REPORTAGEM
À espera que o turismo se erga das cinzas da covid-19
O turismo foi a galinha de ovos de ouro da economia
portuguesa. Mas uma hecatombe chamada “pandemia” deixou muitas vidas em
suspenso. Há quem não acredite que venha a ser o mesmo. Em Alfama, há ruas
inteiras a esvaziarem-se, depois de alojamentos locais terem despejado
moradores.
Joana Gorjão
Henriques (texto) e José Sarmento Matos (fotografia) 7 de Junho de 2020, 6:42
Ana e Camila,
duas condutoras de tuk-tuk, ficaram sem trabalhar e estão a ser pressionadas
pela senhoria para sair. Pedro, recepcionista de um alojamento local no Chiado,
ficou em layoff e não sabe como será o futuro. Num café em Alfama, Joana via o
bairro encher-se de turistas: agora só há ruas vazias. Na porta ao lado, o
sonho de Rui de vender produtos 100% portugueses está a ser empacotado. Há quem
tenha voltado à restauração e faça voluntariado a distribuir o pouco que tem,
como Emanuel. Negócios redesenham a sua estratégia. São histórias de quem vivia
do turismo e agora está em suspenso até que a hecatombe passe.
Do Bairro Lopes,
em Lisboa, vê-se o rio Tejo. Primeiros dias de calor em Maio e a brisa entra
pela casa. Há algumas malas de viagem encostadas à parede, junto a uma folha
onde se lê: “Descalçar os sapatos.” O pequeno e exíguo corredor vai dar a uma
cozinha, que por sua vez vai dar a um pátio onde há plantas, um cão e um gato.
Camila Moisés, 28
anos, e Ana Castelo, 36 anos, vivem ali desde Junho de 2019. Recebem-nos à
porta do anexo de 14 metros quadrados, tecto baixo, com uma kitchenette e uma
minúscula casa de banho. A sala é que um pequeno hall.
Há uns meses
houve uma inundação que lhes estragou a roupa de Verão, guardada debaixo da
cama, e outros objectos. A senhoria fez obras, as paredes estão agora pintadas.
Quando querem tomar banho de água quente, têm primeiro de se certificar que
nenhum dos inquilinos da casa está a usar o esquentador. Pagam uma renda de 650
euros mensais, um preço manifestamente alto para o que é.
Camila e Ana
estavam a trabalhar como condutoras de tuk-tuk, fazendo também papel de guias
turísticas: Camila há seis anos, Ana há dois. Em meses fortes, tinham um
rendimento acima dos 1200 euros, mas mesmo nas épocas baixas conseguiam ter uma
vida confortável. Camila é contratada em part-time, por 20 horas semanais; Ana
não passava recibos.
Em layoff até
início de Junho, Camila não tinha recebido qualquer valor do seu rendimento
base mensal: como a Segurança Social não transfere o valor para a empresa, esta
não lhe paga, dizem-lhe.
Ana pediu ajuda à
Santa Casa da Misericórdia, que também fornece um cabaz semanal, e ia tentar
receber o rendimento social de inserção.
Para as duas, a
vida profissional corria bem. Conseguiam suportar despesas, “viver
tranquilamente, viajar de vez em quando ao fim-de-semana”, desabafa Camila.
Pela primeira vez em muito tempo, Ana acordava de manhã com vontade de ir
trabalhar. “Dá imenso prazer”, diz, recordando o período em que andava na
estrada, convivia com pessoas, conhecia turistas. Ana já fez “de tudo”:
trabalhou em hostels, em Airbnb, apanhou fruta nos campos. “Os tuk-tuk foram o
melhor que encontrei nos últimos anos. É sazonal, no Verão ganha-se muito bem.”
Quer dizer, “é muito competitivo na rua, nem toda a gente factura assim”,
comenta.
Como todos os
anos, o início de Março é uma altura em que se arranca a pensar que finalmente
irá entrar mais dinheiro, que se poderão “comer umas gambas de vez em quando”.
Nos últimos anos, marca o fim do Inverno e o início de uma época alta no
turismo, às vezes até melhor do que muitos meses de Verão.
Tudo apontava
para que 2020 fosse um ano idêntico aos outros. Afinal, 2019 terminou com
resultados mais do que positivos para o turismo em Portugal: 27 milhões de
hóspedes, mais 7,2% do que no ano anterior; subida de 8,1% nas receitas e mais
de 336 mil empregos gerados. Com um peso de 7% na economia nacional e quase de
9% de contributo para o PIB, segundo dados do Turismo de Portugal, o turismo
tem sido descrito como a galinha dos ovos de ouro da economia.
Pouco antes de
ser declarado o estado de emergência, Ana e Camila começaram a perceber que
havia colegas que tinham sido infectados com o SARS-CoV-2 e que, portanto,
iriam ter de parar. A perspectiva daquele recomeço de ano tão esperado
rapidamente se dissipou. Camila confessa. “Foi terrível a sensação de perder
tudo.”
Quedas a pique
De facto, ninguém
previa que os dados do turismo fossem cair tão a pique. Em Abril as compras com
cartão tiveram uma descida de 97% nos alojamentos e de 85% na restauração (face
ao período homólogo de 2019), refere o Banco de Portugal. Em Março, comparando
com o ano anterior, os proveitos dos estabelecimentos turísticos caíram 60,2%
(dados do Instituto Nacional de Estatística, INE): a Área Metropolitana de
Lisboa teve o pior resultado, com mais de 65% de queda. As descidas continuaram
no número de hóspedes (menos 62,3%) e no número de dormidas (menos 58,7%).
Paradas em casa,
Ana e Camila perderam a fonte de rendimentos, que vinha de uma actividade que
vive sobretudo à base de comissões.
A vida
profissional corria bem a Camila e Ana. Conseguiam suportar despesas, “viver
tranquilamente, viajar de vez em quando ao fim-de-semana”
Só que esta não é a maior dor de cabeça deste casal por estes dias. A grande preocupação é o facto de os senhorios, em plena pandemia, terem dito que não querem renovar o contrato de arrendamento, que expirava em Junho. Ana e Camila pediram para negociar o pagamento da renda. Do outro lado, dizem que a filha dos senhorios, com quem tratam de tudo, foi inflexível. “Tentei explicar que quando recebesse eles também receberiam”, conta Camila.
Contactada pelo
PÚBLICO, Anabela Halpern, a filha dos senhorios, remeteu a resposta para a
carta enviada às arrendatárias em que lhes pedem para deixarem as chaves e
abandonarem o imóvel até ao dia 4 de Junho. “Estava à espera de uma réstia de
humanidade nesta pessoa”, comenta Camila.
A lei está do
lado delas. O Governo suspendeu até 30 de Setembro a possibilidade de oposição
à renovação de contratos de arrendamento efectuadas pelo senhorio, mesmo que
não sejam pagas as rendas. Com tudo o que se passou, dizem que só querem sair
dali. “Mas quem nos aluga uma casa agora sem garantias?”, desabafam. Estão, por
isso, dispostas a lutar até às últimas consequências pelos seus direitos.
Horas depois de
chegarem à esquadra da PSP a 22 de Maio, Ana e Camila conseguem sair com a
queixa feita. Acusam a filha do senhorio de assédio e de entrar em casa frequentemente
sem bater à porta ou avisar. “Não percebemos que estávamos a ser alvo de abuso
de poder desta pessoa senão há pouco tempo”, comenta Ana.
Segundo a
associação Habita, ao longo desta pandemia têm-lhe chegado relatos sobre
senhorios que cortam a água ou a electricidade ou fazem outro tipo de bullying
quando as pessoas têm direito a permanecer na casa. “As consequências legais de
não avisar cinco dias antes o senhorio que não se pode pagar a renda não dão
origem a despejos ou à oposição de renovação de contrato”, explica Rita Silva,
da Habita. “Aconteceu muitas vezes as pessoas fazerem uma comunicação verbal
por desconhecimento da lei, simplesmente telefonaram aos senhorios a informar,
mas como não escreveram uma carta isso está a ser usado contra eles. Aliás,
mesmo fora do período da pandemia, o despejo só pode ser efectuado se houver
quatro meses seguidos de renda em atraso.”
(Aconselha, de
resto, toda a gente a pagar sempre a renda através de transferência bancária ou
de outro meio que sirva de comprovativo.)
No pátio à frente
do anexo, Ana e Camila conversam com Marcos Moura, amigo que está de partida
para Braga. Marcos arrendava um quarto na casa principal por 360 euros, um
pequeno espaço com casa de banho partilhada. Ele decidiu que ia sair antes de o
contrato terminar em Agosto, porque sentiu que a pressão psicológica feita pela
senhoria era grande e preferiu aceitar acolhimento de uma amiga. Investigador
em Antropologia, tem uma ajuda da Universidade de Lisboa e irá procurar emprego
noutra cidade, a norte.
Antes de
trabalhar nos tuk-tuk Camila estudou contabilidade, uma área que pondera
retomar, se o turismo “não se reerguer”. “Gosto muito da profissão de animadora
turística, de falar com pessoas, desenvolver línguas, de estar ao ar livre, de
conduzir.”
O apoio da Santa Casa da Misericórdia foi fundamental,
dizem Ana e Camila, não apenas pelo lado financeiro, mas também pelo apoio
emocional com o processo da casa
Mas afirma:
“Muita gente já dá este ano como perdido.” Tem uma faceta optimista, apesar de
muitos colegas da área terem ido procurar alternativas. “Ontem passámos pelas
esplanadas e já estão cheias. Tenho esperança.”
Ana andou a
enviar currículos com frequência para vários locais, desde supermercados à
apanha de fruta. Não teve respostas. “Neste momento faria qualquer coisa”, diz.
Em dias de calor,
Camila fala das saudades de ir à praia, passar um fim-de-semana fora; mas está
fora de questão. “Todas as economias são para salvaguardar a nossa situação,
não sabemos quanto tempo mais isto vai durar.”
Tinham projectos
que ficaram de lado, pelo menos por enquanto: comprar um tuk-tuk e ir para fora
de Lisboa fazer passeios, desenvolver um turismo rural. “Foi tudo por água
abaixo”, diz Ana. Camila afirma: “O sector do turismo foi arrasado. Estamos às
cegas, não temos nada em que nos basear, porque isto nunca aconteceu antes.”
27 milhões
Número de hóspedes em Portugal em 2019, mais 7,2% do que
no ano anterior
Têm-se ocupado a
jogar, a ler e a meditar. Fizeram aulas de ioga, churrascos, jardinagem. O apoio
da Santa Casa da Misericórdia foi fundamental, referem, não apenas pelo lado
financeiro, mas também pelo apoio emocional com o processo da casa.
É quinta-feira e
está na altura de ligar a pedir as coisas para o cabaz semanal: não precisam de
azeite, que veio na semana passada, ainda têm bolachas, e massas, querem
legumes, o “mais variado possível”, e também manteiga.
A pandemia e a
infecção são assustadoras, dizem-nos. “Mas não tão assustador quanto a
perspectiva de que toda a tua vida pode estar arruinada.”
É hora de Marcos
se pôr à estrada. Há abraços e lágrimas. “O Marcos foi um grande suporte”,
dizem, comovidas.
Está planeado o
regresso ao trabalho a 15 de Junho. As expectativas? Regressar com “uma
incerteza brutal”, até porque Ana terá de desistir de receber o RSI ou
encontrar outro trabalho. “Não sei exactamente o que fazer, voltar a trabalhar
no tuk-tuk é quase uma miragem agora, apesar de já ver alguns colegas na rua —
sei que estão a fazer zero, é triste.” Camila acredita que a partir de Julho
haverá turistas: “Claro que não espero a mesma afluência de antes, mas acredito
que haverá algum trabalho.” “Só não sei se será o suficiente para pagar as
contas e conseguir viver com tranquilidade.”
Depois da
explosão do turismo, o vazio
Descemos a colina
até Alfama. Manhã de Maio e por esta altura, noutros anos, já andariam centenas
de estrangeiros nas ruas. Nos últimos tempos, muitos vinham dos cruzeiros. Em
alguns prédios já se vêem placas com “vende-se” ou “arrenda-se”. Há lojas e
cafés a fechar definitivamente. As ruas estão desertas, apenas alguns moradores
circulam. O bairro que foi um dos mais simbólicos do boom do turismo está
moribundo.
Atrás do balcão
da Tasca São Miguel, de máscara, Joana Cruz, 38 anos, lembra a altura em que
caminhava na rua e ouvia fado ou pessoas a falar. Antigamente — antes da
pandemia — queixavam-se da quantidade de turistas num bairro que foi
“descaracterizado”, porque “muitas pessoas foram obrigadas a sair, os senhorios
preferiram alojamentos locais”. Agora, estão “num marasmo”. Nota-se o desânimo
num sítio onde vivem sobretudo idosos. “Hoje o que resta do bairro são muito
poucas pessoas”, a clientela não dá “para cobrir os estabelecimentos
comerciais”, afirma.
Quem viu esta
tasca não acredita nas diferenças em relação a agora, refere. “A louça era até
cima, não se conseguia entrar. Havia alturas em que gastávamos quatro barris
por dia.”
Agora é preciso
ir devagar, afirma. “E rezar para que os turistas voltem: que voltem, mas que
não descaracterizem mais, porque isto é uma tristeza muito grande.” A
acrescentar à ausência de turistas veio o anúncio de que não haveria festas de
Santo António — muitos moradores, no mês de Junho, faziam dinheiro para o resto
do ano com as vendas na rua, afirma.
O discurso geral
é atravessado por um misto entre a nostalgia por um bairro antes da explosão do
turismo e um bairro antes de um turismo tornado moribundo pela pandemia.
8,1%
Percentagem da subida das receitas em 2919 nos negócios
ligados ao turismo
Antes de gerir a
tasca, Mário Cruz, 55 anos, teve cinco frutarias em Alfama. Agora, “o bairro
está numa situação catastrófica, está a ser muito difícil”. Na tasca baixaram
“praticamente 50%” os preços. “Para atrair as pessoas locais, porque não há
mais ninguém de fora.”
Mesmo assim,
Mário Cruz está “muito pessimista”. A renda que pagava era alta, está a tentar
pagar alguma parte, mas há outros encargos. “Acho que o bairro vai perder 70% a
80% do comércio. Estávamos no boom do turismo, diversos empresários aceitaram
rendas enormes que não vão conseguir pagar, as casas de fado também ainda não
estão a abrir. O espírito é péssimo”, comenta. “Este ano está perdido. No Verão
facturávamos para aguentar o Inverno, quando os bairros históricos ficavam
vazios. Se não facturarmos agora, no Inverno muito mais casas vão fechar.
Enquanto não abrirem fronteiras … Quem é que vai atrair o turismo nacional para
uma cidade? Nunca vamos poder sobreviver, se não houver mais ajudas.”
“O grande
problema é que não há portugueses em Alfama. Esta rua tem sete habitantes, o
resto está tudo sem ninguém…”
Mário Cruz, dono de um café em Alfama, referindo-se à Rua de São Miguel
Empresário em
nome individual, estava previsto receber um subsídio de 490 euros e só
depositaram 270 euros, ao mesmo tempo que já lhe cobraram a Segurança Social.
“Com seguros, rendas, contas, como é que vamos conseguir suportar?”
O prédio onde se
situa a tasca é praticamente ocupado por alojamento local e ficou vazio; na rua
é este o cenário. “O grande problema é que não há portugueses em Alfama. Esta
rua tem sete habitantes, o resto está tudo sem ninguém…”
Só na Rua São
Miguel há quatro lojas comerciais fechadas, afirma. O Amarelo 28, onde se
vendem produtos turísticos totalmente portugueses, é uma delas. Dia 12 de
Março, um sábado, o dono, Rui Sampaio, fechou-a. Mal sabia que seria de vez.
Atrás da porta de vidro, Sampaio empacota os objectos que estavam nas vitrines:
louça, bebidas, sabonetes, quadros, objectos de artesanato.
Aos 56 anos, fala
com melancolia. Mostra um mapa onde cada visitante que entrava podia colocar um
pin no local de onde vinha: ao todo tem 139 países. “Ultimamente, cada vez que
havia uma pessoa de nacionalidade nova [que não estava assinalada] fazíamos uma
festa. A última foi da Gronelândia.”
Até aos 50 anos
Rui Sampaio esteve na área da informática, até que decidiu “procurar qualquer
coisa diferente” e idealizou o “projecto ideal para os próximos anos”: foi
então que há seis anos abriu a loja pela qual pagava uma renda muito alta — que
não quer especificar. Mesmo nos momentos mais fracos do ano, “continuava a
manter níveis de satisfação elevados”.
No final de Maio,
Rui Sampaio, antes ligado à área de informática, retirava as placas de
identificação da loja Amarelo 28, que fecha definitivamente
Vendia produtos
de artistas e de artesãos locais, trabalhava com um total de 60 artistas.
“Cinquenta dependiam disto para ir ao supermercado quando lhes pagava”, refere.
A decisão de encerrar a loja física foi, por isso, difícil — irá manter-se no
comércio online e tentar escoar o stock, ficando num espaço de cowork, onde
pagará “seis vezes menos”. Mesmo o pior cenário que traçou no seu plano de
negócio não implicava fechar definitivamente as portas. Descreve algumas
pessoas que deixaram uma vida confortável para se dedicarem a produtos de
turismo e que neste momento estão a pintar prédios.
A pandemia chegou
exactamente numa altura em que ia começar o pico. “Março, Abril e Maio nos
últimos anos tem sido época alta. Muita gente não se apercebe disso, mas Julho
e Agosto perderam. Isto [Alfama] hoje está irreconhecível. Metade das lojas não
vão abrir”, comenta.
Mesmo o pior
cenário que Rui Sampaio traçou no seu plano de negócio não implicava fechar
definitivamente as portas. Descreve algumas pessoas que deixaram uma vida
confortável para se dedicarem a produtos de turismo e que neste momento estão a
pintar prédios
Já há algum tempo que trabalhava sozinho na loja. Não fechar era “estar a adiar um problema”. A almofada não chega para as expectativas de retoma da normalidade do turismo. “Tenho a certeza que não vai recuperar tão cedo. Vai voltar, mas não será nos mesmos moldes; não será tão massificado.”
Não foi elegível
para o apoio do Estado aos sócios gerentes; morador na Graça, tem vindo com
regularidade ao bairro e ainda não viu um turista a passar na rua.
Encaminha-nos para a porta da loja, aponta e diz: “Imagine a alegria de uma
esplanada, cheia de vida… Isto era uma gelataria, ia ser uma creperia. Ali era
uma pastelaria que vendia pastéis de nata e telefonaram-me a dizer que já não
vai abrir. Ali em baixo conheço quatro ou cinco casas nas mesmas condições. As
pessoas vêm-se despedir e dizem: ‘Nunca pensei ver esta Alfama tão vazia, tão
triste e tão pobre. Isto vai ser um período de trevas.’”
De guia para o
voluntariado
Algures numa rua
perto de Alfama, Rui Sampaio pode bem ter-se cruzado com Emanuel Cassama, 36
anos. Este jovem estava há cinco anos a conduzir tuk-tuk, tinha um bom salário
no final do mês — algo que conjugava com outros trabalhos em part-time.
Neste momento o
seu regime é em layoff, mas como o seu salário era baseado nas comissões ou
gorjetas, o rendimento desceu radicalmente. Não chega para as despesas, nem
para enviar dinheiro à família na Guiné-Bissau. Por isso está a trabalhar como
assistente de cozinha numa churrasqueira no Seixal. Já antes tinha outro
trabalho num restaurante, ao mesmo tempo que era o “primeiro tuk-tuk a chegar à
Praça da Figueira”. “Às vezes dormia três horas e meia”, revela. Chegou a
dormir no tuk-tuk numa altura em que trabalhava na Azambuja, onde fazia
manutenção numa fábrica em horário nocturno. “Quando temos família, temos
responsabilidade.”
Emanuel Cassama,
36 anos, conduziu um tuk tuk durante cinco anos. Em 2019, o turismo gerou mais
de 336 mil empregos
Baixar os braços não é com ele. Está a tentar não se desmoralizar com o que aconteceu, encarar a pandemia como algo que “já estava escrito”.
Formado em
Hotelaria e Turismo no Brasil, onde viveu dez anos, conta que fala seis línguas
— português, inglês, francês, espanhol, italiano, árabe. Gostava do trabalho
que tinha e recorda com entusiasmo a parte em que fazia de guia turístico.
Começou por fazer as folgas dos outros, até que foi ficando e se tornou
efectivo. “Chegava a casa cansado, mas uma pessoa tem de manter o foco.” Um dos
seus desejos é trazer a família da Guiné-Bissau para Portugal.
Mal parou de
trabalhar nos tuk-tuk dedicou-se ao voluntariado, fazia refeições para si e
punha outras tantas em caixas para dar a sem-abrigo e a quem precisasse, na
Praça da Figueira e no Martim Moniz. Mostra um vídeo no seu telemóvel onde se
vê a distribuição de pequenas caixas numa Praça da Figueira em tempos de estado
de emergência, onde praticamente só estava quem não tem casa. O seu sonho é um
dia vir a criar uma fundação na Guiné-Bissau para ajudar crianças. Quer também
combater a prática da mutação genital feminina no seu país.
Emanuel Cassama
não é de baixar os braços. Mal parou de trabalhar dedicou-se ao voluntariado,
fazia refeições para si e punha outras tantas em caixas para dar a sem-abrigo e
a quem precisasse, na Praça da Figueira e no Martim Moniz
Ainda não teve
ainda dificuldades económicas, porque não parou de trabalhar mais do que três
dias. “Se precisar, peço ajuda; mas neste momento prefiro dar prioridade aos
outros que precisam.” Não tem dúvidas: “Um dia vou vencer.” Por enquanto, passa
os dias na cozinha da churrasqueira. Na tarde em que o conhecemos estava a
cortar batatas.
Em compasso de
espera
Não é apenas na
recepção do Chiado 44, uma guest house em pleno coração de Lisboa, que Pedro
Costa, 36 anos, espera. Em layoff, aguarda o desenrolar dos acontecimentos
pós-pandemia para perceber o que lhe irá acontecer em termos profissionais. Tem
expectativa de ficar na mesma empresa onde trabalha há três anos, mas tem a
noção de que o futuro é incerto.
O hostel fica
mesmo em frente ao Ministério da Economia diante do qual frequentemente vê
pessoas a manifestarem-se e nesta terça-feira não é excepção.
Este alojamento
local (como está registado) está fechado desde finais de Março. Atrás da
pequena escrivaninha onde faz o trabalho de recepção, gere as reservas e leva
as malas dos hóspedes, Pedro Costa conta que trabalhou numa portagem da A16,
durante oito anos, em horário nocturno. Antes disso estudou música no
Conservatório Nacional: piano, canto, formação musical. Fez um curso de
produção até que decidiu ir para as portagens, deixar de lado a música e mais
tarde dedicar-se ao turismo. Neste momento está a terminar o primeiro ano do
curso de Gestão Turística na Escola de Hotelaria e Turismo do Estoril.
Pedro Costa, 36
anos, está em layoff
Quando recebeu a
notícia de que ia para layoff, não ficou surpreendido. Por essa altura, já
tinha feito dezenas de cancelamentos. “Desde o início de Março que começámos a
notar que a procura tinha diminuído.”
O isolamento
social interferiu do “ponto de vista psicológico”. Ficou em casa com a mãe, com
quem voltou a viver há uns anos para lhe dar apoio, mas sente falta do
trabalho. “Sou uma pessoa activa.” Ocupar o tempo não foi um problema pois tem
tido aulas à distância. Sente é falta de convívio com amigos, outros familiares
— “e do trabalho”, desabafa.
Uma das pesquisas
que fez para a escola foi justamente em temas relacionados com a pandemia.
Identificou semelhanças com o impacto que os ataques terroristas têm no
turismo, quando as pessoas ficam com medo de viajar para determinado local. O
mesmo se irá passar agora, prevê. “Até que as pessoas se sintam confortáveis
novamente vai levar algum tempo.”
Há um ano, por
esta altura, provavelmente estaria a gerir uma quantidade enorme de reservas, a
receber hóspedes. Na rua veria imensos turistas a passear. Caminhamos com ele
na Calçada do Combro; em frente ao Elevador da Bica, onde se amontoavam
turistas, não há quase ninguém a não ser quem espera à porta do supermercado
pela sua vez. Descendo a rua, andam-se uns 300 metros e vários negócios
acabaram: uma loja que parece ter sido de artesanato tinha acabado de abrir
antes da pandemia, mas informa que já não vai reabrir; um alojamento local de
onde foi tirada a placa à porta; uma mercearia com as grades corridas…
“Até que as
pessoas se sintam confortáveis [a viajar] novamente vai levar algum tempo”
Pedro Costa, recepcionista numa guest house
“Há centenas de postos de trabalho a serem extintos na
área. Não seria extraordinário pensar que poderia acontecer comigo”, comenta.
Os donos não
sabem quando o Chiado 44 irá abrir, ou se o irão fazer noutros moldes. João Tarrana,
um dos sócios, explica que uma das hipóteses é converter alguns dos quartos em
aluguer de vários meses. É quase certo que irão precisar de menos funcionários
do que os cinco com contrato que agora têm.
Com um peso de 7% na economia e quase de 9% de contributo
para o PIB, dados do Turismo de Portugal, o turismo tem sido descrito como a
galinha dos ovos de ouro da economia
Sócio de três
empresas que gerem este tipo de alojamentos em Lisboa — um deles não abriu;
outro tinha acabado de abrir duas semanas antes do estado de emergência —, diz
que será necessário fazer obras neste espaço do Chiado para ter áreas comuns e
cozinha. Isso que exige algum investimento. De resto, tem ainda de negociar com
os senhorios. Não acredita que antes da próxima Primavera o turismo recupere. É
também preciso perceber como se irá comportar o mercado interno, avisa.
Defende que é
necessário uma “junta de salvação nacional para o turismo”: “Não estamos a
falar apenas do interesse deste prédio, mas de uma economia. Foi o turismo que
nos tirou da crise. Isto tem de ser rápido, porque há abutres à espera que
muitas pessoas caiam para ficar com os negócios de forma barata.”
A pandemia,
descreve, foi “uma travagem brusca que apanhou todos de surpresa”: “Não foi uma
bomba atómica porque não destruiu tudo, mas foi uma bomba electromagnética que
nos deixou parados.”
A revolta e a resiliência de três mulheres a quem tudo o
turismo levou
Isabel Oliveira foi dispensada do hotel onde fazia
limpezas e entrou num sindicato pela primeira vez. Marisa Ferreira e Alba Plaza
tinham estruturado a vida com o turismo como base. Um vírus virou-lhes os dias
do avesso — como se começa de novo?
Mariana Correia
Pinto (texto) e José Sarmento Matos (fotografia) 7 de Junho de 2020, 6:42
Isabel Oliveira
cansou-se de alimentar injustiças a silêncio. Aos 63 anos, numa sexta-feira 13,
foi dispensada do trabalho no Hotel Ipanema Porto numa conversa de minutos,
durante a pausa de almoço. “A gerente chegou à minha beira e disse-me: ‘Não
precisamos mais da senhora por causa da covid-19’.” Estávamos em Março,
Portugal contabilizava alguns infectados e estava a três dias de registar a
primeira morte. Mas a trabalhadora da empresa de serviços de limpeza
Keepshining não antevira aquela possibilidade: “Os hotéis tinham de se manter
limpos, nunca esperei ser apanhada nisto…” E reagiu: recusou ler os papéis
trazidos pela gerente e, a conselho do genro, continuou o serviço tarde fora. E
sábado e domingo.
No dia da sua
folga, por sugestão de uma amiga da filha, bateu à porta do Sindicato dos
Trabalhadores da Indústria de Hotelaria, Turismo, Restaurantes e Similares do
Norte, ainda sem saber da transformação irreversível que se instalara em si.
“Isto foi uma lição de vida. Estou farta de perdoar e de ser enganada. Não
podem fazer pouco dos trabalhadores”, afirma, enquanto caminha para o
autocarro, depois de mais uma reunião no sindicato que não conhecia e ao qual
jura agora ligação eterna. “Com esta idade, abri finalmente os olhos… Agora não
me calo, vou até ao fim.”
Imagem seguinte
A voz de Isabel
Oliveira varia entre firmeza e comoção, os olhos humedecidos não velam a
angústia. Nunca antes havia meditado sobre a dependência do seu trabalho em
relação ao turismo. Não precisava. Os dias repetiam-se, corridos, com a farda preta
vestida e a missão de limpar os quartos do hotel de quatro estrelas como foco.
Sempre gostou do serviço. Para juntar uns “trocos” ao rendimento, fazia também
domicílios em casa de pessoas mais velhas — mas esse extra foi o primeiro a
desaparecer, quando as famílias cancelaram cuidados assumindo o medo do novo
coronavírus. Isabel resistia nas limpezas — até ao dia em que lhe violaram a
crença na dedicação ao ofício como fórmula para tudo dar certo: “Nunca tive
medo ao trabalho. Dei sempre tudo à casa e não me queixava. Para quê?”
O drama desta
conimbricense, chegada ao Porto há mais de 40 anos por causa de um namoro,
tornou-se história repetida nos últimos três meses. “Aconteceu a milhares de
trabalhadores em todo o país”, atalha Francisco Figueiredo, sindicalista
responsável pela contratação colectiva. O “desconhecimento” das pessoas em
relação aos seus direitos continua a ser grande e isso é faixa livre para
“muitos abusos”: palavra de quem viveu o sector por dentro durante décadas e
assumiu a batalha de tirar alguma sujidade da engrenagem: “O turismo podia ser
bom, se as regras fossem respeitadas.”
Isabel Oliveira:
"Fui muito abaixo... Mas parar é morrer"
Desde o início da
epidemia, a porta do sindicato foi aberta a todos, associados ou não. De lá
saíram 166 pedidos de intervenção para a Autoridade para as Condições do
Trabalho. Só dez tiveram resposta. O despedimento de Isabel Oliveira será
impugnado, a reintegração pedida. Mas, para já, a trabalhadora recebeu apenas
200 e poucos euros do trabalho de Março. E nada mais.
Isabel Oliveira
entrou num sindicato pela primeira vez na vida
Isabel cancelou o
contrato de arrendamento do seu apartamento, mudou-se para casa da filha.
Entristeceu. À insistência da empresa para “assinar papéis”, respondeu
firmemente ter indicações para não o fazer. E quando do outro lado da linha
perceberam o apoio de um sindicato, a comunicação findou. “Nunca mais me
ligaram…” Ao PÚBLICO, a Keepshining também não respondeu.
O regresso do
sotaque
Nas ruas do
Porto, o sotaque das gentes da cidade voltou a ser o mais ouvido. O silêncio do
burgo, típico das semanas de estado de emergência, foi quebrado, nas últimas
semanas, por decibéis que anunciam a retoma possível. Cafés, restaurantes e
comércio reabriram, alguns artistas de rua regressaram, o trânsito cresceu, o
transporte público recebeu mais gente. Mas os turistas esfumaram-se, deixando
artérias inteiras com edifícios vazios e centenas de negócios tiveram a sua
certidão de óbito.
Marisa Ferreira e
Alba Plaza tinham um deles. A dependência dos turistas não foi programada, mas
era quase total: 95% dos clientes dos seus workshops de pintura de azulejos
vinham de fora. A produtora cultural portuguesa e a designer gráfica espanhola
sorriem e falam num fracasso da ideia original: “Queríamos mostrar aos
portugueses a importância deste património, a dificuldade do processo de
criação. Para aprenderem a valorizá-lo”, explica Marisa, de 40 anos. Os de cá
não se interessaram, os de fora apaixonaram-se.
Num rés-do-chão
de uma rua da freguesia do Bonfim, limpam mesas, cadeiras, quadros. É o
material retirado do atelier onde se haviam instalado e do qual foram obrigadas
a sair há dias: “Já não podíamos pagar uma renda de 500 euros.” A frase de Alba
Plaza, madrilena de 38 anos chegada ao Porto há quatro anos, não impõe uma
sentença. Mas assume a inevitabilidade da mudança. Quando, em 2016, a
curiosidade dela não encontrou respostas no conhecimento de Marisa Ferreira, as
duas juntaram-se para esgravatar arquivos e livros de onde saíssem explicações.
“Quando tinham surgido os azulejos nas fachadas do Porto? Por que razão havia
tantos destruídos? Havia algum museu na cidade?”
O seu trabalho à
volta dos azulejos do Porto ruma a outro lugar
A escassez de
informação e a vontade de proteger aquele património fê-las burilar uma ideia:
tornaram-se “caçadoras” de azulejos na cidade e construíram um arquivo online —
a sonhar com um museu físico. Fotografam edifícios, os padrões dos azulejos,
digitalizavam, disponibilizam no Instagram e no site (em reformulação, assim o
permita um crowdfunding em andamento). Têm mais de 250 exemplares. E vão
continuar.
“A maioria dos
portugueses não sabe que Portugal é o país do mundo com mais edifícios cobertos
com azulejos”, lamenta Marisa Ferreira. No Bonfim, há ruas inteiras com casas
assim: mas muitas perderam peças, outras substituíram os originais por
réplicas: “Isto é horrível”, avalia Alba Plaza ao passar a mão num edifício
recuperado onde o antigo foi substituído por azulejos “chapa cinco”. Se há
medalha que entregam ao turismo é a de ter contribuído para a reabilitação do
Porto e para o renascimento de trabalhos de artesãos aparentemente condenados
ao fim. O problema? “Tudo gira à volta do dinheiro. Temos uma arquitectura fast
food, de consumo imediato, ninguém pensa no que vai acontecer dentro de dez
anos.”
Às vezes, pensava no projecto e na cidade e ficava
optimista. O turismo não ia desaparecer pelo menos por uns dez anos. Tinha
finalmente alcançado a estabilidade…
Marisa Ferreira, produtora cultural
Uma finlandesa
baptizou-as um dia como “as rebeldes do Porto”. Marisa e Alba não buscam
polémicas, mas não as fintam a todo o custo. E denunciam “crimes” quando os
vêem: retirar azulejos das fachadas, recorde-se, é proibido por lei desde 2017.
Pelo dever assumido de defender este material de cerâmica, já escreveram à
União Europeia e à UNESCO. As duas entidades aconselharam um contacto com a
autarquia local: mas nunca uma reunião foi agendada. “O património tem de estar
acima do dinheiro”, pede Marisa Ferreira.
O foco na paixão
por este material faz esquecer por momentos a epidemia que tudo mudou. A
conversa vai longa quando Marisa Ferreira retoma o propósito do encontro:
“Nunca pensei viver uma crise destas…” Percepção de quem se habituou a “viver
na precariedade” do mundo artístico. E até foi vítima do turismo antes de viver
dele, quando em 2017 foi “gentrificada” para fora do Porto. “Às vezes, pensava
no projecto e na cidade e ficava optimista. O turismo não ia desaparecer pelo
menos por uns dez anos. Tinha finalmente alcançado a estabilidade…”
Marisa e Alba
tornaram-se “caçadoras” de azulejos na cidade e construíram um arquivo online —
a sonhar com um museu físico
A Isabel
Oliveira, o relógio parece agora mais lento. “Não me dou em casa”, assume atrás
da máscara branca imposta pelo vírus na origem da história. Pelo vírus bode
expiatório: “A empresa aproveitou-se da covid”, acusa. Entre a preparação das
refeições e os passeios com o cão, Isabel vigia a caixa de correio no anseio de
notícias e folheia jornais em busca de novo emprego. “Fui muito abaixo… Mas
parar é morrer.”
Marisa e Alba vão
compor o novo espaço, mais pequeno e temporário, como se o pretérito tivesse
volta. Uma turista alemã fez há dias uma reserva para um workshop no próximo
mês. Uma casa ali próxima está a ser reabilitada e encomendou-lhes réplicas de
azulejos para recuperar o ar de outros tempos. Encomendas parecidas para o
exterior surgem timidamente. “Vai ser diferente”, declara Alba Plaza num autoconvencimento.
Será suficiente?


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