EDITORIAL
A “clarificação” da instabilidade política
Por muitas artimanhas que o PS tenha engendrado nos
últimos anos, por muito que houvesse (e houve) falsas promessas, este era o
momento em que os deputados do Bloco se deviam comportar como estadistas e não
como líderes de uma associação de estudantes.
MANUEL CARVALHO
27 de Outubro de
2020, 21:35
https://www.publico.pt/2020/10/27/politica/editorial/clarificacao-instabilidade-politica-1936961
Logo a abrir o
debate desta terça-feira sobre o Orçamento do Estado, o primeiro-ministro falou
numa “votação da clarificação política”. Fez-se de facto luz sobre o momento
político que o país vive e o que se iluminou está longe de ser auspicioso. Como
se sabia desde que o Bloco anunciou o chumbo ao Orçamento na generalidade, o
equilíbrio precário que sustenta o Governo de António Costa acabou. Como se
suspeitava, o Governo perdeu a capacidade de manobrar à esquerda e, sem essa
força, revela menos autoridade e capacidade de liderança. E, para sublinhar toda
esta situação de fragilidade, o Orçamento vai passar nesta fase pelo milagre da
abstenção de duas deputadas não inscritas. Se houve uma clarificação, foi uma
clarificação do terreno minado que a instabilidade política prenuncia. No
momento mais dramático da vida do país em décadas, o Parlamento pareceu uma
associação recreativa.
Mas, se a imagem
que os deputados estão a dar colectivamente raia a arrogância e a
irresponsabilidade, há uns mais irresponsáveis do que outros. O Bloco de
Esquerda é neste episódio campeão. O partido que andou anos a aprovar
orçamentos do PS depois de tentar mudar a legislação laboral sem conseguir,
depois de tentar travar financiamentos ao Novo Banco sem conseguir, decide
partir a corda num momento crítico por não lhe darem o que nunca obteve. Se,
apesar de todas as hipocrisias, tacticismos cínicos, operações de propaganda e
acordos só em papel o Bloco aprovou cinco orçamentos à esquerda, ninguém
consegue entender como é que vai chumbar o de 2021. Por muitas artimanhas que o
PS tenha engendrado nos últimos anos, por muito que houvesse (e houve) falsas
promessas, este era o momento em que os deputados do Bloco se deviam comportar
como estadistas e não como líderes de uma associação de estudantes.
A clarificação
destes dias não está por isso exposta no oportunismo predador do PSD, que
esperou o momento mais frágil da sua presa para atacar, não está nem nos votos
da direita, nem no calculismo inteligente e frio do PCP, nem sequer no
esgotamento dos malabarismos negociais do primeiro-ministro: está na
frivolidade do Bloco. Em poucas semanas, o melhor que a “geringonça” tinha para
oferecer ao país e à Europa – o sentido de responsabilidade, o espírito de
compromisso, o objectivo da estabilidade – desfez-se. O Bloco fragilizou-se ao
querer impor a sua ideologia minoritária ao país e, por arrasto, acentuou a
fragilidade do Governo. Um ciclo político está a chegar ao fim e tudo fica mais
incerto, instável e inquietante – no momento em que o país mais precisava de
fôlego para olhar para lá do que aí vem.
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