Francisco
Louçã e o Pai Natal
João Miguel Tavares / 10-7-2014 / PÚBLICO
Para todos os que
acreditam que a reestruturação da dívida é uma loucura nos moldes em que ela
tem vindo a ser discutida, o Natal chegou mais cedo pelas mãos de Francisco
Louçã, Ricardo Cabral, Eugénia Pires e Pedro Nuno Santos.
A prenda no
sapatinho — pela qual eu publicamente lhes agradeço — chama-se “Um programa
sustentável para a reestruturação da dívida portuguesa” e é, sem dúvida, um
brilhante esforço para nos mostrar quão lunático e insustentável é um programa
de reestruturação da dívida portuguesa decidido a partir de Lisboa. Com um
mérito acrescido: este maravilhoso documento irá provocar a implosão do célebre
albergue económico-político conhecido como “Manifesto dos 74” , já que a concretização de
vagos desejos num programa muito prático fará com que boa parte daqueles 74
subscritores recuse enfiar-se neste navio felliniano.
O programa de
reestruturação de Louçã et al. tem duas linhas mestras. Em primeiro lugar,
propõe pontapear o pagamento das dívidas do Estado para o período 2045-2054,
reduzindo os juros dessa dívida para uns generosos 1%. Em segundo lugar, aposta
numa “resolução bancária sistémica” para “evitar o colapso simultâneo de toda a
banca nacional”. É sempre giro defender a implementação de um plano que admite,
logo à partida, existir o perigo de todo o sistema bancário entrar em colapso,
mas em compensação teríamos a possibilidade de nacionalizar a banca de uma
ponta à outra, correr com os actuais accionistas e afinfar um corte de 34% nos
depósitos superiores a 100 mil euros, esses ricalhaços. É certo que receberiam
acções do banco em troca. Mas imagine que o caro leitor era funcionário de uma
empresa que levava um daqueles cortes de 34% na conta bancária e ficava sem
liquidez no fim do mês — você não se importaria de receber o seu ordenado em
acções, pois não? E pagar a escola dos miúdos em acções? A bicazinha matinal em
acções? Tudo em acções.
Ou, então,
imagine que eu sou o senhor Vintém e tenho 80 anos. Subscrevi uns Certificados
de Aforro com as minhas poupanças, porque nos CTT me garantiram que era a coisa
mais segura que havia. E eis que Francisco Louçã chega ao pé de mim e diz:
“Lamento, sô Vintém, é preciso reestruturar a dívida. O senhor vai ter de
esperar mais uns anitos para receber o seu dinheiro, tenha lá paciência.” “Quanto
anitos?”, pergunta o senhor Vintém. “Isso ainda está em estudo, mas, na pior
das hipóteses, em 2045.”
“Ó sô Louçã, mas em 2045 eu vou ter 111 anos. Se calhar já faleci”, constata o
senhor Vintém. “No estado em que se encontra o sistema nacional de saúde, não
me espantava nada”, profetiza Francisco Louçã.
Este é um
programa muito bem visto. Não há cá haircut. Nós pagamos a dívida toda. Só que
pagamos a dívida daqui a 30 ou 40 anos, quando os credores já estiverem mortos.
E, claro: estando a maior parte da dívida nacional em mãos portuguesas, isto
significa que junto dos pequenos aforradores, da Caixa Geral de Aposentações ou
da Segurança Social, o Estado teria que financiar com dívida a reestruturação
da dívida. Não se tendo corrigido os problemas estruturais do país, mas apenas
diminuído os encargos com juros, tudo indica que o dinheiro dos impostos
continuaria a ser insuficiente para fazer face às necessidades do Estado, seja
nas transferências para instituições deficitárias, seja no financiamento do
investimento público. A questão é: quem nos emprestaria dinheiro depois do
calote? Só mesmo o Pai Natal, que Francisco Louçã conhece tão bem.
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