IMAGENS DE OVOODOCORVO
OPINIÃO
Evitar a ressaca da orgia financeira
Será que Portugal vai estar à altura do desafio? Não vou
esconder que estou pessimista. E se daqui a dez anos acordarmos da orgia com
uma grande ressaca, teremos perdido a oportunidade não de uma, mas de várias
gerações.
SUSANA PERALTA
7 de Agosto de
2020, 0:00
https://www.publico.pt/2020/08/07/opiniao/opiniao/evitar-ressaca-orgia-financeira-1927348
Na entrevista
desta semana ao Observador, Durão Barroso qualificou o Fundo de Recuperação da
União Europeia de “orgia financeira” e deixou um aviso: ter dinheiro não é
tudo, é preciso usá-lo bem. Para promover a transparência na utilização dos
fundos, Durão Barroso aconselha a criação de uma comissão junto da Assembleia
da República.
Como este é um
tema que me é caro, vou aproveitar a boleia de Barroso para me repetir. No
início de junho, quando havia menos certezas relativamente ao pacote de
recuperação da UE, escrevi aqui sobre a importância da transparência, que é
mais do que uma condição para os fundos serem bem utilizados. É um imperativo
de democracia. Sem transparência, não sabemos como se gasta o dinheiro e não
podemos, nas eleições, usar o voto para punir ou premiar os representantes
políticos que gastam o dinheiro em nosso nome.
O Índice de
Transparência Orçamental, calculado pela International Budget Partnership desde
2006 para uma série de países, e para Portugal desde 2010, compila a
transparência num valor numérico, partindo da análise dos vários documentos de
suporte ao Orçamento do Estado, da possibilidade de os cidadãos participarem no
processo orçamental e do papel de órgãos de fiscalização como o Parlamento ou o
Tribunal de Contas. Em Portugal, este trabalho é feito pelo think tank
Institute of Public Policy. Em 2019, Portugal era o 23.º país mais
transparente, um pouco abaixo da média da OCDE, mas longe dos campeões da
transparência: Suécia, Noruega, Estados Unidos e França. Com base no Open
Budget Index ou em formas semelhantes de quantificar a transparência
orçamental, a investigação tem mostrado que ela está associada a sistemas
políticos mais abertos, ou seja, com maior número de partidos que partilham o
poder entre si, a eleições mais livres e justas, a maior participação dos
cidadãos nas decisões políticas, e até a melhor rating da dívida pública.
A crise atual
suscita cuidados especiais na utilização do dinheiro público, tanto no momento
mais imediato de combate à crise, que começou em fevereiro e março na maior
parte dos países, como no que aí vem, quando os países se prepararem para
recuperar as suas economias com enormes esforços de despesa. Muito dinheiro
para ser gasto depressa é uma receita perfeita para o desastre. É por isso que
a International Budget Partnership, o Banco Mundial ou, em Portugal, a
Transparência e Integridade, têm sublinhado a importância do reforço dos
mecanismos de transparência e responsabilização política neste momento.
Será que Portugal
vai estar à altura do desafio? Não vou esconder que estou pessimista. Fiz parte
do Grupo de Trabalho para a Reavaliação da Lei de Enquadramento Orçamental,
carinhosamente designada entre as pessoas que se preocupam com estas coisas por
LEO, sob a coordenação de Fernando Rocha Andrade. O relatório com as reflexões
e recomendações do grupo está disponível no site do Parlamento. Para não correr
o risco de escrever aqui algo em que os restantes membros do grupo de trabalho
não se revejam, vou copiar diretamente um parágrafo da página 13 do relatório.
“O Grupo de Trabalho foi sistematicamente confrontado com as dificuldades de
cumprimento das regras contidas na nova LEO, especialmente no que toca à adoção
de uma orçamentação por programas e do novo regime contabilístico. Na verdade,
a LEO repousa num conjunto de exigências de reporte de informação e gestão de
programas que exige competências avançadas da parte dos funcionários públicos
que lidam com aspetos orçamentais, tanto no Ministério das Finanças como nos
restantes ministérios e diferentes entidades públicas. Para conseguir fazer a
aplicação cabal de todas as vertentes da LEO, é fundamental capacitar as
pessoas que estarão envolvidas no processo orçamental em todas as suas fases.”
Se a urgência de
gastar bem os milhões da orgia financeira não for estímulo suficiente para
levar a sério este desafio, serei obrigada a concluir que a microgestão
controladora de João Leão não resulta de uma necessidade, mas de uma escolha
As más notícias
são que a OCDE tinha já apontado em 2008 a necessidade de melhorar o “processo
de medição de atividades e a qualidade da informação de desempenho no processo
de decisão orçamental”. E o relatório de acompanhamento da implementação da LEO
tinha dito o mesmo em 2014. É trágico que, chegados a 2020, continuemos a patinar.
Mais trágico ainda é que, quando a revisão da LEO foi apresentada pelo Governo
em junho, não tenha sido discutida a única questão que verdadeiramente importa,
que é esta: o que está o Governo a fazer para capacitar a administração pública
para evitar novos adiamentos e permitir que Portugal tenha um processo
orçamental do século XXI? Se a urgência de gastar bem os milhões da orgia
financeira não for estímulo suficiente para levar a sério este desafio, serei
obrigada a concluir que a microgestão controladora de João Leão não resulta de
uma necessidade, mas de uma escolha.
O Next Generation
EU tem os seus calcanhares de Aquiles. A verdadeira mutualização da dívida e a
distribuição equitativa da carga fiscal exige impostos europeus como o das
plataformas digitais ou das multinacionais que estão, por enquanto, adiados.
Houve cortes em partes fundamentais do orçamento, como a saúde ou a ciência,
que limitam a capacidade da UE para fazer face, de forma coordenada, aos
desafios deste século. A possibilidade de usar o Next Generation para promover
o respeito pelo Estado de direito foi enterrada. E há essa pedra na engrenagem
cujos contornos só nos próximos meses compreenderemos cabalmente – o super
travão de emergência, que permitirá a qualquer país suspender a aplicação dos
programas, quando tiver dúvidas relativamente à forma como os fundos estão a
ser usados por outro Estado.
Tudo isto depende
de negociações difíceis entre países, em que a regra da unanimidade complica
avançar em certas frentes. Mas usar o dinheiro bem e de forma transparente só
depende de Portugal. Aí, não temos desculpa. Se daqui a dez anos acordarmos da
orgia com uma grande ressaca, teremos perdido a oportunidade não de uma, mas de
várias gerações.
Sem comentários:
Enviar um comentário