OPINIÃO
O que espera o Governo para enterrar os vistos gold?
O Governo confessou em janeiro que nunca avaliou o
impacto dos vistos gold. Emprego não criaram. Será que a pouca receita fiscal
compensa os riscos para a segurança interna e a perda da decência que nos
resta?
SUSANA PERALTA
23 de Outubro de
2020, 0:00
https://www.publico.pt/2020/10/23/opiniao/opiniao/espera-governo-enterrar-vistos-gold-1936372
Escrevi aqui no
início de fevereiro sobre as mudanças anunciadas na altura para os vistos gold.
Como até agora não aconteceu nada, o primeiro-ministro veio dizer que a
legislação estará pronta até ao final do ano.
A Lei 2/2020, de
31 de março, é o Orçamento do Estado que, quando foi publicado em Diário da
República, já estava condenado a não ser cumprido porque a pandemia entretanto
veio trocar-lhe as voltas. O seu artigo 187.º é uma “Autorização legislativa no
âmbito do regime das autorizações de residência para investimento”. Autorização
de residência para investimento é o nome fofo para vistos gold. A minha leitora
pergunta: “mas por que raio um tema não orçamental aparece na lei do OE?” Esta
porta aberta foi deixada na lei para agradar aos parceiros de esquerda que
viabilizaram o OE. A mesma razão pela qual renasce agora, precisamente quando o
Governo precisa de aprovar o novo OE. Era bom termos um orçamento que seja isso
mesmo – uma previsão de receitas e uma autorização do Parlamento ao Governo
para as despesas necessárias à gestão do país. Mas não é por aí que quero ir
hoje.
A autorização
legislativa vai no sentido do anúncio feito no início do ano pelo PS: favorecer
a promoção do investimento nas regiões de baixa densidade, na requalificação
urbana, no património cultural, nas atividades de alto valor ambiental ou
social, no investimento produtivo e na criação de emprego. Na prática, envolve
restringir as zonas elegíveis às Comunidades Intermunicipais do Interior e das
ilhas e aumentar o valor mínimo do investimento e dos postos de trabalho a
criar. Como escrevi em fevereiro, são alterações cosméticas.
Os verdadeiros
problemas vêm listados no relatório da Comissão Europeia “Investor Citizenship
and Residence Schemes in the EU”, de janeiro de 2019. O esquema é pouco
exigente a vários níveis. O investidor mantém o direito de residência desde que
fique sete dias por ano no território nacional (recordo que o critério para
residente fiscal são 180 dias). Pior é a falta de fiscalização acerca do
investidor e do seu dinheiro. Basta um certificado de registo criminal do país
onde viveu no último ano. Como é bom de ver, isto não nos livra de suspeitos de
crimes graves, porque suspeitas não aparecem no registo criminal. Também não
nos livra de condenados do crime organizado ou de colarinho branco que
encontrem um país que lhes ofereça residência durante um ano. Acresce que nos
submetemos voluntariamente à certificação de países pouco democráticos e pouco
transparentes, onde o sistema judicial é conhecido pela sua simpatia para com
os poderosos. Este problema podia ser mitigado se as autoridades tivessem
especial cuidado a verificar de onde vem o dinheiro. Só que não é feita nenhuma
diligência quanto à origem dos montantes investidos. Não sabemos se o dinheiro
vem de atividades criminosas e abrimos a porta a que Portugal seja utilizado
como plataforma de lavagem de dinheiro. Prova deste laxismo é que até agora
apenas 5% dos pedidos foram recusados.
Não faltou tempo
para tratar disto. O esquema foi criado em 2012 e logo em 2014 o Parlamento
Europeu meteu o dedo na ferida. A Transparência e Integridade não se tem cansado
de denunciar problemas. Em 2019 vieram as recomendações da Comissão. O Governo
só não vê porque não quer. Mas convém estar atento. É que esta semana a
Comissão abriu um processo por infração a Chipre e Malta, que são mais
generosos porque vendem passaportes em vez de vistos. Mas da residência à
cidadania em Portugal vão cinco anos. Também vendemos cidadania, só que a
prazo. Uma das razões que levou a CE a agir foram as revelações da Al Jazeera
no documentário Cyprus Papers, que mostra criminosos a tornarem-se cipriotas...
desde que paguem o preço certo. Algo de que não estamos livres com as nossas
regras frouxas.
Marcelo Rebelo de
Sousa não tem opinião conhecida sobre vistos gold. Já Ana Gomes trabalhou
ativamente enquanto deputada ao Parlamento Europeu para colocar este tema no
centro das preocupações das instituições europeias. Se o que falta ao Governo é
um empurrão presidencial, as diferenças falam por si
Não admira que os
promotores imobiliários estejam descontentes com a medida, tendo-a apelidado de
“errada” e “inqualificável”. Em declarações ao Expresso, sublinharam os
milhares de milhões de euros que a medida rendeu. Mas rendeu a quem? O Governo
confessou em janeiro que nunca avaliou o impacto dos vistos gold. Emprego não criaram.
Será que a pouca receita fiscal compensa os riscos para a segurança interna e a
perda da decência que nos resta? E o dinheiro dos contribuintes a entrar quando
foge o dinheiro sujo – ver BES e Efacec –, como lembrou Susana Coroado ao
Expresso?
As eleições
presidenciais estão a chegar e com o país suspenso na pandemia é fácil esquecer
que há vida para além dela. Marcelo Rebelo de Sousa não tem opinião conhecida
sobre vistos gold, para além de uma alusão ao “risco” quando promulgou uma
alteração legislativa há três anos. André Ventura acumulou as funções de
deputado com as de consultor da Finpartner, que nos diz na sua página da
internet “We are also specialized in the portuguese Non-Habitual Residence
Regime and in the Golden Visa Regime and so we’re accustomed to monitoring this
type of customers”. Já Ana Gomes trabalhou ativamente enquanto deputada ao
Parlamento Europeu para colocar este tema no centro das preocupações das
instituições europeias, um esforço que culminou com as recomendações da Comissão
em 2019 e esta semana resultou no processo contra Chipre e Malta. Se o que
falta ao Governo é um empurrão presidencial, as diferenças falam por si.
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