COMENTÁRIO
O Brasil desceu à terra
TERESA DE SOUSA
09/07/2014 / PÚBLICO
A contestação
que, há um ano, ocupou as ruas das grandes cidades brasileiras contra a os
gastos astronómicos da Copa foi um sinal de progresso, que resultou da
consolidação da economia e da melhoria das condições de vida das camadas mais
pobres da população.
Lula gabou-se de
ter tirado 40 milhões de brasileiros da pobreza para os incluir numa classe
média ascendente. Dilma lidou bem com a contestação, considerando-a um sinal
positivo. As obras não concluídas e os orçamentos que duplicaram acabaram por
ser esquecidos quando a Copa começou e se verificou que as coisas iam, afinal,
correr bem do ponto de vista logístico. Dilma acreditou que poderia tirar
partido dos acontecimentos. Foi veiada nos estádios, mas isso é o que acontece
nas democracias. O apoio à sua reeleição subiu de 34 para 38% desde que os
jogos começaram. Ninguém se arrisca a antecipar os resultados das próximas
sondagens, depois desta humilhação brutal e imprevisível. Mas, justamente
porque o Brasil já não é “a pátria com chuteiras”, os analistas inclinam-se
para que não venha a ter influência política significativa nas presidenciais de
Outubro.
Pode, no entanto,
ter o efeito benéfico de levantar o véu sobre algumas coisas que estão a correr
mal ao Brasil, não apenas no mundo do futebol mas também da economia. Lula
convenceu os brasileiros de que estavam prestes a chegar ao “primeiro mundo”. O
seu êxito internacional e a admiração que suscitou fizeram-no acreditar que
podia dispensar o mundo desenvolvido e concentrar-se em contrariar a sua
hegemonia. A economia portou-se bem. A conquista da Copa e dos Jogos Olímpicos
vinham confirmar a ideia de que o Brasil tinha o mundo a seus pés. Os
brasileiros acreditaram. Só com Dilma perceberam que havia uma grande
diferença: a “potência emergente” de que toda a gente gosta não consegue
aproximar-se de alguns critérios fundamentais para ser um país desenvolvido. Na
saúde, na educação, nos serviços públicos. “Primeiro mundo” também significa
isso. E isso exige crescimento suficiente para manter a expectativa de
prosperidade de uma nova classe média mais exigente.
Ora, é isso que
não está a acontecer. Na véspera do fatídico jogo entre o Brasil e a Alemanha,
as agências de rating reviram em baixa o crescimento da economia brasileira
para este ano. Segundo a Fitch, será de 1,5 por cento; segundo a Moody’s de
apenas 1,3 por cento. Muito pouco para um BRIC e um sinal de que a economia
brasileira tem de começar rapidamente a resolver os “gargalos” que travam o
crescimento e que vão desde uma burocracia pesada e ineficaz a um sistema
fiscal pouco atractivo, passando pelo quase colapso das infra-estruturas de
transporte. Essas reformas estão por fazer. Lula não desmereceu da confiança
dos investidores internacionais na sua política económica. Dilma tem, pelo
contrário, uma visão intervencionista do Estado que está a produzir maus
resultados. Ninguém fala em regresso ao passado e os analistas convergem na
ideia de que o Brasil já passou o Rubicão. A sua economia assenta nas
necessidades mundiais das suas “commodities”, do agro-industrial ao petróleo
passando pelo aço. A questão é saber como tornar outros sectores competitivos,
garantindo um crescimento sustentado. E resolver o maior desafio à sua
democracia: como reduzir o tamanho das desigualdades que, ainda hoje, fazem do
Brasil um país profundamente injusto.
Com Lula, o
grande sedutor, o Brasil cometeu um erro que um dia terá de corrigir. Acreditou
que a crise financeira iria acelerar o declínio ocidental, em benefício das
economias emergentes. A economia americana cresce hoje mais do que a
brasileira. O Brasil acreditou que podia bater o pé ao Ocidente, bloqueando as
negociações de Doha. Hoje, já percebeu o erro. Os EUA negoceiam tratados de
comércio livre com o Pacífico e os aliados transatlânticos. Os países
sul-americanos virados para o Pacífico criaram uma aliança para não perderam
esta oportunidade asiática. O Brasil ficou a falar sozinho, sem conseguir
sequer manter o Mercosul unido para negociar com a União Europeia. Dilma tinha
previsto concluir o êxito da Copa com uma cimeira dos BRICS, no dia 15 em
Fortaleza e onde se promete, finalmente, aprovar o Novo Banco de
Desenvolvimento e o novo fundo de reservas cambiais para desafiar o Banco
Mundial e o FMI. O problema é que cada BRIC tem os seus interesses e, em muitos
aspectos, contraditórios. A Rússia quer quebrar o isolamento criado pela crise
ucraniana. A China quer alargar a sua influência económica mas o seu
interlocutor principal são os EUA. O Brasil vai insistindo em que não é sua
intenção “confrontar ou concorrer com instâncias multilaterais já existentes”,
diz o embaixador Graça Lima. “É apenas um mecanismo de consulta entre os seus
cinco países para que possam contribuir para uma nova ordem económica e
política” Que ordem é essa, ninguém diz qual é.
Pode ser que esta
derrota ajude o Brasil a descer à terra, abandonando o seu comportamento
arrogante. O seu soft-power continua intacto. Quem é que não queria que o
Brasil ganhasse?
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