Há 13 anos a pagar uma casa que
não podem estrear
10 Julho 2014
João Pedro Pincha
/ OBSERVADOR / http://observador.pt/reportagem/ha-11-anos-desesperar-por-uma-casa/
EM 2001, 87 JOVENS
GANHARAM O PRIVILÉGIO DE VIVER NUM EMPREENDIMENTO NOVO DA EPUL NO CENTRO DE
LISBOA, NO MARTIM MONIZ. MAS QUASE TUDO CORREU MAL. AO FIM DE 13 ANOS, OS
APARTAMENTOS ESTÃO FINALMENTE PRONTOS MAS OS DONOS QUE NUNCA DEIXARAM DE PAGAR
A PRESTAÇÃO AO BANCO NÃO SABEM QUANDO VÃO TER A CHAVE NA MÃO.
Corre o mês de
outubro de 2001. Ricardo Dias tem 23 anos e está radiante. Vai ser o primeiro
do seu grupo de colegas da faculdade a sair de casa dos pais. E a mudança é
relevante: vai trocar Sacavém, nos arredores de Lisboa, pelo Martim Moniz, bem
no coração da capital. “Quando sair de casa, pode ir a pé ao Chiado. São 850
metros. Não chega a um quilómetro, portanto. Parece pouco, não parece? É mesmo
pouco. E claro, o rio Tejo está à distância de uma caminhada alegre, sempre a
direito”. Este idílico relato consta de uma brochura promocional da Empresa
Pública de Urbanização de Lisboa (EPUL), responsável pela construção da casa
onde Ricardo vai viver.
Parece um sonho.
Parece quase bom de mais para ser verdade. Foi uma grande sorte Ricardo ter
sido escolhido de entre 10 mil pessoas para habitar um dos 47 apartamentos T1
que a EPUL vai construir na praça lisboeta. E logo a um preço bastante
acessível: 300 contos (1.500 euros, aproximadamente) por metro quadrado. Se
tudo correr bem, lá para o fim de 2003 Ricardo e os outros 86 jovens
selecionados para viver no Martim Moniz já estarão a ocupar as suas novas
casas.
“Nunca gostei de
Sacavém, achei que ia dar um salto, um salto positivo”, diz Ricardo para
justificar só ter preenchido o formulário de candidatura com uma cruzinha na
caixa dos T1 do Martim Moniz, quando havia outras tipologias disponíveis e,
ainda, um outro empreendimento a construir em Telheiras. “Os meus pais até me
disseram sempre para eu escolher Telheiras, mas eu ‘não, Martim Moniz, Martim
Moniz’.”
À ESPERA DO SONHO
Passaram 13 anos
e o sonho está muito desvanecido. Aliás, assemelha-se já mais a um pesadelo.
Não correu tudo bem. Pelo contrário. Se tivesse escolhido um apartamento em
Telheiras, Ricardo já teria casa desde 2005. Como escolheu o Martim Moniz,
viu-se envolvido num caso mediático que já teve de tudo: mudança radical de
projeto; falência de um empreiteiro; escavações arqueológicas que obrigaram à
suspensão das obras; novos concursos e dificuldades financeiras várias. E está
há 13 anos a pagar, como outras pessoas, um empréstimo ao banco por uma casa
onde não passou ainda uma única noite.
Tudo começou uns
meses antes desse outubro de 2001.
A EPUL decidiu, entre 1999 e 2000, lançar um concurso
que promovesse a fixação de jovens no centro da cidade, nomeadamente naquela praça
lisboeta. O projeto arquitetónico foi aprovado pela Câmara Municipal de Lisboa
no fim de 2000. “Os edifícios, na parte de habitação, destinavam-se
exclusivamente ao programa EPUL Jovem, englobando 87 frações (47 T1; 37 T2 e 3
T3) (…) e contemplavam oito espaços comerciais”, lê-se num relatório elaborado
pela empresa em maio de 2009, onde fazia um resumo da situação. Desde o início,
só houve problemas.
O último capítulo
desta história foi o afastamento da Habitâmega da obra, em abril deste ano, já
com a EPUL em processo de extinção, de acordo com o que o executivo de António
Costa decidiu em 2013. A
construtora havia tomado o controlo da obra em 2010, sete anos depois do prazo
previsto para a sua conclusão. Na altura, a EPUL considerava “como razoável uma
previsão de conclusão do empreendimento e respetiva entrega aos
promitentes-compradores até ao final do 1º semestre de 2011” , pode ler-se no
relatório já citado.
Agora, o que a
EPUL disse aos futuros habitantes do empreendimento é que terão a chave na mão
até 31 de dezembro deste ano. “O concurso público para adjudicação da
empreitada de conclusão da obra está neste momento a decorrer com a maior
celeridade que a lei permite, estando os liquidatários da EPUL totalmente
empenhados em terminar aquele empreendimento tão breve quanto possível”, foi a
lacónica resposta da empresa a várias perguntas colocadas pelo Observador sobre
a história deste caso.
À ESPERA, MAS EM
AÇÃO
Treze anos
passaram e muita coisa mudou. “Isto altera uma vida. Alterou a minha vida.” Em
2001, quando se candidatou, Ricardo era solteiro e queria manter-se assim por
um tempo. “Nessa altura eu queria morar sozinho e depois de me adaptar a essa
vida, sim, começava a construir uma família, ali ou em qualquer outro sítio”,
conta. “Fiquei feliz. Fui das primeiras pessoas, do grupo de amigos da
faculdade, a dizer que tinha casa. Agora sou o único que ainda não tem casa
própria”.
Numa situação
semelhante está Marta Vieira, outra das futuras proprietárias de um dos
apartamentos. Quando foi selecionada, “ainda era jovem”, brinca agora, sem
grande vontade de rir. “Na altura achei que tinha tido muita sorte. Foi o maior
azar que me aconteceu”, diz.
Foi com este
sentimento presente que, em 2008, os promitentes-compradores se juntaram num
grupo organizado. Nessa data, a construção do edifício tinha-se reiniciado há
dois anos, depois de um interregno de quatro em que a CML tinha ordenado a
reformulação do projeto para um “novo conceito”, “com ampliação da área de
intervenção e aumento da volumetria”. Ao mesmo tempo, “foi definido que os
edifícios passariam a ter uma composição mista, com fogos destinados ao
programa EPUL Jovem, fogos para venda livre no mercado e lojas com localização
nos mesmos edifícios”, relata o documento de síntese da EPUL, de 2009. O
projeto, inicialmente orçamentado em 6,8 milhões de euros, passou a ter um
custo previsto de 13,5 milhões.
Assim, depois de
“um processo complexo e moroso”, admite a própria empresa, as obras
reiniciaram-se em 2006, altura em que 16 concorrentes selecionados desistiram
do empreendimento e os restantes 69 tiveram de escolher novos apartamentos, uma
vez que os que haviam escolhido em 2001 não sairiam do papel. “Escolhemos um
apartamento que tinha um terraço bastante grande” no primeiro projeto, relata
Marta. No segundo processo de escolha, porém, ficou com um T1 sem espaço
exterior. “A questão do terraço tinha pesado na escolha e não tivemos qualquer
compensação por o termos perdido”, conta.
“Em 2008, eu e
mais um grupo de pessoas – cerca de 27 – juntámo-nos e achámos que tínhamos
matéria suficiente para contratar um advogado e pedir sobretudo que pudéssemos
alterar coisas ao contrato – que se pudesse vender a casa, por exemplo, dado
que a obra já tinha um atraso razoável”, relata Ricardo. Ele era um dos cinco
representantes dos promitentes e, nessa qualidade, teve uma reunião com a
câmara e a EPUL no sentido de encontrar soluções para o problema. Foi em outubro
de 2009, nove meses depois de as obras terem sido suspensas por falência do
primeiro empreiteiro, a Mesquita & Filhos.
Nessa reunião,
Manuel Salgado, vice-presidente da câmara, terá dito: “Estes jovens têm todo o
direito naquilo que estão a pedir”. Quem o conta é Ricardo, que, à semelhança
de todos os outros candidatos, pagara um sinal pela casa que iria habitar e
fizera ainda múltiplas entregas de dinheiro posteriores.
A exigência das
pessoas que queriam desistir da casa era que a EPUL “de[via] reembolsar (…) o
dobro da totalidade das quantias entregues (…), acrescidas dos juros bancários
incorridos desde 2003” ,
lê-se na ata da reunião. A empresa municipal não concordou. Aliás, havia
diferenças de interpretação entre as partes relativamente ao que era
considerado sinal. “Eles entendiam o sinal [como] o que nós tínhamos dado de
início para nos inscrevermos no concurso e nós entendíamos que sinal eram todas
as entregas feitas em dinheiro durante este tempo”, explica Ricardo. Isto
significava que “em vez de nos pagarem 2500 euros, havia casos em que tinham de
pagar 50 e 60 mil euros”, diz.
“Dessas 27
pessoas, agora estamos sete. As outras desistiram. Deram as casas à EPUL,
aceitaram esses 2.500 euros e foram-se embora”.
À ESPERA DO
FUTURO
Hoje, Ricardo
Dias vive em união de facto e tem dois filhos. Mora há oito anos numa casa
arrendada no bairro do Arco do Cego e já não pensa no apartamento do Martim
Moniz para habitar, mas para rentabilizar. E não acredita que o prazo de
dezembro seja cumprido. “Parece-me pouco provável. Só vou ter a certeza quando
tiver a chave na mão.”
Marta Vieira
também casou e teve uma filha entretanto. “Estou profundamente arrependida de
não ter desistido”, desabafa.
“Foi um ato
de fé, era-me impossível conceber que se pudesse atrasar tanto tempo. As
pessoas que desistiram já organizaram a sua vida”.
Ao contrário de
Ricardo, que contraiu um empréstimo bancário que vai pagando ao mesmo tempo que
paga a renda da casa onde vive – com o apoio dos pais, admite -, Marta não
chegou a dar esse passo, o que, para si, foi “a maior sorte” neste processo.
Ainda assim, viveu os últimos anos “sempre em expetativa, sempre de situação provisória
em situação provisória”. Viu-se forçada a arrendar várias casas e até a passar
um tempo, com marido e filha, em casa do pai.
Marta ainda quer
viver no Martim Moniz. “Não sabemos exatamente o que falta concluir”, diz. Já
será pouco. As casas, diz a EPUL, estão prontas. O Observador visitou o andar
modelo, que se situa no edifício 3 do empreendimento – que tem seis no total –
e verificou que pelo menos este apartamento T1 está pronto a habitar.
Para lá chegar,
um vendedor da EPUL conduz-nos através de quatro lanços de escadas, um a descer
e três a subir. Mas há elevadores dos dois lados do edifício: um virado para a
Praça do Martim Moniz e outro para a Rua Arco da Graça. Os acabamentos, nas
zonas comuns, são em madeira e granito. Os corredores têm luz automática. Já
dentro da casa, uma enorme fotografia autografada por Carminho recebe-nos na
sala, iluminada por três janelas. No mesmo espaço situa-se a kitchnet, equipada
com placa de fogão, exaustor, esquentador, caixote de reciclagem e iluminação
específica para a bancada. Ao lado, situa-se um saguão com estendais,
naturalmente ventilado através de uma clarabóia. Numa outra zona situa-se a
casa de banho e o quarto, que, com um roupeiro embutido de três gavetas e um
varão, parece relativamente pequeno.
Ao todo, o
empreendimento tem seis edifícios com 130 apartamentos, 11 lojas e dois
escritórios. Em 2012, na sequência de todas as desistências do primeiro
programa EPUL Jovem, a empresa lançou um novo concurso para vender as restantes
40 casas neste âmbito. Dessas, faltam vender oito. Das 37 colocadas à venda em
mercado público, faltam vender 21. As oito coberturas, algumas das quais duplex
com terraços panorâmicos “onde apetece ficar e ouvir esse fado que ecoa dos
bairros vizinhos”, anuncia a brochura de venda, ainda estão todas por vender,
assim como os espaços comerciais e o escritório.
Quando finalmente
lhe derem a chave para a mão, Ricardo já não vai querer viver na casa que há 13
anos julgou ser um sonho a tornar-se realidade. Agora, pondera arrendá-la
permanentemente ou criar ali uma guest house, que, numa das zonas de Lisboa que
mais se reabilitou nos últimos anos, tem o sucesso praticamente garantido. “O
que é mais triste nesta história é que parece um daqueles sonhos que não se
pode controlar. Eu vejo a casa feita mas não posso [usá-la]. Preferia não ver nada, preferia ver lá um buraco.”
“Por muito que
custe, vou até ao fim”, garante. Mesmo que o fim seja só daqui a muito tempo. “Isto
pode durar até ter netos”, profetiza. E logo o seu semblante se carrega.
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