OPINIÃO
Quando as palavras não servem para nada
Foi a reciclagem do CDS em PP e da extrema-esquerda em
Bloco de Esquerda que levaram ao actual uso corrente da dicotomia
“esquerda-direita”.
JOSÉ PACHECO
PEREIRA
24 de Outubro de
2020, 0:00
https://www.publico.pt/2020/10/24/opiniao/opiniao/palavras-nao-servem-nada-1936529
Há muito tempo
que penso que as classificações assentes na dicotomia esquerda-direita não
servem para grande coisa e, bem pelo contrário, têm um efeito contraproducente.
Mas o seu peso na linguagem política é hoje tão forte que muitas vezes concedo
ao seu uso, por economia de explicações, mas sempre contra vontade.
O próprio facto
de o seu uso ter altos e baixos mostra até que ponto não se trata de
classificações unívocas, mas de modas e ciclos semânticos que dependem do
léxico corrente que, por sua vez, remetem para o modo como se desenvolve a
conflitualidade política e o seu contexto. No pós-25 de Abril, mais do que a
dicotomia esquerda-direita usavam-se classificações como “socialista”,
“comunista”, social-democrata”, “fascista”, “democrata-cristão”,
“progressista”, reaccionário”, “revolucionário” (“conservador” e “liberal” não
eram muito comuns) quer como autoclassificações, quer como invectivas a
adversários. Foi a reciclagem do CDS em PP e da extrema-esquerda em Bloco de
Esquerda que levaram ao actual uso corrente da dicotomia esquerda-direita, ou
seja, Paulo Portas e Francisco Louçã. Em ambos os casos, houve um elemento de
ocultação nesse processo, em particular no caso do abandono do maoísmo e do
trotsquismo por parte dos grupos fundadores do Bloco, a favor da mais cómoda e
vaga e politicamente correcta designação de “esquerda”.
Mas hoje o uso de
“esquerda-direita” é um dos aspectos do geral empobrecimento do debate
político, da sua dependência crescente de palavras gastas e de um simplismo
analítico. Esquerda-direita é mais uma nomeação, uma invectiva, um enunciado
simplista do que uma análise e, por isso, é mais fruto da preguiça do que do
rigor. Em tempos de radicalismo e tribalismo, estas palavras condicionam de tal
maneira o debate que ficamos presos a elas, contribuindo assim para erros políticos.
Veja-se o modo
como se classifica o actual Governo, e por arrastamento o PS. É possível passar
horas a ouvir numa reunião do PSD os intervenientes a classificar o Governo
como sendo de “extrema-esquerda”. Não se trata sequer de dizer que o Governo,
pela sua política de alianças, colabora com a extrema-esquerda, ou concede à
extrema-esquerda, mas que “é” de extrema-esquerda. É uma classificação errada e
todas as políticas que derivam dessa classificação são-no igualmente. Veja-se,
do outro lado, o que o PCP diz do mesmo Governo, classificando-o como sendo de
direita ou concedendo à direita. É igualmente errado, mas num certo sentido é
menos errado.
Veja-se, na
discussão do projecto do Orçamento, o que leva a direita (cá estamos presos nas
palavras) a dizer que é de esquerda o Governo. Há duas razões principais: uma,
que diz que o Orçamento não dá o papel central na recuperação da economia às
empresas; e a outra, porque distribui “benesses” pelos funcionários públicos e
por certos grupos sociais que seriam a “clientela” do PCP e do BE. Deixando de
lado o aspecto interpretativo do Orçamento, nem uma nem outra coisa são
especialmente de esquerda, a não ser quando se ligam uma à outra; quando se diz
que, por exemplo, o aumento do salário mínimo é uma opção em detrimento dos
apoios às empresas, ou quando se diz que há uma contradição entre os apoios ao
Estado (a que agora se chama “socialismo”, pobre palavra…) e às empresas. Ora
alguns dos países cuja intervenção estatal é maciça são também aqueles em que o
mesmo Estado disponibiliza recursos gigantescos às empresas e as duas coisas
estão interligadas, como, por exemplo, a Turquia e os EUA. Não se estranhe
incluir os EUA, cujo Estado gasta biliões para apoiar o sector privado por via
dos gastos militares, ou agora na indústria farmacêutica. E alguém pensa que a
“bazuca” europeia não vai disparar para o privado? E desde quando aumentar o
salário mínimo, ou as prestações sociais, como fizeram Marcelo Caetano, Sá
Carneiro, Soares, Guterres, Cavaco, Sócrates, é especialmente de esquerda? De
facto, como classificação a dicotomia esquerda-direita serve-nos de pouco.
O resultado é que as classificações ajudam ao radicalismo
no debate político e dão asneira. E dificultam o caso a caso, mais útil numa
negociação, manietando as partes ao medo de estar a comprometer princípios
quando estão apenas a comprometer classificações, de um modo geral erradas
E ainda menos nos
serve quando vamos ao PCP como classificador, embora o PCP tenha mais razão em
dizer que o Governo é de direita do que o PSD, quando o classifica de
extrema-esquerda. (O Bloco de Esquerda diz algo de semelhante mas de forma
menos clara que o PCP.) Na verdade, as chamadas “linhas vermelhas” do Governo
são todas na fronteira da economia capitalista; o resto é apenas uma questão de
repartição de recursos, ou de estatismo, que não é de esquerda nem de direita.
Refiro-me à recusa de incluir legislação sobre despedimentos que corresponda ao
slogan do cartaz do Bloco “Quem tem lucros não pode despedir” e a tudo o que
diz respeito ao Novo Banco, mesmo que de forma ambígua. Aí o Governo pára na
propriedade e nos mecanismo da economia capitalista e ao colocar aqui as
“linhas vermelhas” (que não coloca noutros sítios) mostra aquilo a que o PCP
chama “posição de classe”, que justifica a classificação de direita.
Confuso, não é?
É, confuso e inútil. Teria mais sentido analisar, medida a medida, o grau e
veemência da recusa de negociação, onde há “abertura negocial” ou não, em vez
de uma classificação geral que acaba por dizer mais sobre quem classifica do
que sobre o que é classificado. Por exemplo, quando no PSD se diz que o
Orçamento é de extrema-esquerda, está-se a deslocar quem classifica muito para
a direita, e no caso contrário, no PCP, muito para a esquerda.
O resultado é que
as classificações ajudam ao radicalismo no debate político e dão asneira. E
dificultam o caso a caso, mais útil numa negociação, manietando as partes no
medo de estar a comprometer princípios, quando estão apenas a comprometer
classificações, de um modo geral erradas.
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