EDUARDO LOURENÇO
Junho 5, 2014
ANA SOUSA DIAS
Fotografia- Alfredo Cunha
LIBERDADE
A liberdade sem preço
não é liberdade, diz o filósofo Eduardo Lourenço, beirão nascido em 1923 que,
aos 26 anos, experimentou a vida num outro planeta ao tornar-se professor numa
universidade francesa e deixar para trás o “pesadelo azul” português. A
conversa começa por uma pergunta à qual o o filósofo vai fazendo aproximações,
porque tem de explicar primeiro o conceito, o processo da sua construção, e só
depois chegar, talvez, ao tópico concreto. Não se perde nesse labirinto, ele
que nos explicou a saudade e que é profundamente europeu, mas ao longo do
caminho vai-nos dando pistas para chegar ao “desejo amoroso do mal”, ao
paradoxo do fascínio da opressão e a Caim, o herói do mal e autor da sua
própria liberdade. O conteúdo mais verdadeiro da liberdade é a libertação, diz
Lourenço, e aí está o recado para os dias de hoje: “devíamos respirar mal o ar
que respiramos tão bem, não nos habituarmos a que isto desaparecerá como um mau
sonho”.
Antes de partir para França em 1949, viveu num
Portugal onde não havia liberdade. Como sentiu essa falta?
O tema da
liberdade é um dos mais difíceis que construímos, porque temos de
pronunciar-nos sobre algo que não é da ordem do conceptual. Isto se entendermos
por conceptual a leitura do que nos é objetivamente exterior, em relação ao
qual podemos saber se a realidade corresponde ao que estamos a dizer. É-nos
muito difícil justificarmo-nos como seres livres: não sabemos se o somos
verdadeiramente.
A nossa essência,
em princípio, é de sermos seres livres. Mas Spinoza, provavelmente um dos maiores
filósofos do ocidente, pensava que era uma ilusão nossa, uma ilusão salvadora.
Somos seres na ordem da contingência por nascimento e origem, e na ordem da
necessidade porque não somos senhores dos fins que procuramos realizar nem da
certeza de sermos capazes de os atingir. A nossa condição de seres é sempre uma
condição extraordinária.
Na minha geração,
a filosofia em voga, quase um dogma, é o existencialismo, sobretudo na versão
Sartre de que a essência do homem é a liberdade. Isso foi depois glosado para
situações clássicas ou canónicas que constituíram uma verdadeira revolução.
Madame Simone de Beauvoir disse que não se nasce mulher, mas torna-se mulher.
Detrás disto há a ideia de que somos os criadores da nossa própria realidade,
seja fantástica ou seja a realidade que realiza.
Está de acordo com essa ideia?
Não, não estou.
Porque há muito mais em torno de cada ser?
Eu sei o que ela
quer dizer com isso e há uma parte de verdade. Cada ser humano é responsável
pela sua própria humanização, não lhe é dada, não é um dado original, seja
homem ou mulher. Não é um dado na ordem cósmica, é uma coisa misteriosa, nós
não sabemos. Como dizia o Pascal, nascemos embarcados. Não há enigma mais
extraordinário do que o que representamos para nós próprios, e esse enigma
nunca será resolvido.
Há coisas
vertiginosas e nós gostávamos de saber. Aquilo a que chamamos a ciência, uma
invenção da liberdade humana, da criatividade humana, propõe-nos diversas
possibilidades. Mas temos uma grande dificuldade em imaginar o que está na
nossa origem, nós próprios devimos.
Por isso a
humanidade resolve esses problemas através dos mitos. São dois os mitos da
civilização ocidental e do seu fundamento. Um, o grego propriamente dito, é que
o kósmos é divino e nós somos filhos do kósmos, ponto final. Mas não há um
sujeito dessa cosmocidade. O outro é a nossa referência bíblica, a narração
fundadora da civilização a que ainda pertencemos, mal, mas ainda pertencemos. E
essa supõe que o kósmos não é o dado original, não está nada atrás nem adiante:
foi um espírito que o criou, uma entidade inteligente, consciente dela própria,
responsável daquilo a que chamamos o mundo.
Mas isto é o
fundamento de uma visão intrinsecamente religiosa, uma transcendência que não é
unicamente fáctica, porque o homem define-se em função de uma transcendência,
seja ela qual for. A primeira transcendência é o mundo, nos aspectos que
condicionam a nossa existência mais elementar – a criação, a luz, a separação
da luz e das trevas, ainda antes de serem mitos religiosos e filosóficos ao
mesmo tempo. Definimo-nos em relação ao mundo tal como ele se define.
Onde está a liberdade no meio disso?
Difícil de
conceber. Vamos à primeira pergunta que me fez sobre o Portugal onde eu nasci,
onde nasceu a minha geração. Não posso dizer que quando era jovem eu estava
convencido de ter nascido numa prisão ou coisa parecida com as figuras de uma
das grandes peças do barroco, do Calderón [de la Barca] – um sujeito que oscila
entre duas possibilidades, entre ser rei e estar na prisão. Atrás disso está o
Platão com o seu famoso mito da caverna, a ideia de que vemos as coisas num
segundo grau, filtradas, porque não somos capazes de encarar propriamente a
verdade. Se a realidade não fosse filtrada, nós confundíamos as sombras
projectadas na parede com a verdadeira realidade.
Só tarde, mas não
muito tarde, me dei conta de que estava num país que tinha um passado, e que no
momento havia um regime surgido numa espécie de revolução que se intitulou ele
próprio de estado novo. Ninguém sabia que ele iria durar 40 anos. E sobretudo
ninguém sabia que, contrariamente à letra do seu próprio texto, que está na
Constituição de 1933, nós íamos sofrer ausências de liberdade. Falo de uma
liberdade já então codificada na ordem política e histórica na Europa,
sobretudo no século XVIII com a Revolução Francesa e o que se seguiu, sistemas
instituídos das democracias modernas, em que temos estatuto de cidadãos, somos
gente que habita e é responsável pelo mundo que está fazendo, mas sobretudo é
responsável pelo estatuto de sociedade. Somos filhos de um passado longínquo,
mas somos também filhos de épocas que tinham feito da liberdade um verdadeiro
mito e já a tinham conquistado.
A liberdade como
questão, como dificuldade, passou da ordem metafísica para ser a primeira
exigência manifestada do homem moderno.
No famoso
tríptico francês – liberdade, igualdade, fraternidade – liberdade era não estar
sujeito a uma tutela do outro, de um outro que tem direitos sobre nós, que nega
a nossa condição de sujeitos de nós próprios. Era uma vontade de promoção da
nossa essência de seres livres, de traçar o nosso próprio destino, de
convertê-lo num novo dogma que funda a modernidade política.
O problema é que
não nos damos conta até que ponto essa mitologia da liberdade é essencialmente
europeia. São milhares de anos de tentativa de dar um corpo à utopia de que
somos os agentes do nosso próprio destino.
E é preciso continuar a tentar essa utopia?
É uma utopia sem
a qual nos converteríamos em escravos voluntários, uma luta sem fim. É a nossa
essência, mas uma essência que pede para ser realizada. Se não é realizada, nega-se
a si mesma. O combate da liberdade de toda uma sociedade que tem na liberdade o
seu mito fundamental é uma tarefa sem fim.
Vamos então à sua
primeira pergunta. Quando ainda estava em Portugal, vivi a ausência de
liberdade – não fui o único. Seria absurdo falar de falta de liberdade de
pensamento, porque o pensamento não pode ser coarctado, mas as condições do seu
exercício e da sua expressão podem sê-lo e eram. O regime, neste capítulo, foi
uma grande regressão aos séculos anteriores.
Mas houve tempo em
que a questão não se punha da mesma maneira porque havia um consenso sobre as
coisas fundamentais e as pessoas não pensavam que eram não livres. Quando se
nasceu em países onde ao longo de séculos o cristianismo era a religião quase
consensual e, depois, em duas versões diferentes, não se tinha que inventar a
liberdade enquanto liberdade de crença ou de não crença. Pensava-se que a coisa
mais libertadora que havia era a crença ela mesma.
A crença?
A crença. De
todas as liberdades, a mais fundamental é a de crer ou não crer. A liberdade
religiosa não é uma variedade das liberdades, é o fundamento de todas as outras
na medida em que o homem é um ser naturalmente religioso. Religioso quer dizer
que não consegue explicitar a sua condição, porque ele próprio está envolvido
na questão.
Portugal nessa
época tinha um certo número de liberdades já conquistadas, expressas nas leis
que derivaram do triunfo das ideias liberais, mas havia uma ocultação, uma
dificuldade em passarem na prática.
Muito cedo o novo
governo instituiu a censura, uma certa coacção, tomou conta dos meios de
informação. Nunca tinha havido um ministério chamado da propaganda – uma coisa
que hoje já não espanta ninguém, agora a propaganda é automática. Naquela
altura, eram os novos regimes que assumiam esse desafio, nas sociedades
europeias onde essa visão começava a ser uma espécie de contestação hiper-não
democrática à democracia já vigente, mais ou menos triunfante.
Foi um grande
período de ocultação de crítica à democracia enquanto filha das revoluções
liberais, do liberalismo e da época das Luzes. E começou uma época tenebrosa em
Portugal, à portuguesa, mais tolerável para a minoria que mais sofria com a
ocultação dessa sua realidade de ser livre, pois tinha conhecido uma liberdade
de expressão que provavelmente nunca foi tão grande como na segunda parte do
séc. XIX.
Lembra-se da diferença que sentiu quando começou a
viver em França?
Era como se
passasse de um planeta para outro. Uma experiência semelhante à dos portugueses
quando andaram por esse mundo e encontraram culturas em que as referências não
eram exactamente as mesmas, e que lhes podiam parecer libertadoras mas para
outros eram intoleráveis. Nos anos 1940, quando se ia lá para fora, para um
país chamado França, era como se fossemos para outro planeta.
As coisas que
aqui condicionavam a nossa existência cívica e a nossa liberdade de expressão,
sobretudo em matéria ideológica e política… O país entrou sem saber, a maior
parte dele, numa espécie de clandestinidade sobre si próprio, tendo
aparentemente tudo na mesma. Este país suave que nós conhecemos. Uma espécie de
pesadelo azul. Pesadelo para toda a gente? Não, não era assim que as coisas
eram vividas, era uma minoria, foram sempre as minorias que definiram o
estatuto, sobretudo na época moderna.
Um pesadelo azul?
Um pesadelo azul,
e esse pesadelo azul foi vivido por uma parte – não foi só aqui, não me venham
contar loas, eu estive lá, sei o que era. É evidente que o pesadelo deixava de
ser azul para aqueles que se opunham de uma maneira concreta ao estado de
coisas vigente. Começava a ser um estado oferecido como solução, e a melhor
para o país, para remediar malefícios atribuídos à gestão anterior, primeiro ao
liberalismo monárquico e depois à República, que teriam conduzido o país a uma
ingovernabilidade tal… É melhor não pensar nisso porque as coisas repetem-se e
é melhor não chamar os demónios.
O país não está
na ingovernabilidade, neste momento, mas está numa situação dramática e
insólita porque há muito tempo que não se vivia com a impressão de termos país
sem ser o nosso, sem sermos os donos dele. É claro que o facto de estarmos num
conjunto de outros países que gozam ainda de um mínimo de liberdades
conquistadas no passado não nos provoca nenhuma angústia particular de
entrarmos numa outra
época outra vez
tenebrosa.
Mas pensa que pode haver essa regressão?
Vivemos num país
com tantos séculos de existência, pensávamos que era uma casa já habitada e
nossa, e de repente são os outros que nos vêm tutelar, vigiar, controlar. Não
foram eles que inventaram, fomos nós que criámos as condições, ou não soubemos
gerir suficientemente o estado de democraticidade e, de repente, sem perder
nenhuma das conquistas representadas pelo que nós chamamos Revolução de Abril,
estamos no país que tem de prestar contas aos outros, sentados no banquinho dos
que…
A casa continua a
ser nossa, mas já devíamos respirar mal o ar que respiramos tão bem, não nos
habituarmos a que isso se tornasse uma coisa contingente que amanhã
desaparecerá como um mau sonho. É uma situação de diminuição do nosso estatuto
enquanto país independente de há tantos séculos.
Não é só este
pequeno Portugal, o país deixou os seus traços no mundo, as suas acções. E de
repente estamos numa Europa que já não tem o estatuto que foi dela durante
séculos, de ser o continente da invenção, dos paradigmas políticos, de um bem
estar superior em geral ao que acontecia noutros continentes, uma Europa em
crise profunda, sem capacidade de resolver o que pensava resolver facilmente.
Apesar disso,
este continua a ser o continente em que a ideia de liberdade se impôs de uma
maneira mais eficaz do que nas outras partes do mundo que conhecemos, inclusive
aquelas que pensamos que são mais democráticas do que esta, o que não é
verdade.
Quais?
Os Estados
Unidos, por exemplo. Podemos discutir indefinidamente a democracia dos Estados
Unidos, mas não há uma democraticidade naquele país, há uma vontade de
democraticidade. É um poderio, uma energia histórica que a Europa não tem
comparável com a deles. Mas os Estados Unidos também são filhos da Europa… e
agora são os pais, mais ou menos condescendentes.
E a Europa não vai conseguir sair deste estatuto?
A Europa não
precisa de sair de nada, não há nada melhor do que esta Europa, por enquanto.
Mas temos de nos lembrar que a Europa apenas há 50 anos era o pesadelo do
mundo. Vão fazer agora 100 anos que começou a primeira Guerra Mundial. Mundial!
Aquilo que acontecia na Europa era de natureza tal que afectava o conjunto dos
países do mundo. Uns porque filhos da colonização, outros porque tentaram
seguir as conquistas mais interessantes de que a Europa era a representante. No
séc. XIX, os grandes pensadores da Europa eram uma espécie de deuses noutros
sítios. O Victor Hugo era um deus na Indochina. Agora os deuses não são
europeus, são americanos, em geral. Até ver.
Acha que isso vai mudar, que os Estados Unidos vão
ser ultrapassados por países asiáticos?
Os Estados Unidos
também já estão no tinteiro. Somos todos americanos, começamos desde garotos.
Quando vim para Lisboa, para o Colégio Militar, saía para ir ao cinema e via
sobretudo filmes americanos. A americana está em toda a parte, mas não na
maneira como a Europa estava, porque a Europa é um conjunto de nações e a
América nasceu como uma super-nação, imediatamente. E sobretudo tornou-se.
Sendo o continente da emigração ocidental e não só, da emigração planetária.
A América é ela e
mais do que ela e o outro lado, e como modelo democrático tem problemas que
ainda não resolveu. Mas tem a capacidade de os resolver, ou pelo menos dar
consciência deles e ser capaz de resolver.
Apenas há um
século, vivia em guerra civil, não uma guerra civil no sentido de Roma, das
classes baixas contra as classes altas, mas por razões que são atentatórias a
uma visão minimamente racional da espécie humana. Pelas razões mais arcaicas,
rácicas. Teve de se envolver numa guerra civil para resolver um problema de
ordem política, social e económica.
A democracia
americana instalou-se conservando aquilo que é a negação de qualquer espécie de
democracia – a escravatura. O estatuto não era muito diferente do estatuto da
Rússia dos czares, das Almas Mortas do Gogol. Também aqui na Europa, porque a
Rússia é Europa, pelo menos para mim, não era muito diferente. Mas sem ser o
estatuto dos países propriamente objecto de colonização e de predação como a
África e uma parte da Ásia, era mais escandaloso por ser naquele país que
nasceu como o que fez a independência pela primeira vez, a independência em
relação à Europa, uma independência de ordem política e cultural. Nasceu
conservando no interior um buraco negro que tem sido muito difícil de converter
em qualquer coisa de luminoso. E todavia esse pequeno milagre, ou uma parte
dele, sucedeu em poucos anos: o acontecimento Obama é extraordinário.
Não é só simbólico?
Não é só
simbólico, é planetário, porque sendo a América quem é, sendo a potência hegemónica
que resultou da II Guerra Mundial, tudo quanto acontece na América serve de
modelo para o resto do mundo. Não podem é dar lições de democracia à Europa.
Mas a Europa também não. Por isso é que a democracia não é um dado eterno.
Nem a liberdade.
Muito menos a
liberdade.
Mas não há grandes contradições na liberdade? Para
defender a liberdade, a Revolução Francesa…
…começa o Terror.
À sombra da liberdade nasceu a guilhotina. Ou a guilhotina foi o instrumento
para impor essa liberdade.
Todas as revoluções têm esse elemento?
É verdade, e esse
é um drama. Uma das heroínas dessa época, a madame Roland [Manon Roland,
1754-1793], que fazia parte não propriamente dos jacobinos mas dos outros, ao
ir para o cadafalso disse “Liberdade, quantos crimes se cometem em teu nome!”
Isso pode
continuar a ser verdade. Neste momento, a Europa está num momento
extraordinário de paz. Mas a liberdade não está garantida. O problema da
liberdade é que somos essencialmente seres de vontade. O que distingue a humanidade
de todas as outras espécies é a vontade, quer dizer, propor-se fins que podem
ser alcançados. Bom, mas o contrário da liberdade é o estado de necessidade,
uma vontade contrária à vontade que nós próprios definimos. É o facto de uma
vontade, outra que a nossa, se impor à nossa própria vontade.
Não sei se era
Hegel que dizia que cada consciência persegue a morte da outra consciência –
isto é muito alemão. Há uma espécie de luta ontológica em que cada um é uma
manifestação de uma vontade absoluta de ser um deus, qualquer coisa de uma
vontade que não encontra obstáculo. Isto é da ordem da relação entre os sexos,
entre as pessoas, há uma luta contínua. A história da humanidade, a história do
ser humano que nós somos como seres livres é ao mesmo tempo a história de uma
luta sem fim. Quem é o primeiro? Quem impõe a vontade ao outro?
Mas não fazemos isso no dia-a-dia, até
inconscientemente, nos pequenos gestos?
Sim, sobretudo
aí, porque as consequências são menos nefastas. Se for para o outro aquilo que
o nega como tal, então entramos na tragédia. De resto, foi neste continente que
apareceu esta forma de resolver o que não é resolúvel e que dá lugar a
confrontos que só se terminam pela liquidação ou pela subordinação do outro.
Está a falar da
tragédia grega?
Claro. Não foi
por acaso que o Freud escolheu na tragédia grega o mito mais importante para
perceber e compreender o drama da existência enquanto drama de vontades e o
drama do poder enquanto luta de vontades para impor aos outros. Toda a História
não é outra coisa se não a luta por quem é o primeiro.
Sente-se um homem livre?
O conteúdo mais
extraordinário da liberdade é um conteúdo de não opressão fáctica. O conteúdo
da liberdade é sobretudo negativo. Não estar sob a tutela ou o domínio do
outro. O conteúdo mais verdadeiro da liberdade é libertação. Para nós
conhecermos a força e o imperativo dessa libertação é preciso, paradoxalmente,
ter sofrido antes uma opressão. Há uma dialéctica entre as duas coisas.
Daí aquela frase
tão célebre e tão criticada de Sartre no momento em que os alemães ocupavam a
França. Ele escreveu esta coisa que só um filósofo era capaz de escrever, que
os franceses nunca tinham sido tão livres, porque a liberdade sem conteúdo não
é verdadeiramente a liberdade. Ali, alguém tinha de assumir a sua condição de
ser essencialmente livre e nascido para exprimir essa liberdade, mas tinha de
pagá-la. Liberdade sem preço não é liberdade.
Mas é muito
curioso, porque a própria opressão pode ser fascinante, hélàs, a todos os
níveis. Escrevi recentemente sobre um texto que encontrei, lendo ao acaso um
filósofo, o pai da mística ocidental Dionísio Areopagita. A propósito de uma
luta espiritual que resolvia ´história da humanidade no sentido religioso e
místico da palavra, ele fala do “desejo amoroso do mal”. O mal é sempre
percepcionado como o negativo absoluto. A mais terrível das seduções é essa
sedução, por aquilo que nos perde, que nos pode perder. Era preciso um místico
para inventar uma coisa destas. Mas eu penso que a maioria de nós, da
humanidade, vive fascinada por isso, por aquilo através do qual ele experimenta
a sua liberdade.
A liberdade é uma aprendizagem?
Saramago escreveu
um livro extraordinário sobre o Caim, que é o herói do mal por excelência. Mas
é herói do mal por ter sido privado daquela parte da sua disposição que era o
bem. Porque, segundo o relato bíblico, deus não olhou para ele com a
complacência com que olhava para Abel. E esta é a história da humanidade
inteira, é esta, na ordem mais profunda que é a ordem dos afectos, dos
sentimentos, do poder, da liberdade – da nossa própria liberdade. Sabemos que é
assim que as coisas se passam na vida.
Nesse sentido,
Caim é mais livre do que Abel, porque tem de construir-se?
Exactamente, ele
é que é o herói da liberdade. E daí aquela espécie de terrível vingança que ele
exerce sobre os privilegiados do bem. E toda a história da humanidade não é se
não isso.
in “Egoísta” Abril de 2014
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