quarta-feira, 5 de agosto de 2020

A procuradora que ficou em primeiro mas perdeu

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OPINIÃO

A procuradora que ficou em primeiro mas perdeu

 

O Governo transformou o que devia ser um cargo independente numa nomeação por confiança política. É uma vergonha, e uma vergonha que deve ser denunciada.

 

JOÃO MIGUEL TAVARES

6 de Agosto de 2020, 0:00

https://www.publico.pt/2020/08/06/opiniao/opiniao/procuradora-ficou-perdeu-1927113

 

Esta é uma história exemplar, que tem passado por debaixo dos radares mediáticos – e não devia. É a história de uma procuradora portuguesa que ficou em primeiro lugar num concurso internacional para o cargo de procuradora europeia e que viu o segundo classificado passar-lhe à frente por indicação expressa do Governo. E é a história de um Governo que, ao apresentar explicações para tal decisão, recorreu a um argumento totalmente desconchavado, só para tentar justificar o injustificável – o Governo transformou o que devia ser um cargo independente numa nomeação por confiança política. É uma vergonha, e uma vergonha que deve ser denunciada.

 

A Procuradoria Europeia (PE) é um órgão criado pela União Europeia (UE) em 2017 e que está neste momento a iniciar funções. Iremos ouvir falar muito dela no futuro. O seu propósito é combater as fraudes que atingem directamente os interesses da UE. A UE calcula que só nos últimos cinco anos cerca de 640 milhões de euros de fundos estruturais foram indevidamente utilizados e que os Estados-membros perdem anualmente 50 mil milhões (!) em receitas de IVA devido a fraudes transnacionais. A PE passará a investigar e a exercer acção penal contra desvios que envolvam fundos da UE num montante superior a 10.000 euros ou, em casos de fraudes transfronteiriças relativas ao IVA, que envolvam prejuízos superiores a 10 milhões de euros. Estão a ver o quanto esta matéria é sensível para Portugal, não estão?


 Pois bem: o Governo também está. Cada Estado tem direito a nomear um membro para o colégio de procuradores da PE. O processo foi este: os países indicaram três nomes possíveis para o lugar – em Portugal, a selecção coube ao Conselho Superior do Ministério Público (CSMP) – e uma comissão independente da UE (um júri internacional de 12 pessoas) identificou qual dos três teria melhor perfil para o cargo. Houve entrevistas, análises de currículo e pareceres fundamentados. O júri concluiu que o melhor candidato era a procuradora Ana Mendes de Almeida.

 

Há quem diga que Ana Mendes de Almeida pagou o preço de ter andado a vasculhar o Ministério da Administração Interna no caso das golas anti-fumo. Mas talvez nem seja preciso ir tão longe

 

O Governo português não concordou. Por isso, optou por passar por cima do concurso internacional e nomear o segundo classificado, o procurador José Guerra, utilizando o patético argumento de que fora ele o mais bem classificado no concurso interno promovido pelo CSMP. É mais ou menos o mesmo que retirar ao Liverpool a vitória na Liga dos Campeões de 2019 com o argumento de que foi o Manchester City a ganhar o campeonato de Inglaterra.


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