terça-feira, 4 de agosto de 2020

Espanha entre o virar de página e o fim de uma era / Afastar, ignorar ou proteger Juan Carlos? Felipe VI vai ter de decidir


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EDITORIAL

Espanha entre o virar de página e o fim de uma era

 

O melhor mesmo é virar a página com o exílio de Juan Carlos, esperar que seja escrutinado pela Justiça e acreditar que Felipe VI é o chefe de Estado de que a Espanha precisa para navegar nestas águas turbulentas.

 

MANUEL CARVALHO

4 de Agosto de 2020, 22:07

https://www.publico.pt/2020/08/04/mundo/editorial/espanha-virar-pagina-fim-1927041

 

Os derradeiros gestos, as últimas decisões, as atitudes recentes são quase sempre as histórias que determinam as biografias e Juan Carlos I dificilmente escapará a esse destino.

 

No futuro, será certamente lembrado como o rei insensível que gastava centenas de milhares de euros em caçadas, quando o seu povo sofria as agruras da austeridade, o monarca que aceitou donativos multimilionários de soberanos estrangeiros, quando a Espanha precisava de uma coroa imune aos desvarios éticos para conservar o seu papel de cola contra os nacionalismos e os extremismos, o chefe de Estado a viver uma vida paralela que negava as exigências que se requerem a um monarca constitucional.

 

Mas se esse destino é tão justo como incontornável, não faz sentido resumir o papel histórico de Juan Carlos a esses comportamentos vis. Há um outro desempenho que não pode nem deve ser esquecido: o que alavancou a transição pacífica de uma ditadura violenta e anacrónica para uma democracia que deu origem a um país vibrante, próspero e europeu.

 

Se a Espanha é hoje o que é, com a sua influência cultural, o seu nervo económico, a sua impressionante infra-estrutura ou o seu dinamismo social, deve-o muito ao papel que Juan Carlos teve nos anos críticos da transição. E se a Espanha quer continuar a ser o que é, com a sua abertura europeia, o seu cosmopolitismo e o seu estatuto de Estado que acolhe a diversidade, tem de saber valorizar o papel que o rei emérito desempenhou e o papel que a monarquia continua a ter como cimento da sua diversidade.

 

O rei que faltou aos seus deveres, que abdicou e agora se exila aumenta as dificuldades de afirmação do herdeiro do trono e torna ainda mais complexos os terríveis desafios que a Espanha enfrenta – seja o do nacionalismo catalão, o do extremismo político ou o dos danos da pandemia. Mas acreditar que o exemplo sórdido de um rei exige que o modelo constitucional se reinvente num quadro tão exigente e incerto como o de hoje é uma aposta de risco com sérias probabilidades de correr mal.

 

É por isso que o melhor mesmo é virar a página com o exílio de Juan Carlos, esperar que seja escrutinado pela Justiça e acreditar que Felipe VI é o chefe de Estado de que a Espanha precisa para navegar nestas águas turbulentas. Por deplorável que seja, o triste fim de Juan Carlos não basta para se questionar os fundamentos de um regime que construiu a Espanha moderna e democrática que gostamos de ter como vizinha.

 

tp.ocilbup@ohlavrac.leunam

 

JUAN CARLOS

Afastar, ignorar ou proteger Juan Carlos? Felipe VI vai ter de decidir

 

O rei emérito de Espanha recebeu 100 milhões do antigo monarca saudita e criou uma fundação para os esconder. Quatro anos depois, transferiu o dinheiro para Corinna Larsen, sua ex-amante e apontada como testa-de-ferro para esconder as suas propriedades.

 

Ricardo Cabral Fernandes 12 de Julho de 2020, 20:47

https://www.publico.pt/2020/07/12/mundo/noticia/afastar-ignorar-proteger-juan-carlos-felipe-vi-vai-decidir-1923927

 

Recebeu 100 milhões de dólares de um antigo monarca saudita e escondeu-os na conta bancária de uma fundação que criou num banco suíço. Doou depois o dinheiro à sua ex-amante e excluiu esse valor de qualquer herança, para não deixar rasto, e está a ser investigado pelas autoridades suíças e pelo Supremo Tribunal espanhol.

 

O rei emérito espanhol Juan Carlos I vê-se mais uma vez no centro de uma polémica que está a abalar a política espanhola e que fez regressar o eterno debate entre monarquia e república. Mas, sobretudo, a questão: o que fazer com o monarca para salvaguardar a família real? Afastá-lo, ignorar o caso ou protegê-lo?

 

Desde o fim do franquismo e da transição democrática pactuada, em 1975, que a sociedade espanhola está dividida entre a defesa da monarquia e o desejo de uma república. E a verdade é que os escândalos dos últimos anos, a maioria envolvendo Juan Carlos, têm fragilizado a família real, alargando o fosso com os espanhóis – em Janeiro de 2019, uma sondagem do El Español dizia que 43% apoiam a monarquia, enquanto 42% querem uma república, e as preferências da segunda terão aumentado.

 

O rei Felipe VI, em modo gestão de crise, parece mais focado em dedicar-se à gestão diária da sua agenda, optando por não comentar o caso, mas, ao mesmo tempo, dá sinais de crescente distanciamento do pai. Reduziu as relações ao mínimo necessário e, em Março, anunciou ter recusado receber qualquer futura herança.

 

Mas a decisão final sobre o que fazer com o patriarca vai ser tomada por Felipe VI, deixou claro o Governo espanhol. E em cima da mesa está a hipótese de Juan Carlos sair do Palácio de Zarzuela, residência da família real, o que seria uma espécie de “excomunhão”.

 

O executivo, liderado pelo socialista Pedro Sánchez, está a tentar salvaguardar a monarquia separando o trono das actividades do rei emérito, garantindo que a “responsabilidade é individual”, ainda que esteja preocupado com futuros escândalos. Sánchez tirou na quinta-feira da gaveta uma proposta, inicialmente apresentada em Dezembro de 2018, para reformar a Constituição eliminando a imunidade do chefe de Estado, ou, pelo menos, limitar as suas actividades oficiais.

 

Divisão no Governo

“Como Governo estamos constantemente a trabalhar para garantir que as instituições continuam a trabalhar e que a monarquia constitucional, na figura do rei Felipe VI, está a cumprir o seu trabalho constitucional de uma forma absolutamente correcta”, disse a vice-presidente Carmen Calvo.

 

Mas o Podemos, parceiro de coligação do PSOE no executivo, quer uma resposta mais pesada, ao dizer que o problema é a própria monarquia, e não as actividades ilícitas de um dos seus membros. “É difícil ignorar que a monarquia é uma instituição hereditária na qual a legitimidade depende precisamente da filiação”, disse Pablo Iglesias, vice-presidente do Governo espanhol e líder do Podemos.

 

E, pouco antes, a representante do partido na Mesa do Congresso, Gloria Elizo, exigiu a abdicação de Felipe VI e um referendo sobre a continuação da instituição monárquica, uma velha exigência de uma parte da esquerda espanhola. O Podemos já tinha pedido uma comissão de inquérito às transferências bancárias, embatendo na imunidade do antigo chefe de Estado. Ambas as exigências foram feitas sabendo-se que a fragmentação no órgão legislativo impede qualquer grande acção contra a monarquia, por exigir uma aliança entre o PSOE, Podemos e pequenos partidos nacionalistas com o PP.

 

Dinheiro saudita

Os últimos meses não têm sido fáceis para a família real. Soube-se que a lua-de-mel de Felipe VI e de Letizia Ortiz, em 2004, custou mais de 400 mil euros e que foi paga por Juan Carlos e um seu amigo de infância e considerado sua sombra, o empresário catalão Josep Cusí. O empresário era próximo do ditador Francisco Franco, tal como o foi o monarca emérito, e essa ligação sempre assombrou a família real. Todavia, o pior estava para chegar, mesmo depois de se saber que o rei emérito estava a ser investigado pela Justiça suíça.

 

No início deste mês, o jornal El Español publicou documentos confidenciais que mostram como Juan Carlos, hoje com 82 anos e que abdicou do trono em 2014, criou a Fundação Locuum para esconder do fisco espanhol 100 milhões de dólares (64 milhões de euros, de acordo com o câmbio de 2008) numa conta do banco Mirabaud, sediado em Genebra, na Suíça, e que depois os transferiu para a sua ex-amante, Corinna Larsen. A fundação foi depois “liquidada total e completamente”, sob ordens expressas do monarca.

 

“Conheci Juan Carlos I em Madrid com Arturo Fasana no Palácio de Zarzuela. Ele explicou que o seu amigo, o antigo rei da Arábia Saudita [Abdullah bin Abdulaziz Al Saud] queria fazer uma grande doação”, admitiu o advogado Dante Canónica em declarações às autoridades suíças, citado pelo El Espanhol. “Ele perguntou se havia a possibilidade de se criar uma estrutura para receber esta doação. Respondi que era importante sabermos qual a quantia e que também era importante criar uma estrutura totalmente transparente, ou seja, que Juan Carlos aparecesse como destinatário efectivo.”

 

O encontro aconteceu no final de 2007 e início de 2008, quando a crise económico-financeira tinha acabado de eclodir nos Estados Unidos, e foi intermediado pelo gestor de fortunas Arturo Fasana. O objectivo? Criar-se uma “estrutura” para receber a doação do rei saudita, falecido em 2015, por intermédio do embaixador saudita nos Estados Unidos.

 

As autoridades suíças suspeitam que a doação foi o retorno do papel de Juan Carlos I como intermediário num negócio entre um consórcio ferroviário espanhol e a Arábia Saudita para a construção de um troço de alta velocidade entre Meca e Medina. O monarca terá conseguido, à última hora, um desconto de 30% no preço final do projecto de construção – o negócio custou mais de 6700 milhões de euros.

 

O dinheiro saudita entrou na conta bancária da fundação a 8 de Agosto de 2008 e Canónica e Fasana foram constituídos presidente e secretário da instituição, respectivamente, e o nome de Juan Carlos I aparece num único formulário do banco. Se a doação tivesse sido pública, o monarca teria de pagar 52 milhões de euros de impostos ao Tesouro da comunidade de Madrid, disse ao El Espanhol o Sindicato de Técnicos de Contas do Ministério das Finanças.

 

Não demorou muito até centenas de milhares de euros começaram a sair da conta, primeiro para pagar honorários aos dois gestores e depois para suster as “despesas pessoais” do monarca, que tirou várias vezes da conta mais de 200 mil euros, noticiou o El Confidencial. Só em 2010, Juan Carlos I usufruiu de 1,5 milhões de euros provenientes da conta.

 

Mas também houve depósitos, mais uma vez sem qualquer conhecimento do fisco espanhol. Juan Carlos I viajou até ao Bahrein e lá encontrou-se com o rei Hamad bin Isa al Khalifa, que lhe deu 1,9 milhões de dólares, sem se saber o motivo. O rei transportou pessoalmente o dinheiro numa mala de viagem e entregou-o a Fasana, de acordo com o depoimento deste último às autoridades suíças.

 

“Gratidão e amor”

Apesar dos constantes levantamentos, a conta bancária continua a ter milhões de euros e, em Junho de 2012, o monarca transferiu o dinheiro para a sua ex-amante, Corinna Larsen, como se se estivesse a “livrar” do dinheiro – em 2015, foi gravada a admitir que o rei a usava como testa-de-ferro para esconder propriedades. Conhecida a transferência, Corinna justificou-a dizendo ter sido um “sinal de gratidão e amor”, para que pudesse assegurar o seu futuro e dos filhos. “Ele ainda tinha esperança de me conseguir recuperar”, disse.

 

Para que a transferência fosse feita, o rei teve de admitir pela primeira vez ser o principal beneficiário de uma conta à qual se desconhecia o proprietário. O contrato de transferência foi assinado por Juan Carlos I e Corinna Larsen, identificada com o título de princesa, por ter sido casada com o príncipe austríaco Casimir zu Sayn-Wittegenstein, e nele admitia-se que o principal beneficiário “queria fazer uma doação irrevogável destes activos para a beneficiária, que os aceitou”.

 

O contrato isentou os filhos de Corinna, caso esta morresse antes de Juan Carlos, de devolverem o dinheiro e excluiu as verbas da futura herança do monarca, à qual Felipe VI e as suas duas irmãs, as infantas Cristina Federica e Elena, teriam direito. E, por temer que os herdeiros do rei o pudessem um dia interpelar sobre a operação bancária, o advogado Dante Canónica fez com que o monarca pudesse ele próprio ordenar a transferência.

 

Foi o que aconteceu e o banco Mirabaud, que tem operações em Espanha, percebeu os contornos sensíveis da doação e, receando os riscos de exposição pública, convidou Corinna a depositar o dinheiro numa outra instituição bancária, de acordo com o depoimento de Dante Canónica às autoridades suíças. E, por isso, Corinna abriu uma conta bancária, com o apoio do advogado, numa filial do banco Gonet nas Bahamas, sem o comunicar às autoridades fiscais espanholas.

 

“O objectivo [de Corinna e Dante] era abrir uma conta para a empresa Solare, cuja beneficiária era Corinna, enquanto o signatário era Dante. Eles explicaram-me que ela era próxima do rei de Espanha, tanto [a nível] profissional como privado”, disse ao procurador suíço o banqueiro Nicolas Gonet. “Não achei necessário perguntar sobre a origem dos fundos detidos pelo Rei de Espanha. Recebi simplesmente a doação.”

 

Este escândalo junta-se a um outro que levou, ainda que mais tarde, à abdicação de Juan Carlos. Em 2012, Corinna e o chefe de Estado participaram numa caçada ao elefante no Botswana e o monarca acabou por cair, fracturou a anca e foi operado. O caso irritou os espanhóis, que estavam a braços com uma dura crise económica e políticas de austeridade, com milhões a caírem na pobreza e a perderem as suas casas.

 

“Sinto muito. Enganei-me e não voltará a acontecer”, disse em Abril desse ano o rei, perante câmaras de televisão, à saída do hospital. Mas, dois meses depois, assinou a ordem de transferência para Corinna Larsen, para se livrar do dinheiro. Como escreveu a jornalista Berna Gonzalez Harbor no El País, o perdão não é suficiente, a Justiça e a lei são a única resposta. E um monarca não pode estar acima delas.

 

tp.ocilbup@sednanref.odracir


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