terça-feira, 27 de abril de 2021

O colapso que não aconteceu

 


ANÁLISE

O colapso que não aconteceu

 

O debate que ocorre esta terça-feira no Parlamento Europeu servirá para avaliar se, para os europeus da União, também já chegou o momento de deixar para trás a acrimónia e um certo espírito revanchista visível em Bruxelas e em algumas capitais, que (quase) desejava o pior ao antigo parceiro.

 


Teresa de Sousa

26 de Abril de 2021, 21:37

https://www.publico.pt/2021/04/26/mundo/noticia/colapso-nao-aconteceu-1960095

 

1. “O colapso do comércio entre o Reino Unido e a União Europeia depois do primeiro dia de Janeiro foi amplamente anunciado”, escreve Wolfgang Munchau no site Eurointelligence, que dirige. O que não foi amplamente anunciado, continua o colunista, é que as exportações do Reino Unido já recuperaram quase totalmente. Cresceram em Fevereiro 46,6 por cento, depois de terem caiado 42 por cento em Janeiro. Munchau também refere as previsões económicas mais recentes do FMI, que revelam um efeito macroeconómico desprezível do “Brexit” nos primeiros 10 anos depois do referendo de 2016. Em 2020, a queda da economia britânica foi mais acentuada que a da zona euro, mas será compensada já este ano com uma previsão de crescimento maior. Claro que os indicadores mensais são voláteis e serão precisos alguns meses para avaliar melhor o efeito da saída no comércio de bens. Numa perspectiva de mais longo prazo, a economia britânica, a quinta maior do mundo, pagará um preço por deixar de poder operar com a mesma liberdade no Mercado Único ou, eventualmente, na capacidade de atracção do investimento. Mas as previsões mais negativas falharam.

 

Nada disto tem a ver directamente com as opiniões políticas sobre a saída do Reino Unido ou com as perdas inevitáveis sofridas de ambos os lados da Mancha, a muitos outros níveis que não o económico. É apenas uma constatação de facto, que nega as previsões catastróficas feitas depois do referendo e depois do Acordo de Comércio e Cooperação que vai regular as relações futuras entre a União e o Reino Unido.

 

2. Na política externa, a convergência de posições entre Bruxelas e Londres tem-se mantido constante. A relação com os Estados Unidos, que muitos analistas previam que seria fortemente afectada pelo abandono da União, não sofreu qualquer deterioração visível. É verdade que ainda falta um acordo de livre comércio com os EUA, que vai ser negociado num ambiente mais proteccionista e que esbarra na disparidade das normas respeitante à segurança alimentar, mais exigentes deste lado do Atlântico. Como é verdade que Joe Biden se preocupa com as consequências negativas do “Brexit” na Irlanda do Norte - os EUA estiveram directamente implicados nas negociações dos acordos de paz de Sexta-feira Santa. Mas o Presidente americano ainda não deu qualquer sinal de desvalorização da velha “special relationship”. Aliás, a sua primeira visita presencial à Europa começará em Glasgow, para a cimeira do clima, e em Londres, para a do G7, partindo depois para as cimeiras da NATO e com a União Europeia, mesmo que a precedência se deva aos respectivos calendários.

 

Londres já negociou um acordo de comércio livre com o Japão e esta a finalizar mais dois com a Austrália e a Nova Zelândia, aliás ao mesmo tempo que a União Europeia. Faltam-lhe dois grandes parceiros – os EUA e a Índia.

 

Mas hoje os britânicos estão visivelmente mais reconciliados com a escolha que fizeram em 2016, embora haja um efeito colateral cuja extensão ainda é cedo para avaliar: a saída exacerbou o sentimento independentista da Escócia, cuja população votou maioritariamente a favor da permanência na União. Ou seja, como escrevem analistas de quase todos os quadrantes, à excepção dos mais nacionalistas, o risco de uma “Little England” existe, ameaçando a própria unidade do reino. “A união está hoje mais frágil do que em qualquer outra altura de que tenhamos memória”, escreve a Economist na sua penúltima edição. “As causas são muitas, mas o ‘Brexit’ é a mais importante.”

 

Falta dizer que, no espírito dos britânicos, pesa hoje o êxito indiscutível do processo de vacinação no seu país, sobretudo quando o comparam com as dificuldades europeias.

 

Numa palavra, depois de ter polarizado fortemente o Reino Unido durante anos a fio, a saída está a transformar-se progressivamente numa questão resolvida.

 

 

3. O debate que ocorre esta terça-feira no Parlamento Europeu servirá para avaliar se, para os europeus da União, também já chegou o momento de deixar para trás a acrimónia e um certo espírito revanchista visível em Bruxelas e em algumas capitais, que (quase) desejava o pior ao antigo parceiro, para que ficasse provado o elevado preço a pagar por qualquer país que tiver a ousadia de dizer à União: obrigada por tudo, mas não. A “guerra das vacinas” foi ainda uma lamentável manifestação desse sentimento.

 

É provável que, à medida que a Europa for acordando para os enormes desafios e dificuldades que tem pela frente para recuperar desta tremenda crise pandémica e para enfrentar um mundo cada vez mais dominado pela competição entre grandes potências, as vantagens da cooperação estreita com Londres tornar-se-ão cada vez mais evidentes. No fortalecimento da relação transatlântica, na necessidade de enfrentar em conjunto a crescente ameaça das potências autoritárias, na capacidade competitiva das suas economias. Mas, para isso, é preciso que haja vontade política de ambos os lados.

 

tp.ocilbup@asuos.ed.aseret

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