas no processo orçamental em todas as suas fases.”

 

 Para ir direta ao assunto, o sector público tem dificuldade em produzir informação útil de apoio à decisão, apesar do esforço despendido por muitas pessoas motivadas. Só que sem os ovos do investimento em capacitação técnica e de recursos humanos, não conseguem fazer omeletes. Esta é a mesma informação que é necessária para comunicar com transparência os recursos utilizados e os resultados obtidos em cada uma das esferas da atuação pública. A tal comissão proposta por Barroso, mesmo dependendo do Parlamento, só poderá funcionar se alimentada com informação útil pelos ministérios e organismos públicos.

 

Se a urgência de gastar bem os milhões da orgia financeira não for estímulo suficiente para levar a sério este desafio, serei obrigada a concluir que a microgestão controladora de João Leão não resulta de uma necessidade, mas de uma escolha

 

As más notícias são que a OCDE tinha já apontado em 2008 a necessidade de melhorar o “processo de medição de atividades e a qualidade da informação de desempenho no processo de decisão orçamental”. E o relatório de acompanhamento da implementação da LEO tinha dito o mesmo em 2014. É trágico que, chegados a 2020, continuemos a patinar. Mais trágico ainda é que, quando a revisão da LEO foi apresentada pelo Governo em junho, não tenha sido discutida a única questão que verdadeiramente importa, que é esta: o que está o Governo a fazer para capacitar a administração pública para evitar novos adiamentos e permitir que Portugal tenha um processo orçamental do século XXI? Se a urgência de gastar bem os milhões da orgia financeira não for estímulo suficiente para levar a sério este desafio, serei obrigada a concluir que a microgestão controladora de João Leão não resulta de uma necessidade, mas de uma escolha.

 

O Next Generation EU tem os seus calcanhares de Aquiles. A verdadeira mutualização da dívida e a distribuição equitativa da carga fiscal exige impostos europeus como o das plataformas digitais ou das multinacionais que estão, por enquanto, adiados. Houve cortes em partes fundamentais do orçamento, como a saúde ou a ciência, que limitam a capacidade da UE para fazer face, de forma coordenada, aos desafios deste século. A possibilidade de usar o Next Generation para promover o respeito pelo Estado de direito foi enterrada. E há essa pedra na engrenagem cujos contornos só nos próximos meses compreenderemos cabalmente – o super travão de emergência, que permitirá a qualquer país suspender a aplicação dos programas, quando tiver dúvidas relativamente à forma como os fundos estão a ser usados por outro Estado.

 

Tudo isto depende de negociações difíceis entre países, em que a regra da unanimidade complica avançar em certas frentes. Mas usar o dinheiro bem e de forma transparente só depende de Portugal. Aí, não temos desculpa. Se daqui a dez anos acordarmos da orgia com uma grande ressaca, teremos perdido a oportunidade não de uma, mas de várias gerações.

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