domingo, 9 de agosto de 2020

A pulsão de morte da direita portuguesa


Rui Tavares

OPINIÃO

A pulsão de morte da direita portuguesa


Por que diabo Rui Rio e Miguel Albuquerque decidem nesta altura do campeonato abrir as portas a uma coligação governativa com um partido como o Chega?


10 de Agosto de 2020, 0:00

https://www.publico.pt/2020/08/10/opiniao/opiniao/pulsao-morte-direita-portuguesa-1927567


Na teoria psicanalítica clássica, descrita por Freud há exatamente cem anos a partir de ideias de Sabina Spilrein, a “pulsão de morte” é aquela dinâmica, força ou tendência não-essencial à sobrevivência do organismo, que ao contrário do instinto de vida se exprime através de obsessões, lapsos e comportamentos auto-destrutivos que consubstanciam uma atração de alguém ou alguma coisa pela sua própria aniquilação. Ou, em linguagem mais simples: estamos a falar do PSD, partido português, e dos discursos de alguns dos seus principais líderes, neste ano de 2020, revelando disponibilidade para governar em coligação com o partido de extrema-direita Chega.


Entendamo-nos. Podemos gastar o nosso tempo discutindo o grau de oportunismo, demagogia, racismo, xenofobia, eventual fascismo ou simples vigarice do projeto político do Chega (e do seu líder, que vai dar ao mesmo). Fazê-lo seria já cair na sua armadilha, cujo princípio de funcionamento é precisamente levar-nos a discutir o que deveria ser indiscutível. O que vale a pena é antes entender por que diabo o presidente do principal partido de centro-direita, Rui Rio, e o seu único chefe de executivo, Miguel Albuquerque, do governo regional da Madeira, decidem nesta altura do campeonato abrir as portas a uma coligação governativa com um partido como o Chega?


A justificação que normalmente se dá para esta abertura — o Chega, apesar de ter apenas um deputado, está em grande nas sondagens — aconselharia o contrário a qualquer político com um mínimo de competência. Se o PSD não quer que as sondagens do Chega se convertam em votos, e que a maior ameaça à sua direita se concretize, o melhor que teria a fazer seria um discurso claro que dissesse ao eleitorado em disputa entre ambos o seguinte: “caros eleitores de direita, o voto no Chega é um beco sem saída; nós nunca governaremos com aquele partido e o seu líder, que aliás saiu do PSD por ser contrário aos nossos princípios. Um voto no Chega é simplesmente um voto para garantir que a esquerda continue a governar eternamente, com o PS no poder apoiado por bloquistas e comunistas. Se vocês abominam tanto esse cenário como dizem, têm bom remédio: serem pragmáticos e votarem no PSD, único partido de direita que pode tirar os socialistas do poder. Caso contrário, votem no Chega e vivam com as consequências de um voto desperdiçado.”


Ao invés de fazer este discurso perfeitamente cabível no momento da legislatura em que estamos, e de qualquer forma o mais adequado tanto para os seus interesses como para a sua estratégia, estes brilhantes líderes políticos decidiram optar por uma mensagem que consegue reunir em si o pior dos mundos. Aos eleitores da sua ala direita, dizem: se querem puxar o nosso partido mais para a direita e obrigá-lo a uma negociação em posição de fraqueza, votem no Chega. Aos eleitores mais moderados e centristas, que são muitos na direita portuguesa, a mensagem que passa é a contrária: se não querem viver com a angústia de poderem estar a pôr no governo ministros de uma extrema-direita fascizante, votem diretamente no PS e deem a António Costa uma maioria que o isente da necessidade de governar com comunistas e bloquistas e impeça a extrema-direita de chegar ao poder connosco. Assim, de uma penada, os líderes sociais-democratas conseguem a proeza de seduzirem as duas alas do seu eleitorado a votarem nos seus mais imediatos competidores. É obra!


Chegados a este ponto, as interpretações dividem-se. Numa visão mais superficial, há quem diga: como tantas vezes na política, o PSD revela ter de prescindir dos princípios para obter ganhos táticos. Só que a verdade é que o PSD prescinde dos princípios para sofrer perdas táticas. Ou seja, não se trata de trocar bons princípios por boas táticas, mas de trocar péssimos princípios por táticas toscas.


Mais do que inépcia ou identificação, o que revela a atitude dos líderes dos PSD é uma pulsão de morte. Freud viveu cem anos antes do tempo


A outra questão em aberto é saber por que isso acontece. Por inépcia ou por identificação? Com Rui Rio, os comentadores mais generosos optaram pela primeira explicação: o melhor que se poderia dizer do líder da oposição é que ele não sabia o que fazia. Com Miguel Albuquerque, que fez acompanhar a sua aproximação ao Chega de um discurso de verdadeiro ranço reacionário pelo fim “do regime” (o único democrático e estável que tivemos) e de ataque ao Tribunal Constitucional pelo terrível “colonialismo” de julgar casos interpostos pelos cidadãos dos arquipélagos que têm tanto direito à proteção constitucional como os do continente, ficou mais patente uma verdadeira identificação com a ideologia do líder do Chega, para o qual teve, aliás, mais elogios do que para Marcelo Rebelo de Sousa. Mas, se pensarmos bem, Rui Rio também andou muitas vezes próximo deste discurso.


Mais do que inépcia ou identificação, o que revela a atitude dos líderes dos PSD é uma pulsão de morte. Sem razões para viver, nem ideias do que fazer no poder, que venha António Costa ao centro e o líder do Chega à extrema-direita e que lhes tomem conta do estaminé. Freud viveu cem anos antes do tempo


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