quarta-feira, 2 de setembro de 2020

Advogada condenada a dez anos de cadeia por burlas com “vistos gold”

 



JUSTIÇA

Advogada condenada a dez anos de cadeia por burlas com “vistos gold”

 

Maria Antónia Cameira, que não estava presente na leitura da sentença, lesou pelo menos dez pessoas em 4,6 milhões de euros.

 

Ana Henriques

Ana Henriques 2 de Setembro de 2020, 16:11

https://www.publico.pt/2020/09/02/sociedade/noticia/advogada-condenada-dez-anos-cadeia-burlas-vistos-gold-1930101

 

Até há meia dúzia de anos, gozava de uma reputação invejável. Além de dirigir o ramo português da União Internacional dos Advogados, tinha montado escritório no topo de uma das torres das Amoreiras, tinha representação em vários países e uma carteira de clientes que, apesar de pecar por escassa, representava uma área de negócio florescente: os investimentos imobiliários de cidadãos estrangeiros para aquisição de “vistos gold”.

 

O currículo que Maria Antónia Cameira ainda mantém online diz que, além de ter “leccionado durante vários anos na Faculdade de Direito de Lisboa”, se especializou na área de fusões e aquisições. Mas nem tudo o que reluz é ouro: depois de ter burlado pelo menos uma dezena de estrangeiros requerentes de “vistos gold”, apropriando-se da maior parte do dinheiro que lhe entregavam para a aquisição de imóveis em Portugal, a outrora prestigiada advogada foi esta quarta-feira condenada em Lisboa a uma pena de dez anos de cadeia.

 

Para trás fica um desempenho digno dos melhores actores. Diagnosticada clinicamente como padecendo de doença bipolar e com uma personalidade narcisista, Maria Antónia Cameira construiu uma imagem de alto profissionalismo que combinava na perfeição com os hotéis de luxo onde se hospedava quando viajava para fora do país para angariar clientela. Um cenário que inspirava segurança àqueles que, entre 2014 e meados de 2017, altura em que foi detida, lhe entregaram centenas de milhares de euros para a advogada lhes pagar as casas que queriam comprar em território nacional, por forma a obterem autorização permanente de residência para si a para as respectivas famílias.

 

A arguida chegou a convencer algumas das suas vítimas de que tinham, efectivamente, conseguido os “vistos dourados” e já eram felizes proprietários do imóvel que haviam escolhido – quando, afinal, o visto lhes fora recusado, porque a advogada gastara as suas poupanças, em vez de as aplicar. Por vezes ainda entregava aos vendedores das casas algum dinheiro, mas a técnica de esconder a burla do cliente anterior com o dinheiro do cliente seguinte acabava sempre da mesma forma: com os estrangeiros – sobretudo cidadãos chineses e sul-africanos – sem visto nem imóvel, e com as respectivas contas bancárias bem mais magras. Quando vinham a Portugal tratar da papelada, Maria Antónia Cameira fazia questão de os fazer transportar em carros Mercedes topo de gama com motorista e de os levar aos melhores restaurantes.

 

O seu estilo de vida era tal que, quando não havia dinheiro a entrar dos clientes, a advogada – hoje com 62 anos — recorria ao pai para fazer face às inúmeras despesas que tinha, concluiu a Unidade Central de Combate à Corrupção da Polícia Judiciária, que investigou o caso. O progenitor acabou por ficar praticamente sem património. Na comunidade religiosa a que pertencia pregava a austeridade.

 

A advogada lesou pelo menos dez pessoas, num total de 4,6 milhões de euros. Mais tarde, entrou em acordo com uma delas para lhe devolver parte do dinheiro. Já as outras vítimas tiveram de arcar com os prejuízos – que, pelo menos num dos casos, correspondiam às poupanças de uma vida inteira. Julgada pela justiça britânica por crimes do mesmo género, fugiu para Portugal antes de ali ser condenada, à revelia, a seis anos de cadeia.

 

 

Considerada, nas peritagens psiquiátricas a que foi submetida, como responsável pelos seus actos, a arguida faltou à leitura da sentença. Segundo o seu advogado, João Nabais, fê-lo com a autorização dos juízes. O representante da advogada ainda não sabe se irá recorrer da condenação.

 

Maria Antónia Cameira terá não só de devolver aos lesados o dinheiro de que se apropriou mas também de lhes entregar uma indemnização por danos morais que totaliza mais de cem mil euros. Porque aquilo que lhes foi subtraído não foi só o dinheiro, mas também a possibilidade de se mudarem com as famílias para Portugal, disse a juíza que leu a decisão no Campus da Justiça, em Lisboa, recordando a “frieza atroz” com que continuava a ludibriar os clientes quando estes lhe pediam satisfações.

 

Quando foi interrogada pela primeira vez, depois de ter sido detida, a arguida começou por negar tudo, para mais tarde alijar responsabilidades nos funcionários do escritório das Amoreiras, que supostamente teriam movimentado as contas bancárias por onde passava o dinheiro sem que ela soubesse.

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