segunda-feira, 8 de junho de 2020

Seguranças tentam despejar ocupantes que criaram centro social em Lisboa






ARROIOS
Seguranças tentam despejar ocupantes que criaram centro social em Lisboa

Ocupantes chamaram a polícia para os proteger do que dizem ser um despejo ilegal. Pelo menos cinco pessoas ficaram feridas.

Mariana Oliveira, João Pedro Pincha e Cristiana Faria Moreira 8 de Junho de 2020, 12:21 actualizado a 8 de Junho de 2020, 22:31

Vários seguranças privados, esta segunda-feira de madrugada, entraram pelo n. 9 do Largo de Santa Bárbara, em Arroios, Lisboa, para despejar um grupo de ocupantes que desde meados de Maio transformou aquele espaço num centro de apoio solidário a sem-abrigo. Os proprietários alegam que o edifício está sem condições de segurança para ser usado e dizem já ter comunicado isso às autoridades competentes.

Trata-se de dois edifícios, em que um serve para as pessoas dormirem, e outro de cantina, centro social, entre outras valências. Por volta das 18h30, cerca de 20 pessoas permaneciam ainda dentro do edifício que serve as várias valências, enquanto que as três pessoas que resistiram à desocupação e os cerca de dez seguranças privados contratados pelos proprietários permanecem no outro prédio. Às 20h50, os 20 ocupantes começaram a sair do edifício um a um, pacificamente, sendo identificados pelas autoridades. O prédio, já vazio, começou a ser entaipado.

Na rua, em manifestação de apoio, estão cerca de 100 pessoas, viu o PÚBLICO no local. Em frente ao prédio está formado um cordão policial. Foi lido um comunicado em que os ocupantes garantem só sair com uma ordem de despejo emitida por um tribunal. Segundo disse o porta-voz do grupo, a ocupação foi comunicada à Procuradoria-Geral da República, à Câmara de Lisboa e à PSP.

Os manifestantes preparam-se para ficar no local durante o tempo que for preciso. No passeio acumulam-se garrafões de água, pão e fruta. O protesto é apoiado pelos grupos Habita e Stop Despejos, estando também presentes deputados do Bloco de Esquerda.

Também o vereador do Bloco de Esquerda (que tem um acordo com o PS para a gestão da cidade), Manuel Grilo, já se pronunciou sobre a situação. “Um despejo feito por capangas privados”, começa por dizer o vereador, que tem a seu cargo o pelouro da Educação e dos Direitos Sociais, numa publicação no Facebook.

“Hoje às 5h da manhã um grupo de seguranças privados e armados entrou no prédio onde os activistas da Seara tinham montado um refúgio de apoio às pessoas em situação de sem abrigo para realizar um despejo ilegal. A Polícia foi chamada pelos membros do grupo Seara, mas não retirou a milícia armada de seguranças privados que estavam a cometer um crime”, lê-se na publicação.

O vereador diz ainda que a câmara “não respondeu aos seus e-mails [dos ocupantes] e os proprietários só responderam agora, com uma milícia armada e com um empreiteiro para emparedar o prédio que nunca quiseram recuperar”. Para o autarca, esta acção “roça a ilegalidade e a polícia não pode ser conivente com milícias privadas. Só vamos vencer esta crise social da covid-19 com apoio mútuo e quem se mobilizou para apoiar quem mais precisa não pode ser ameaçado desta maneira”.

Tudo começou pouco depois das 5h, quando os seguranças privados chegaram, conta ao PÚBLICO Bernardo Álvares, membro do grupo de ocupantes. “Eles arrombaram as portas e começaram a retirar pessoas e bens do interior”, explica. Nesse momento, estavam sete pessoas no edifício. Por volta das 6h, os próprios ocupantes chamaram a PSP que, segundo relata o porta-voz do grupo, “estancou o despejo ilegal que estava a acontecer e deu razão às três pessoas que continuavam no interior”.

Bernardo Álvares queixa-se da violência usada pelos seguranças. “Uma pessoa ficou ferida num pé quando estava a ser arrastada por um segurança”, queixa-se.

Solange Puglielli estava no prédio às 5h da manhã, quando foi acordada pelo estrondo de uma porta a ser derrubada. “Foi muita brutalidade”, afirma, relatando ter visto armas de fogo e tasers.

“Nós conseguimos tirar nossas coisas, mas estão jogadas ali na calçada”, descreve. Segundo diz, “a casa tinha muito lixo, muitos ratos e baratas”, mas não está em risco estrutural, como alertaram os proprietários esta manhã.

Prédio aguarda licenciamento camarário
Durante a manhã, verificou-se um impasse com os seguranças a não deixarem entrar ninguém e três pessoas que estavam no interior do local a recusarem-se a sair. “Está aqui uma carrinha do corpo de intervenção e três carros da polícia. Há pouco contei 18 agentes fardados”, descreveu então, de manhã, Bernardo Álvares.

Este centro, a que deram o nome de Seara – Centro de Apoio Mútuo de Santa Bárbara, abriu a 9 de Maio para dar algumas respostas a quem não tem um tecto ou condições para realizar as suas necessidades mais básicas. O espaço, que estava devoluto há mais de um ano, tinha sido um infantário, possuindo, por isso, balneários. Foram ainda colocadas máquinas de lavar a roupa e estendais para permitir a quem vive na rua fazer, além da higiene pessoal, a limpeza do vestuário. Isto num local que era frequentemente desinfectado devido à pandemia da covid-19.

​“Apesar da boa vontade dos ocupantes e do que se propõem fazer, a ocupação é ilegal, mas, acima de tudo, é um perigo para quem está a utilizar edifício, uma vez que está em avançado estado de degradação estrutural e, por isso, não oferece quaisquer condições de segurança, razão pela qual não está habitado”, afirmam os donos do edifício, numa nota enviada à comunicação social.

Os proprietários garantem que o “edifício não está abandonado” e “que está a aguardar o licenciamento da Câmara Municipal de Lisboa para ser intervencionado” e poder voltar ser usado para habitação e comércio. “A utilização do edifício pode, por isso, transformar-se numa tragédia”, alertam os donos do imóvel.

Os ocupantes garantem que tentaram contactar, sem sucesso, com os proprietários do espaço, que seria um fundo de investimento que terá, entretanto, vendido o edifício a três cidadãos estrangeiros. Além dos seguranças, que surgiram munidos com um contrato de arrendamento, com data de domingo, estão também no local advogados que dizem representar os proprietários, mas que, segundo Bernardo Álvares, não apresentaram qualquer procuração com a respectiva delegação de poderes.

Segundo relatou o porta-voz, os advogados dos proprietários no local ofereceram dinheiro aos ocupantes para estes abandonarem voluntariamente o local, o que estes terão recusado, prosseguindo assim a ocupação.

Cinco pessoas feridas
Já ao final da tarde, os proprietários do imóvel enviaram nova nota, em que “lamentam a situação provocada pelos manifestantes, que arrombaram as portas e invadiram uma propriedade privada, obrigando a polícia a intervir perante um flagrante delito”. E insistem que não houve nenhuma acção de despejo, uma vez que já não havia residentes nos imóveis. “Houve, sim, uma ocupação ilegal de um imóvel em avançado estado de degradação estrutural e, por isso, não oferece quaisquer condições de segurança, razão pela qual não está habitado”, sublinham.

Ao início da noite desta segunda-feira, o porta-voz do Comando Metropolitano de Lisboa (Cometlis) da PSP, comissário Artur Serafim, confirmou à Lusa que pelo menos cinco pessoas ficaram feridas, entre elas três agentes da PSP. Foram todos “assistidos no local”. Segundo explicou, algumas pessoas “descobriram uma entrada lateral” do edifício e “forçaram a entrada” para abrir as portas às restantes pessoas que aguardavam no exterior. Os ferimentos acabariam por resultar dessa acção e não do movimento da polícia para o impedir, disse a PSP.

No entanto, versão diferente tem Bernardo Álvares. O ocupante viu duas pessoas ficarem feridas por causa de “uma investida” da polícia quando estavam a tentar entrar no edifício.

Por volta das 22h, mantinham-se muitas pessoas no local e um forte dispositivo policial. Segundo disse o porta-voz do Cometlis, os elementos da PSP destacados vão continuar “a aguardar no local”, porque este “vai ser um jogo de paciência”.

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