domingo, 7 de junho de 2020

À espera que o turismo se erga das cinzas da covid-19 / A revolta e a resiliência de três mulheres a quem tudo o turismo levou




REPORTAGEM
À espera que o turismo se erga das cinzas da covid-19

O turismo foi a galinha de ovos de ouro da economia portuguesa. Mas uma hecatombe chamada “pandemia” deixou muitas vidas em suspenso. Há quem não acredite que venha a ser o mesmo. Em Alfama, há ruas inteiras a esvaziarem-se, depois de alojamentos locais terem despejado moradores.

Joana Gorjão Henriques (texto) e José Sarmento Matos (fotografia) 7 de Junho de 2020, 6:42

Ana e Camila, duas condutoras de tuk-tuk, ficaram sem trabalhar e estão a ser pressionadas pela senhoria para sair. Pedro, recepcionista de um alojamento local no Chiado, ficou em layoff e não sabe como será o futuro. Num café em Alfama, Joana via o bairro encher-se de turistas: agora só há ruas vazias. Na porta ao lado, o sonho de Rui de vender produtos 100% portugueses está a ser empacotado. Há quem tenha voltado à restauração e faça voluntariado a distribuir o pouco que tem, como Emanuel. Negócios redesenham a sua estratégia. São histórias de quem vivia do turismo e agora está em suspenso até que a hecatombe passe.

Do Bairro Lopes, em Lisboa, vê-se o rio Tejo. Primeiros dias de calor em Maio e a brisa entra pela casa. Há algumas malas de viagem encostadas à parede, junto a uma folha onde se lê: “Descalçar os sapatos.” O pequeno e exíguo corredor vai dar a uma cozinha, que por sua vez vai dar a um pátio onde há plantas, um cão e um gato.

Camila Moisés, 28 anos, e Ana Castelo, 36 anos, vivem ali desde Junho de 2019. Recebem-nos à porta do anexo de 14 metros quadrados, tecto baixo, com uma kitchenette e uma minúscula casa de banho. A sala é que um pequeno hall.

Há uns meses houve uma inundação que lhes estragou a roupa de Verão, guardada debaixo da cama, e outros objectos. A senhoria fez obras, as paredes estão agora pintadas. Quando querem tomar banho de água quente, têm primeiro de se certificar que nenhum dos inquilinos da casa está a usar o esquentador. Pagam uma renda de 650 euros mensais, um preço manifestamente alto para o que é.

Camila e Ana estavam a trabalhar como condutoras de tuk-tuk, fazendo também papel de guias turísticas: Camila há seis anos, Ana há dois. Em meses fortes, tinham um rendimento acima dos 1200 euros, mas mesmo nas épocas baixas conseguiam ter uma vida confortável. Camila é contratada em part-time, por 20 horas semanais; Ana não passava recibos.

Em layoff até início de Junho, Camila não tinha recebido qualquer valor do seu rendimento base mensal: como a Segurança Social não transfere o valor para a empresa, esta não lhe paga, dizem-lhe.

Ana pediu ajuda à Santa Casa da Misericórdia, que também fornece um cabaz semanal, e ia tentar receber o rendimento social de inserção.

Para as duas, a vida profissional corria bem. Conseguiam suportar despesas, “viver tranquilamente, viajar de vez em quando ao fim-de-semana”, desabafa Camila. Pela primeira vez em muito tempo, Ana acordava de manhã com vontade de ir trabalhar. “Dá imenso prazer”, diz, recordando o período em que andava na estrada, convivia com pessoas, conhecia turistas. Ana já fez “de tudo”: trabalhou em hostels, em Airbnb, apanhou fruta nos campos. “Os tuk-tuk foram o melhor que encontrei nos últimos anos. É sazonal, no Verão ganha-se muito bem.” Quer dizer, “é muito competitivo na rua, nem toda a gente factura assim”, comenta.

Como todos os anos, o início de Março é uma altura em que se arranca a pensar que finalmente irá entrar mais dinheiro, que se poderão “comer umas gambas de vez em quando”. Nos últimos anos, marca o fim do Inverno e o início de uma época alta no turismo, às vezes até melhor do que muitos meses de Verão.

Tudo apontava para que 2020 fosse um ano idêntico aos outros. Afinal, 2019 terminou com resultados mais do que positivos para o turismo em Portugal: 27 milhões de hóspedes, mais 7,2% do que no ano anterior; subida de 8,1% nas receitas e mais de 336 mil empregos gerados. Com um peso de 7% na economia nacional e quase de 9% de contributo para o PIB, segundo dados do Turismo de Portugal, o turismo tem sido descrito como a galinha dos ovos de ouro da economia.

Pouco antes de ser declarado o estado de emergência, Ana e Camila começaram a perceber que havia colegas que tinham sido infectados com o SARS-CoV-2 e que, portanto, iriam ter de parar. A perspectiva daquele recomeço de ano tão esperado rapidamente se dissipou. Camila confessa. “Foi terrível a sensação de perder tudo.”

Quedas a pique
De facto, ninguém previa que os dados do turismo fossem cair tão a pique. Em Abril as compras com cartão tiveram uma descida de 97% nos alojamentos e de 85% na restauração (face ao período homólogo de 2019), refere o Banco de Portugal. Em Março, comparando com o ano anterior, os proveitos dos estabelecimentos turísticos caíram 60,2% (dados do Instituto Nacional de Estatística, INE): a Área Metropolitana de Lisboa teve o pior resultado, com mais de 65% de queda. As descidas continuaram no número de hóspedes (menos 62,3%) e no número de dormidas (menos 58,7%).

Paradas em casa, Ana e Camila perderam a fonte de rendimentos, que vinha de uma actividade que vive sobretudo à base de comissões.

A vida profissional corria bem a Camila e Ana. Conseguiam suportar despesas, “viver tranquilamente, viajar de vez em quando ao fim-de-semana”

Só que esta não é a maior dor de cabeça deste casal por estes dias. A grande preocupação é o facto de os senhorios, em plena pandemia, terem dito que não querem renovar o contrato de arrendamento, que expirava em Junho. Ana e Camila pediram para negociar o pagamento da renda. Do outro lado, dizem que a filha dos senhorios, com quem tratam de tudo, foi inflexível. “Tentei explicar que quando recebesse eles também receberiam”, conta Camila.

Contactada pelo PÚBLICO, Anabela Halpern, a filha dos senhorios, remeteu a resposta para a carta enviada às arrendatárias em que lhes pedem para deixarem as chaves e abandonarem o imóvel até ao dia 4 de Junho. “Estava à espera de uma réstia de humanidade nesta pessoa”, comenta Camila.

A lei está do lado delas. O Governo suspendeu até 30 de Setembro a possibilidade de oposição à renovação de contratos de arrendamento efectuadas pelo senhorio, mesmo que não sejam pagas as rendas. Com tudo o que se passou, dizem que só querem sair dali. “Mas quem nos aluga uma casa agora sem garantias?”, desabafam. Estão, por isso, dispostas a lutar até às últimas consequências pelos seus direitos.

Horas depois de chegarem à esquadra da PSP a 22 de Maio, Ana e Camila conseguem sair com a queixa feita. Acusam a filha do senhorio de assédio e de entrar em casa frequentemente sem bater à porta ou avisar. “Não percebemos que estávamos a ser alvo de abuso de poder desta pessoa senão há pouco tempo”, comenta Ana.

Segundo a associação Habita, ao longo desta pandemia têm-lhe chegado relatos sobre senhorios que cortam a água ou a electricidade ou fazem outro tipo de bullying quando as pessoas têm direito a permanecer na casa. “As consequências legais de não avisar cinco dias antes o senhorio que não se pode pagar a renda não dão origem a despejos ou à oposição de renovação de contrato”, explica Rita Silva, da Habita. “Aconteceu muitas vezes as pessoas fazerem uma comunicação verbal por desconhecimento da lei, simplesmente telefonaram aos senhorios a informar, mas como não escreveram uma carta isso está a ser usado contra eles. Aliás, mesmo fora do período da pandemia, o despejo só pode ser efectuado se houver quatro meses seguidos de renda em atraso.”

(Aconselha, de resto, toda a gente a pagar sempre a renda através de transferência bancária ou de outro meio que sirva de comprovativo.)

No pátio à frente do anexo, Ana e Camila conversam com Marcos Moura, amigo que está de partida para Braga. Marcos arrendava um quarto na casa principal por 360 euros, um pequeno espaço com casa de banho partilhada. Ele decidiu que ia sair antes de o contrato terminar em Agosto, porque sentiu que a pressão psicológica feita pela senhoria era grande e preferiu aceitar acolhimento de uma amiga. Investigador em Antropologia, tem uma ajuda da Universidade de Lisboa e irá procurar emprego noutra cidade, a norte.

Antes de trabalhar nos tuk-tuk Camila estudou contabilidade, uma área que pondera retomar, se o turismo “não se reerguer”. “Gosto muito da profissão de animadora turística, de falar com pessoas, desenvolver línguas, de estar ao ar livre, de conduzir.”

O apoio da Santa Casa da Misericórdia foi fundamental, dizem Ana e Camila, não apenas pelo lado financeiro, mas também pelo apoio emocional com o processo da casa

Mas afirma: “Muita gente já dá este ano como perdido.” Tem uma faceta optimista, apesar de muitos colegas da área terem ido procurar alternativas. “Ontem passámos pelas esplanadas e já estão cheias. Tenho esperança.”

Ana andou a enviar currículos com frequência para vários locais, desde supermercados à apanha de fruta. Não teve respostas. “Neste momento faria qualquer coisa”, diz.

Em dias de calor, Camila fala das saudades de ir à praia, passar um fim-de-semana fora; mas está fora de questão. “Todas as economias são para salvaguardar a nossa situação, não sabemos quanto tempo mais isto vai durar.”

Tinham projectos que ficaram de lado, pelo menos por enquanto: comprar um tuk-tuk e ir para fora de Lisboa fazer passeios, desenvolver um turismo rural. “Foi tudo por água abaixo”, diz Ana. Camila afirma: “O sector do turismo foi arrasado. Estamos às cegas, não temos nada em que nos basear, porque isto nunca aconteceu antes.”

27 milhões
Número de hóspedes em Portugal em 2019, mais 7,2% do que no ano anterior

Têm-se ocupado a jogar, a ler e a meditar. Fizeram aulas de ioga, churrascos, jardinagem. O apoio da Santa Casa da Misericórdia foi fundamental, referem, não apenas pelo lado financeiro, mas também pelo apoio emocional com o processo da casa.

É quinta-feira e está na altura de ligar a pedir as coisas para o cabaz semanal: não precisam de azeite, que veio na semana passada, ainda têm bolachas, e massas, querem legumes, o “mais variado possível”, e também manteiga.

A pandemia e a infecção são assustadoras, dizem-nos. “Mas não tão assustador quanto a perspectiva de que toda a tua vida pode estar arruinada.”

É hora de Marcos se pôr à estrada. Há abraços e lágrimas. “O Marcos foi um grande suporte”, dizem, comovidas.

Está planeado o regresso ao trabalho a 15 de Junho. As expectativas? Regressar com “uma incerteza brutal”, até porque Ana terá de desistir de receber o RSI ou encontrar outro trabalho. “Não sei exactamente o que fazer, voltar a trabalhar no tuk-tuk é quase uma miragem agora, apesar de já ver alguns colegas na rua — sei que estão a fazer zero, é triste.”​ Camila acredita que a partir de Julho haverá turistas: “Claro que não espero a mesma afluência de antes, mas acredito que haverá algum trabalho.” “Só não sei se será o suficiente para pagar as contas e conseguir viver com tranquilidade.”

Depois da explosão do turismo, o vazio
Descemos a colina até Alfama. Manhã de Maio e por esta altura, noutros anos, já andariam centenas de estrangeiros nas ruas. Nos últimos tempos, muitos vinham dos cruzeiros. Em alguns prédios já se vêem placas com “vende-se” ou “arrenda-se”. Há lojas e cafés a fechar definitivamente. As ruas estão desertas, apenas alguns moradores circulam. O bairro que foi um dos mais simbólicos do boom do turismo está moribundo.

Atrás do balcão da Tasca São Miguel, de máscara, Joana Cruz, 38 anos, lembra a altura em que caminhava na rua e ouvia fado ou pessoas a falar. Antigamente — antes da pandemia — queixavam-se da quantidade de turistas num bairro que foi “descaracterizado”, porque “muitas pessoas foram obrigadas a sair, os senhorios preferiram alojamentos locais”. Agora, estão “num marasmo”. Nota-se o desânimo num sítio onde vivem sobretudo idosos. “Hoje o que resta do bairro são muito poucas pessoas”, a clientela não dá “para cobrir os estabelecimentos comerciais”, afirma.

Quem viu esta tasca não acredita nas diferenças em relação a agora, refere. “A louça era até cima, não se conseguia entrar. Havia alturas em que gastávamos quatro barris por dia.”

Agora é preciso ir devagar, afirma. “E rezar para que os turistas voltem: que voltem, mas que não descaracterizem mais, porque isto é uma tristeza muito grande.” A acrescentar à ausência de turistas veio o anúncio de que não haveria festas de Santo António — muitos moradores, no mês de Junho, faziam dinheiro para o resto do ano com as vendas na rua, afirma.

O discurso geral é atravessado por um misto entre a nostalgia por um bairro antes da explosão do turismo e um bairro antes de um turismo tornado moribundo pela pandemia.

8,1%
Percentagem da subida das receitas em 2919 nos negócios ligados ao turismo

Antes de gerir a tasca, Mário Cruz, 55 anos, teve cinco frutarias em Alfama. Agora, “o bairro está numa situação catastrófica, está a ser muito difícil”. Na tasca baixaram “praticamente 50%” os preços. “Para atrair as pessoas locais, porque não há mais ninguém de fora.”

Mesmo assim, Mário Cruz está “muito pessimista”. A renda que pagava era alta, está a tentar pagar alguma parte, mas há outros encargos. “Acho que o bairro vai perder 70% a 80% do comércio. Estávamos no boom do turismo, diversos empresários aceitaram rendas enormes que não vão conseguir pagar, as casas de fado também ainda não estão a abrir. O espírito é péssimo”, comenta. “Este ano está perdido. No Verão facturávamos para aguentar o Inverno, quando os bairros históricos ficavam vazios. Se não facturarmos agora, no Inverno muito mais casas vão fechar. Enquanto não abrirem fronteiras … Quem é que vai atrair o turismo nacional para uma cidade? Nunca vamos poder sobreviver, se não houver mais ajudas.”

“O grande problema é que não há portugueses em Alfama. Esta rua tem sete habitantes, o resto está tudo sem ninguém…”

Mário Cruz, dono de um café em Alfama, referindo-se à Rua de São Miguel
Empresário em nome individual, estava previsto receber um subsídio de 490 euros e só depositaram 270 euros, ao mesmo tempo que já lhe cobraram a Segurança Social. “Com seguros, rendas, contas, como é que vamos conseguir suportar?”

O prédio onde se situa a tasca é praticamente ocupado por alojamento local e ficou vazio; na rua é este o cenário. “O grande problema é que não há portugueses em Alfama. Esta rua tem sete habitantes, o resto está tudo sem ninguém…”

Só na Rua São Miguel há quatro lojas comerciais fechadas, afirma. O Amarelo 28, onde se vendem produtos turísticos totalmente portugueses, é uma delas. Dia 12 de Março, um sábado, o dono, Rui Sampaio, fechou-a. Mal sabia que seria de vez. Atrás da porta de vidro, Sampaio empacota os objectos que estavam nas vitrines: louça, bebidas, sabonetes, quadros, objectos de artesanato.

Aos 56 anos, fala com melancolia. Mostra um mapa onde cada visitante que entrava podia colocar um pin no local de onde vinha: ao todo tem 139 países. “Ultimamente, cada vez que havia uma pessoa de nacionalidade nova [que não estava assinalada] fazíamos uma festa. A última foi da Gronelândia.”

Até aos 50 anos Rui Sampaio esteve na área da informática, até que decidiu “procurar qualquer coisa diferente” e idealizou o “projecto ideal para os próximos anos”: foi então que há seis anos abriu a loja pela qual pagava uma renda muito alta — que não quer especificar. Mesmo nos momentos mais fracos do ano, “continuava a manter níveis de satisfação elevados”.

No final de Maio, Rui Sampaio, antes ligado à área de informática, retirava as placas de identificação da loja Amarelo 28, que fecha definitivamente

Vendia produtos de artistas e de artesãos locais, trabalhava com um total de 60 artistas. “Cinquenta dependiam disto para ir ao supermercado quando lhes pagava”, refere. A decisão de encerrar a loja física foi, por isso, difícil — irá manter-se no comércio online e tentar escoar o stock, ficando num espaço de cowork, onde pagará “seis vezes menos”. Mesmo o pior cenário que traçou no seu plano de negócio não implicava fechar definitivamente as portas. Descreve algumas pessoas que deixaram uma vida confortável para se dedicarem a produtos de turismo e que neste momento estão a pintar prédios.

A pandemia chegou exactamente numa altura em que ia começar o pico. “Março, Abril e Maio nos últimos anos tem sido época alta. Muita gente não se apercebe disso, mas Julho e Agosto perderam. Isto [Alfama] hoje está irreconhecível. Metade das lojas não vão abrir”, comenta.

Mesmo o pior cenário que Rui Sampaio traçou no seu plano de negócio não implicava fechar definitivamente as portas. Descreve algumas pessoas que deixaram uma vida confortável para se dedicarem a produtos de turismo e que neste momento estão a pintar prédios

Já há algum tempo que trabalhava sozinho na loja. Não fechar era “estar a adiar um problema”. A almofada não chega para as expectativas de retoma da normalidade do turismo. “Tenho a certeza que não vai recuperar tão cedo. Vai voltar, mas não será nos mesmos moldes; não será tão massificado.”

Não foi elegível para o apoio do Estado aos sócios gerentes; morador na Graça, tem vindo com regularidade ao bairro e ainda não viu um turista a passar na rua. Encaminha-nos para a porta da loja, aponta e diz: “Imagine a alegria de uma esplanada, cheia de vida… Isto era uma gelataria, ia ser uma creperia. Ali era uma pastelaria que vendia pastéis de nata e telefonaram-me a dizer que já não vai abrir. Ali em baixo conheço quatro ou cinco casas nas mesmas condições. As pessoas vêm-se despedir e dizem: ‘Nunca pensei ver esta Alfama tão vazia, tão triste e tão pobre. Isto vai ser um período de trevas.’”

De guia para o voluntariado
Algures numa rua perto de Alfama, Rui Sampaio pode bem ter-se cruzado com Emanuel Cassama, 36 anos. Este jovem estava há cinco anos a conduzir tuk-tuk, tinha um bom salário no final do mês — algo que conjugava com outros trabalhos em part-time. 

Neste momento o seu regime é em layoff, mas como o seu salário era baseado nas comissões ou gorjetas, o rendimento desceu radicalmente. Não chega para as despesas, nem para enviar dinheiro à família na Guiné-Bissau. Por isso está a trabalhar como assistente de cozinha numa churrasqueira no Seixal. Já antes tinha outro trabalho num restaurante, ao mesmo tempo que era o “primeiro tuk-tuk a chegar à Praça da Figueira”. “Às vezes dormia três horas e meia”, revela. Chegou a dormir no tuk-tuk numa altura em que trabalhava na Azambuja, onde fazia manutenção numa fábrica em horário nocturno. “Quando temos família, temos responsabilidade.”

Emanuel Cassama, 36 anos, conduziu um tuk tuk durante cinco anos. Em 2019, o turismo gerou mais de 336 mil empregos

Baixar os braços não é com ele. Está a tentar não se desmoralizar com o que aconteceu, encarar a pandemia como algo que “já estava escrito”.

Formado em Hotelaria e Turismo no Brasil, onde viveu dez anos, conta que fala seis línguas — português, inglês, francês, espanhol, italiano, árabe. Gostava do trabalho que tinha e recorda com entusiasmo a parte em que fazia de guia turístico. Começou por fazer as folgas dos outros, até que foi ficando e se tornou efectivo. “Chegava a casa cansado, mas uma pessoa tem de manter o foco.” Um dos seus desejos é trazer a família da Guiné-Bissau para Portugal.

Mal parou de trabalhar nos tuk-tuk dedicou-se ao voluntariado, fazia refeições para si e punha outras tantas em caixas para dar a sem-abrigo e a quem precisasse, na Praça da Figueira e no Martim Moniz. Mostra um vídeo no seu telemóvel onde se vê a distribuição de pequenas caixas numa Praça da Figueira em tempos de estado de emergência, onde praticamente só estava quem não tem casa. O seu sonho é um dia vir a criar uma fundação na Guiné-Bissau para ajudar crianças. Quer também combater a prática da mutação genital feminina no seu país.

Emanuel Cassama não é de baixar os braços. Mal parou de trabalhar dedicou-se ao voluntariado, fazia refeições para si e punha outras tantas em caixas para dar a sem-abrigo e a quem precisasse, na Praça da Figueira e no Martim Moniz
Ainda não teve ainda dificuldades económicas, porque não parou de trabalhar mais do que três dias. “Se precisar, peço ajuda; mas neste momento prefiro dar prioridade aos outros que precisam.” Não tem dúvidas: “Um dia vou vencer.” Por enquanto, passa os dias na cozinha da churrasqueira. Na tarde em que o conhecemos estava a cortar batatas.

Em compasso de espera
Não é apenas na recepção do Chiado 44, uma guest house em pleno coração de Lisboa, que Pedro Costa, 36 anos, espera. Em layoff, aguarda o desenrolar dos acontecimentos pós-pandemia para perceber o que lhe irá acontecer em termos profissionais. Tem expectativa de ficar na mesma empresa onde trabalha há três anos, mas tem a noção de que o futuro é incerto.

O hostel fica mesmo em frente ao Ministério da Economia diante do qual frequentemente vê pessoas a manifestarem-se e nesta terça-feira não é excepção.

Este alojamento local (como está registado) está fechado desde finais de Março. Atrás da pequena escrivaninha onde faz o trabalho de recepção, gere as reservas e leva as malas dos hóspedes, Pedro Costa conta que trabalhou numa portagem da A16, durante oito anos, em horário nocturno. Antes disso estudou música no Conservatório Nacional: piano, canto, formação musical. Fez um curso de produção até que decidiu ir para as portagens, deixar de lado a música e mais tarde dedicar-se ao turismo. Neste momento está a terminar o primeiro ano do curso de Gestão Turística na Escola de Hotelaria e Turismo do Estoril.

Pedro Costa, 36 anos, está em layoff
Quando recebeu a notícia de que ia para layoff, não ficou surpreendido. Por essa altura, já tinha feito dezenas de cancelamentos. “Desde o início de Março que começámos a notar que a procura tinha diminuído.”

O isolamento social interferiu do “ponto de vista psicológico”. Ficou em casa com a mãe, com quem voltou a viver há uns anos para lhe dar apoio, mas sente falta do trabalho. “Sou uma pessoa activa.” Ocupar o tempo não foi um problema pois tem tido aulas à distância. Sente é falta de convívio com amigos, outros familiares — “e do trabalho”, desabafa.

Uma das pesquisas que fez para a escola foi justamente em temas relacionados com a pandemia. Identificou semelhanças com o impacto que os ataques terroristas têm no turismo, quando as pessoas ficam com medo de viajar para determinado local. O mesmo se irá passar agora, prevê. “Até que as pessoas se sintam confortáveis novamente vai levar algum tempo.”

Há um ano, por esta altura, provavelmente estaria a gerir uma quantidade enorme de reservas, a receber hóspedes. Na rua veria imensos turistas a passear. Caminhamos com ele na Calçada do Combro; em frente ao Elevador da Bica, onde se amontoavam turistas, não há quase ninguém a não ser quem espera à porta do supermercado pela sua vez. Descendo a rua, andam-se uns 300 metros e vários negócios acabaram: uma loja que parece ter sido de artesanato tinha acabado de abrir antes da pandemia, mas informa que já não vai reabrir; um alojamento local de onde foi tirada a placa à porta; uma mercearia com as grades corridas…

“Até que as pessoas se sintam confortáveis [a viajar] novamente vai levar algum tempo”

Pedro Costa, recepcionista numa guest house
“Há centenas de postos de trabalho a serem extintos na área. Não seria extraordinário pensar que poderia acontecer comigo”, comenta.

Os donos não sabem quando o Chiado 44 irá abrir, ou se o irão fazer noutros moldes. João Tarrana, um dos sócios, explica que uma das hipóteses é converter alguns dos quartos em aluguer de vários meses. É quase certo que irão precisar de menos funcionários do que os cinco com contrato que agora têm.

Com um peso de 7% na economia e quase de 9% de contributo para o PIB, dados do Turismo de Portugal, o turismo tem sido descrito como a galinha dos ovos de ouro da economia

Sócio de três empresas que gerem este tipo de alojamentos em Lisboa — um deles não abriu; outro tinha acabado de abrir duas semanas antes do estado de emergência —, diz que será necessário fazer obras neste espaço do Chiado para ter áreas comuns e cozinha. Isso que exige algum investimento. De resto, tem ainda de negociar com os senhorios. Não acredita que antes da próxima Primavera o turismo recupere. É também preciso perceber como se irá comportar o mercado interno, avisa.

Defende que é necessário uma “junta de salvação nacional para o turismo”: “Não estamos a falar apenas do interesse deste prédio, mas de uma economia. Foi o turismo que nos tirou da crise. Isto tem de ser rápido, porque há abutres à espera que muitas pessoas caiam para ficar com os negócios de forma barata.”

A pandemia, descreve, foi “uma travagem brusca que apanhou todos de surpresa”: “Não foi uma bomba atómica porque não destruiu tudo, mas foi uma bomba electromagnética que nos deixou parados.”



A revolta e a resiliência de três mulheres a quem tudo o turismo levou

Isabel Oliveira foi dispensada do hotel onde fazia limpezas e entrou num sindicato pela primeira vez. Marisa Ferreira e Alba Plaza tinham estruturado a vida com o turismo como base. Um vírus virou-lhes os dias do avesso — como se começa de novo?

Mariana Correia Pinto (texto) e José Sarmento Matos (fotografia) 7 de Junho de 2020, 6:42

Isabel Oliveira cansou-se de alimentar injustiças a silêncio. Aos 63 anos, numa sexta-feira 13, foi dispensada do trabalho no Hotel Ipanema Porto numa conversa de minutos, durante a pausa de almoço. “A gerente chegou à minha beira e disse-me: ‘Não precisamos mais da senhora por causa da covid-19’.” Estávamos em Março, Portugal contabilizava alguns infectados e estava a três dias de registar a primeira morte. Mas a trabalhadora da empresa de serviços de limpeza Keepshining não antevira aquela possibilidade: “Os hotéis tinham de se manter limpos, nunca esperei ser apanhada nisto…” E reagiu: recusou ler os papéis trazidos pela gerente e, a conselho do genro, continuou o serviço tarde fora. E sábado e domingo.

No dia da sua folga, por sugestão de uma amiga da filha, bateu à porta do Sindicato dos Trabalhadores da Indústria de Hotelaria, Turismo, Restaurantes e Similares do Norte, ainda sem saber da transformação irreversível que se instalara em si. “Isto foi uma lição de vida. Estou farta de perdoar e de ser enganada. Não podem fazer pouco dos trabalhadores”, afirma, enquanto caminha para o autocarro, depois de mais uma reunião no sindicato que não conhecia e ao qual jura agora ligação eterna. “Com esta idade, abri finalmente os olhos… Agora não me calo, vou até ao fim.”

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A voz de Isabel Oliveira varia entre firmeza e comoção, os olhos humedecidos não velam a angústia. Nunca antes havia meditado sobre a dependência do seu trabalho em relação ao turismo. Não precisava. Os dias repetiam-se, corridos, com a farda preta vestida e a missão de limpar os quartos do hotel de quatro estrelas como foco. Sempre gostou do serviço. Para juntar uns “trocos” ao rendimento, fazia também domicílios em casa de pessoas mais velhas — mas esse extra foi o primeiro a desaparecer, quando as famílias cancelaram cuidados assumindo o medo do novo coronavírus. Isabel resistia nas limpezas — até ao dia em que lhe violaram a crença na dedicação ao ofício como fórmula para tudo dar certo: “Nunca tive medo ao trabalho. Dei sempre tudo à casa e não me queixava. Para quê?”

O drama desta conimbricense, chegada ao Porto há mais de 40 anos por causa de um namoro, tornou-se história repetida nos últimos três meses. “Aconteceu a milhares de trabalhadores em todo o país”, atalha Francisco Figueiredo, sindicalista responsável pela contratação colectiva. O “desconhecimento” das pessoas em relação aos seus direitos continua a ser grande e isso é faixa livre para “muitos abusos”: palavra de quem viveu o sector por dentro durante décadas e assumiu a batalha de tirar alguma sujidade da engrenagem: “O turismo podia ser bom, se as regras fossem respeitadas.”

Isabel Oliveira: "Fui muito abaixo... Mas parar é morrer"
Desde o início da epidemia, a porta do sindicato foi aberta a todos, associados ou não. De lá saíram 166 pedidos de intervenção para a Autoridade para as Condições do Trabalho. Só dez tiveram resposta. O despedimento de Isabel Oliveira será impugnado, a reintegração pedida. Mas, para já, a trabalhadora recebeu apenas 200 e poucos euros do trabalho de Março. E nada mais.

Isabel Oliveira entrou num sindicato pela primeira vez na vida
Isabel cancelou o contrato de arrendamento do seu apartamento, mudou-se para casa da filha. Entristeceu. À insistência da empresa para “assinar papéis”, respondeu firmemente ter indicações para não o fazer. E quando do outro lado da linha perceberam o apoio de um sindicato, a comunicação findou. “Nunca mais me ligaram…” Ao PÚBLICO, a Keepshining também não respondeu.

O regresso do sotaque
Nas ruas do Porto, o sotaque das gentes da cidade voltou a ser o mais ouvido. O silêncio do burgo, típico das semanas de estado de emergência, foi quebrado, nas últimas semanas, por decibéis que anunciam a retoma possível. Cafés, restaurantes e comércio reabriram, alguns artistas de rua regressaram, o trânsito cresceu, o transporte público recebeu mais gente. Mas os turistas esfumaram-se, deixando artérias inteiras com edifícios vazios e centenas de negócios tiveram a sua certidão de óbito.

Marisa Ferreira e Alba Plaza tinham um deles. A dependência dos turistas não foi programada, mas era quase total: 95% dos clientes dos seus workshops de pintura de azulejos vinham de fora. A produtora cultural portuguesa e a designer gráfica espanhola sorriem e falam num fracasso da ideia original: “Queríamos mostrar aos portugueses a importância deste património, a dificuldade do processo de criação. Para aprenderem a valorizá-lo”, explica Marisa, de 40 anos. Os de cá não se interessaram, os de fora apaixonaram-se.

Num rés-do-chão de uma rua da freguesia do Bonfim, limpam mesas, cadeiras, quadros. É o material retirado do atelier onde se haviam instalado e do qual foram obrigadas a sair há dias: “Já não podíamos pagar uma renda de 500 euros.” A frase de Alba Plaza, madrilena de 38 anos chegada ao Porto há quatro anos, não impõe uma sentença. Mas assume a inevitabilidade da mudança. Quando, em 2016, a curiosidade dela não encontrou respostas no conhecimento de Marisa Ferreira, as duas juntaram-se para esgravatar arquivos e livros de onde saíssem explicações. “Quando tinham surgido os azulejos nas fachadas do Porto? Por que razão havia tantos destruídos? Havia algum museu na cidade?”

O seu trabalho à volta dos azulejos do Porto ruma a outro lugar
A escassez de informação e a vontade de proteger aquele património fê-las burilar uma ideia: tornaram-se “caçadoras” de azulejos na cidade e construíram um arquivo online — a sonhar com um museu físico. Fotografam edifícios, os padrões dos azulejos, digitalizavam, disponibilizam no Instagram e no site (em reformulação, assim o permita um crowdfunding em andamento). Têm mais de 250 exemplares. E vão continuar.

“A maioria dos portugueses não sabe que Portugal é o país do mundo com mais edifícios cobertos com azulejos”, lamenta Marisa Ferreira. No Bonfim, há ruas inteiras com casas assim: mas muitas perderam peças, outras substituíram os originais por réplicas: “Isto é horrível”, avalia Alba Plaza ao passar a mão num edifício recuperado onde o antigo foi substituído por azulejos “chapa cinco”. Se há medalha que entregam ao turismo é a de ter contribuído para a reabilitação do Porto e para o renascimento de trabalhos de artesãos aparentemente condenados ao fim. O problema? “Tudo gira à volta do dinheiro. Temos uma arquitectura fast food, de consumo imediato, ninguém pensa no que vai acontecer dentro de dez anos.”

Às vezes, pensava no projecto e na cidade e ficava optimista. O turismo não ia desaparecer pelo menos por uns dez anos. Tinha finalmente alcançado a estabilidade…
Marisa Ferreira, produtora cultural

Uma finlandesa baptizou-as um dia como “as rebeldes do Porto”. Marisa e Alba não buscam polémicas, mas não as fintam a todo o custo. E denunciam “crimes” quando os vêem: retirar azulejos das fachadas, recorde-se, é proibido por lei desde 2017. Pelo dever assumido de defender este material de cerâmica, já escreveram à União Europeia e à UNESCO. As duas entidades aconselharam um contacto com a autarquia local: mas nunca uma reunião foi agendada. “O património tem de estar acima do dinheiro”, pede Marisa Ferreira.

O foco na paixão por este material faz esquecer por momentos a epidemia que tudo mudou. A conversa vai longa quando Marisa Ferreira retoma o propósito do encontro: “Nunca pensei viver uma crise destas…” Percepção de quem se habituou a “viver na precariedade” do mundo artístico. E até foi vítima do turismo antes de viver dele, quando em 2017 foi “gentrificada” para fora do Porto. “Às vezes, pensava no projecto e na cidade e ficava optimista. O turismo não ia desaparecer pelo menos por uns dez anos. Tinha finalmente alcançado a estabilidade…”

Marisa e Alba tornaram-se “caçadoras” de azulejos na cidade e construíram um arquivo online — a sonhar com um museu físico

A Isabel Oliveira, o relógio parece agora mais lento. “Não me dou em casa”, assume atrás da máscara branca imposta pelo vírus na origem da história. Pelo vírus bode expiatório: “A empresa aproveitou-se da covid”, acusa. Entre a preparação das refeições e os passeios com o cão, Isabel vigia a caixa de correio no anseio de notícias e folheia jornais em busca de novo emprego. “Fui muito abaixo… Mas parar é morrer.”

Marisa e Alba vão compor o novo espaço, mais pequeno e temporário, como se o pretérito tivesse volta. Uma turista alemã fez há dias uma reserva para um workshop no próximo mês. Uma casa ali próxima está a ser reabilitada e encomendou-lhes réplicas de azulejos para recuperar o ar de outros tempos. Encomendas parecidas para o exterior surgem timidamente. “Vai ser diferente”, declara Alba Plaza num autoconvencimento. Será suficiente?


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