quinta-feira, 22 de outubro de 2020

O que espera o Governo para enterrar os vistos gold?

 



OPINIÃO

O que espera o Governo para enterrar os vistos gold?

 

O Governo confessou em janeiro que nunca avaliou o impacto dos vistos gold. Emprego não criaram. Será que a pouca receita fiscal compensa os riscos para a segurança interna e a perda da decência que nos resta?

 

SUSANA PERALTA

23 de Outubro de 2020, 0:00

https://www.publico.pt/2020/10/23/opiniao/opiniao/espera-governo-enterrar-vistos-gold-1936372

 

Escrevi aqui no início de fevereiro sobre as mudanças anunciadas na altura para os vistos gold. Como até agora não aconteceu nada, o primeiro-ministro veio dizer que a legislação estará pronta até ao final do ano.

 

A Lei 2/2020, de 31 de março, é o Orçamento do Estado que, quando foi publicado em Diário da República, já estava condenado a não ser cumprido porque a pandemia entretanto veio trocar-lhe as voltas. O seu artigo 187.º é uma “Autorização legislativa no âmbito do regime das autorizações de residência para investimento”. Autorização de residência para investimento é o nome fofo para vistos gold. A minha leitora pergunta: “mas por que raio um tema não orçamental aparece na lei do OE?” Esta porta aberta foi deixada na lei para agradar aos parceiros de esquerda que viabilizaram o OE. A mesma razão pela qual renasce agora, precisamente quando o Governo precisa de aprovar o novo OE. Era bom termos um orçamento que seja isso mesmo – uma previsão de receitas e uma autorização do Parlamento ao Governo para as despesas necessárias à gestão do país. Mas não é por aí que quero ir hoje.

 

A autorização legislativa vai no sentido do anúncio feito no início do ano pelo PS: favorecer a promoção do investimento nas regiões de baixa densidade, na requalificação urbana, no património cultural, nas atividades de alto valor ambiental ou social, no investimento produtivo e na criação de emprego. Na prática, envolve restringir as zonas elegíveis às Comunidades Intermunicipais do Interior e das ilhas e aumentar o valor mínimo do investimento e dos postos de trabalho a criar. Como escrevi em fevereiro, são alterações cosméticas.

 

Os verdadeiros problemas vêm listados no relatório da Comissão Europeia “Investor Citizenship and Residence Schemes in the EU”, de janeiro de 2019. O esquema é pouco exigente a vários níveis. O investidor mantém o direito de residência desde que fique sete dias por ano no território nacional (recordo que o critério para residente fiscal são 180 dias). Pior é a falta de fiscalização acerca do investidor e do seu dinheiro. Basta um certificado de registo criminal do país onde viveu no último ano. Como é bom de ver, isto não nos livra de suspeitos de crimes graves, porque suspeitas não aparecem no registo criminal. Também não nos livra de condenados do crime organizado ou de colarinho branco que encontrem um país que lhes ofereça residência durante um ano. Acresce que nos submetemos voluntariamente à certificação de países pouco democráticos e pouco transparentes, onde o sistema judicial é conhecido pela sua simpatia para com os poderosos. Este problema podia ser mitigado se as autoridades tivessem especial cuidado a verificar de onde vem o dinheiro. Só que não é feita nenhuma diligência quanto à origem dos montantes investidos. Não sabemos se o dinheiro vem de atividades criminosas e abrimos a porta a que Portugal seja utilizado como plataforma de lavagem de dinheiro. Prova deste laxismo é que até agora apenas 5% dos pedidos foram recusados.

 

Não faltou tempo para tratar disto. O esquema foi criado em 2012 e logo em 2014 o Parlamento Europeu meteu o dedo na ferida. A Transparência e Integridade não se tem cansado de denunciar problemas. Em 2019 vieram as recomendações da Comissão. O Governo só não vê porque não quer. Mas convém estar atento. É que esta semana a Comissão abriu um processo por infração a Chipre e Malta, que são mais generosos porque vendem passaportes em vez de vistos. Mas da residência à cidadania em Portugal vão cinco anos. Também vendemos cidadania, só que a prazo. Uma das razões que levou a CE a agir foram as revelações da Al Jazeera no documentário Cyprus Papers, que mostra criminosos a tornarem-se cipriotas... desde que paguem o preço certo. Algo de que não estamos livres com as nossas regras frouxas.

 

 Para que servem os vistos gold? Segundo a informação disponível no site do SEF, de outubro de 2012 a setembro de 2020 foram concedidos 9200 vistos. Para criar emprego houve 17; o SEF não reporta o número de empregos criados, pelo que concluo que não deve ser coisa que se veja. Escassos 529 vistos foram dados por transferência de capital, num total de pouco mais de 500 milhões de euros. A esmagadora maioria – 8654 – foram concedidos por compra de imóveis, representando um investimento imobiliário total de quase cinco mil milhões.

 

Marcelo Rebelo de Sousa não tem opinião conhecida sobre vistos gold. Já Ana Gomes trabalhou ativamente enquanto deputada ao Parlamento Europeu para colocar este tema no centro das preocupações das instituições europeias. Se o que falta ao Governo é um empurrão presidencial, as diferenças falam por si


Não admira que os promotores imobiliários estejam descontentes com a medida, tendo-a apelidado de “errada” e “inqualificável”. Em declarações ao Expresso, sublinharam os milhares de milhões de euros que a medida rendeu. Mas rendeu a quem? O Governo confessou em janeiro que nunca avaliou o impacto dos vistos gold. Emprego não criaram. Será que a pouca receita fiscal compensa os riscos para a segurança interna e a perda da decência que nos resta? E o dinheiro dos contribuintes a entrar quando foge o dinheiro sujo – ver BES e Efacec –, como lembrou Susana Coroado ao Expresso?

 

As eleições presidenciais estão a chegar e com o país suspenso na pandemia é fácil esquecer que há vida para além dela. Marcelo Rebelo de Sousa não tem opinião conhecida sobre vistos gold, para além de uma alusão ao “risco” quando promulgou uma alteração legislativa há três anos. André Ventura acumulou as funções de deputado com as de consultor da Finpartner, que nos diz na sua página da internet “We are also specialized in the portuguese Non-Habitual Residence Regime and in the Golden Visa Regime and so we’re accustomed to monitoring this type of customers”. Já Ana Gomes trabalhou ativamente enquanto deputada ao Parlamento Europeu para colocar este tema no centro das preocupações das instituições europeias, um esforço que culminou com as recomendações da Comissão em 2019 e esta semana resultou no processo contra Chipre e Malta. Se o que falta ao Governo é um empurrão presidencial, as diferenças falam por si.

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