EDITORIAL
Papa, uniões gay e Igreja Católica
Francisco acabou de atravessar uma espécie de Rubicão no
seu papado. Já não é só acolher os gays, é defender a sua organização familiar
em moldes mais ou menos idênticos aos casamentos entre homem e mulher, que os
católicos encaram como um sacramento.
ANA SÁ LOPES
21 de Outubro de
2020, 20:16
https://www.publico.pt/2020/10/21/mundo/editorial/papa-unioes-gay-igreja-catolica-1936221
E o Papa lançou
ontem uma bomba: Francisco, o chefe da Igreja Católica que mais se tem
esforçado por acolher gays e famílias gay na congregação, defende a legalização
de uniões civis de homossexuais. As palavras do Papa, que vão expressamente
contra a posição actual da Igreja, aparecem num documentário apresentado ontem
em Roma que tem o seu nome – Francesco. Desta vez, o discurso de Francisco é
inequívoco e dificilmente abre espaço a que os serviços de imprensa do Vaticano
venham temperar a coisa a não ser para dizer o óbvio: o que o Papa disse não
corresponde à doutrina oficial da Igreja.
E é verdade que
não corresponde. Francisco esteve entre os “perdedores” no Sínodo de Outubro de
2014, quando os parágrafos do documento preparatório que defendiam uma maior
integração dos gays na Igreja Católica não obtiveram a maioria de dois terços
necessária à sua aprovação. Os bispos reunidos em Roma, na altura, não
aceitaram que ficasse escrito que os homossexuais tinham “qualidades a oferecer
à comunidade cristã”. Só foi aprovado que a discriminação contra gays “deve ser
evitada”.
Mas Francisco
nunca foi tão longe como nesta sua entrevista: “Os homossexuais têm direito a
viver em família”; “São criaturas de Deus e têm direito a uma família”; “O que temos
de criar é uma lei de união civil. Dessa forma, estarão legalmente protegidos”.
E, no documentário, diz ainda que já defendeu as uniões civis, provavelmente
quando se discutiu o casamento gay na Argentina, aprovado em 2010. Na época,
Bergoglio era cardeal de Buenos Aires e fez campanha contra a legalização do
casamento.
Francisco é o
chefe da Igreja Católica, mas não é a Igreja Católica – a prova disso foi a sua
derrota no Sínodo de há seis anos. Os mais cínicos, como o correspondente da
BBC em Roma, dirão que Francisco segue uma linha de fazer pronunciamentos que
agradam aos mais liberais, enquanto vai mantendo mais ou menos intacta a ordem
tradicional da Igreja Católica.
Contudo, as
coisas movem-se, mesmo numa instituição conservadora. Francisco acabou de
atravessar uma espécie de Rubicão no seu papado. Já não é só acolher os gays, é
defender a sua organização familiar em moldes mais ou menos idênticos aos
casamentos entre homem e mulher, que os católicos encaram como um sacramento.
Estamos a assistir a um corte epistemológico no Vaticano, contra as leis até
agora aprovadas pela congregação. Francisco abre o caminho para que a Igreja
Católica não se divorcie totalmente do mundo que quer doutrinar.
OPINIÃO
O princípio do fim da obsessão sexual na Igreja?
É hora de a Igreja deixar de olhar para as partes baixas
e voltar a colocar o seu olhar onde ele deve estar – lá bem em cima.
JOÃO MIGUEL
TAVARES
21 de Outubro de
2020, 22:53
https://www.publico.pt/2020/10/21/opiniao/opiniao/principio-fim-obsessao-sexual-igreja-1936225
Ao longo dos
últimos 60 anos, falar de Igreja Católica no espaço público foi sinónimo de
falar de sexo. Não havia outro assunto. Falava-se da Igreja porque ela proibia
a pílula e o preservativo. Falava-se da Igreja e da encíclica Humanae Vitae
(1968) porque ela dificultava o combate à sida em África. Falava-se da Igreja
para criticar a exclusão dos homossexuais. Falava-se da Igreja a propósito do
celibato dos padres. E depois, claro, veio o escândalo da pedofilia, e não se
falava de outra coisa.
Há mais de meio
século que tudo tem andado à volta do sexo e da sua repressão, o que é tanto
mais absurdo quanto o sexo está praticamente ausente da doutrina evangélica. Em
nenhum dos Evangelhos se fala directamente de celibato ou de homossexualidade,
a tolerância de Jesus para com prostitutas e adúlteras é avassaladora, e a
forma como a Igreja foi sustentando, ao longo dos anos, a sua doutrina nesse
campo, advém de uma mistura de tradição secular com a interpretação tortuosa de
versículos escolhidos a dedo.
A Igreja Católica
queixava-se de que o problema não era dela, mas sim dos meios de comunicação
social, que não davam atenção a mais nada. Desculpas. O problema era mesmo do
velho catecismo, que corporizava uma longa história de preconceito contra o
sexo, hipervalorizando aquilo que na Bíblia nunca passou de notas de rodapé.
Até que a brutalidade e a dimensão do escândalo da pedofilia, em conjunto com
as estratégias miseráveis de ocultação da verdade, colocaram a Igreja numa
posição insustentável.
Nesse sentido, a
notícia de hoje, de que o Papa Francisco afirmou num documentário que “os
homossexuais têm o direito de fazer parte de uma família” e que “ninguém deve
ser deixado de fora ou sentir-se arrasado por causa disso”, é algo
simultaneamente óbvio e digno de ser celebrado. Finalmente as coisas são ditas
com esta clareza, para mais com Francisco a defender ainda “uma lei de união
civil” para que os casais homossexuais estejam “legalmente seguros”.
Isto é mais do
que reafirmar a separação entre o que é de César e o que é de Deus – é declarar
as leis de César essenciais para que se faça justiça neste mundo, e que o
casamento civil entre homossexuais não é apenas um mal menor, mas antes um
instrumento virtuoso e necessário. Para quem conhece tantos homossexuais
escorraçados da Igreja e obrigados a procurar formas semi-subterrâneas de
continuar ao seu serviço, é caso para dizer: aleluia!
Aquilo que o Papa
Francisco parece ter percebido (ainda que alguns possam continuar sem perceber)
é que a Igreja pode ser conservadora, mas não pode ser retrógrada. Quando o olhar
da sociedade em relação aos homossexuais é mais cristão do que o olhar da
Igreja que se diz de Cristo, há aí um problema grave, de que Jorge Bergoglio em
boa hora se apercebeu. E não se trata aqui de ser “moderninho” ou “popular” –
trata-se apenas de seguir a doutrina de acolhimento dos excluídos.
Aos poucos,
desejo muito que as consequências desta postura de Francisco não se fiquem pela
questão da homossexualidade, e sirvam para superar a tal obsessão pelo sexo que
domina a Igreja há décadas, desviando atenções da mensagem central que ela tem
para oferecer a quem é católico, ateu ou qualquer coisa lá no meio: o mundo não
se esgota na sua superfície e há uma dimensão espiritual extraordinária à nossa
disposição. É hora de a Igreja deixar de olhar para as partes baixas e voltar a
colocar o seu olhar onde ele deve estar – lá bem em cima.
Jornalista
Sem comentários:
Enviar um comentário