Os
estratagemas de Dona Banca
por JOSÉ MANUEL PUREZA/
4-7-2014 in
DN online
Da forma
hollywoodesca de contar o mundo faz parte a estratégia de confinar o mal a uns
patifes cheios de avidez ou de perversidade, responsáveis isolados por
situações de afundamento moral ou de violação dos direitos das pessoas. Nesses
filmes, a ordem e os seus mecanismos apresentam invariavelmente uma capacidade
de autorregeneração quase ilimitada que se encarrega de depurar os maus e de
devolver a normalidade a um quotidiano por eles ameaçado.
A sucessão de
falcatruas e de desmandos no sistema bancário português nos últimos anos faz
perguntar se são uns poucos desviantes que espezinham o que de outra forma
seria uma ordem que funcionaria bem ou se é o próprio sistema que tem uma
lógica baseada na voragem ilimitada e é desordenado por natureza. Por outras
palavras, os casos do BPN, do BPP e agora do BES mostram exatamente o quê sobre
o capitalismo na era do primado da finança: que ele descamba quando a regulação
não funciona ou que não há mesmo regulação que o impeça de descambar?
Dos sobreiros da
Vargem Fresca no caso Portucale até aos submarinos, das parcerias
público-privadas mais leoninas e ruinosas para o erário público na saúde até
aos swaps, da implantação de sedes de empresas do grupo em paraísos fiscais
como o Luxemburgo até à assunção de fuga ao fisco durante anos consecutivos
pelo seu dirigente máximo (a que uma amnistia fiscal desenhada à medida pelo
legislador pôs termo) - a tudo isso o BES aparece indesmentivelmente associado.
Tal foi o rosário de trapalhadas e de histórias mal contadas que brada aos céus
a quietude de comentadores e editorialistas sempre tão lestos na atribuição à
"classe política" ou aos dirigentes sindicais da responsabilidade
pela ruína do País.
Dir-se-ia que a
liberdade de mercado é mesmo assim, que o seu risco não para às portas de
ninguém. Mas o certo é que não é nada disso que causa o afundamento do Grupo
Espírito Santo. Porque não é risco de mercado o não reporte de 1,3 mil milhões
de euros de passivos nas contas de uma holding. Nem é risco de mercado que uma
filial pratique uma política de crédito cujo resultado são 5,7 mil milhões de
euros emprestados sem saber para que fins nem a quem. Não, não é risco de
mercado, é mesmo jogo de casino com dinheiro alheio.
Repito para que
não haja dúvidas: com dinheiro alheio. O Banco Espírito Santo é um dos grandes
responsáveis pelo gigantismo da dívida externa do País que motivou a
intervenção da troika - uma dívida na sua esmagadora maioria privada e cujo
resgate pelo Estado passou para todos nós, contribuintes, o ónus do respetivo
pagamento em perda de salários, em perda de pensões ou em perda de qualidade dos
serviços públicos de saúde de que se alimenta o crescimento do negócio de saúde
do Grupo Espírito Santo. As tantas benesses do amigo Estado - a reprivatização,
as PPP, as amnistias fiscais, a inação diante de desmandos sucessivos
alimentada pelo vaivém entre direção de empresas do grupo e cargos
parlamentares ou governamentais - são um retrato da democracia que temos.
Tresanda a BPN,
Parte II. E a pergunta tem pois de ser: o que é que aprendemos com o BPN?
Deveríamos ter aprendido duas coisas. Primeira, que um setor bancário
liberalizado gera e desenvolve práticas de poder, de promiscuidade e de
contorno da lei que lhe dão uma força crescente. Segunda, que uma regulação a
sério de um setor tão crucial implica presença do Estado por via acionista,
única forma de conter verdadeiramente a deriva de destruição de uma finança sem
rei nem roque.
Quando um destes
dias nos vierem com a inevitabilidade de injetar capitais públicos no BES para
controlar o risco sistémico, valia a pena lembrar tudo isto.
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