ENSAIO
A pandemia e o capitalismo numérico
A verdade é que este período de luta pela sobrevivência
física não gerou até agora nenhum sobressalto político ou espiritual, nenhuma
tomada de consciência da necessidade de mudar de vida. Não gerou esperança no
futuro.
José Gil 12 de
Abril de 2020, 18:00
A pandemia da
Covid-19 pode vir a modificar radicalmente o modo de vida das sociedades
actuais, pré e pós-industriais. Um factor decisivo dessa transformação serão as
novas tecnologias, que virão a ganhar uma importância maior na economia e nas
relações sociais. Formar-se-á um novo tipo de subjectividade, a “subjectividade
digital”, já em gestação nas sociedades actuais, mas que, no futuro, se
colocará no centro do novo “capitalismo numérico”, como condição essencial do
seu funcionamento. Entretanto, vivemos uma crise de transição, que compromete
as próprias subjectividades.
Pandemia e
desterritorialização
Mesmo antes de
ser declarada a quarentena em Wuhan, sete milhões de chineses saíram da cidade
e espalharam-se pelo mundo. A região da Lombardia, na Itália, que mantinha voos
directos para a região mais contaminada da China, foi rapidamente atingida. A
França, a Alemanha, a Espanha, o Reino Unido e, muito rapidamente a Europa,
foram infectados. Alastrando a todos os continentes, a pandemia cobriu o
planeta em poucos meses. Uma disseminação tão célere e imprevisível deveu-se às
características do novo vírus, mas só foi possível graças à deslocação intensa
de indivíduos e grupos, através da rede extraordinária de comunicações e
transportes que liga hoje os países uns aos outros.
Trata-se de uma
torrente imparável de gente sempre a ir e a vir, em que participam homens de
negócios, políticos, universitários e estudantes, turistas (em turismo de massa
ou individual) e multidões que se deslocam para assistir a acontecimentos
culturais, desportivos ou religiosos, sem esquecer os milhões de migrantes
fugindo da guerra e da fome. Estas vagas imensas de pessoas que vão de um
território a outro, alimentam a desterritorialização geral, contínua, que não
cessa de crescer. Ao disseminar-se, o vírus da pandemia não fez mais do que
percorrer o mapa mundial da desterritorialização.
A pandemia
resultou da desterritorialização, é a manifestação extrema da doença
tecno-capitalista que há mais de dois séculos se infiltrou nas sociedades
humanas. E que, tal como um vírus, vai contagiando território após território,
país após país, continente após continente: é o capitalismo global que
transforma a Terra inteira, submetendo-a, como um contágio epidémico, ao seu
funcionamento. Se o novo coronavírus prolonga o movimento desterritorializante
da economia capitalista, é porque esta é, no seu desenvolvimento e propagação,
propriamente pandémica.
A primeira
reacção contra a pandemia visou, logicamente, conter a sua proliferação:
contrariando ao máximo a desterritorialização, impôs-se a quarentena a centenas
de cidades, e confinaram-se os cidadãos nos seus locais de residência.
Fecharam-se aeroportos, estações de comboios, portos e estradas, sítios onde as
aglomerações de pessoas aumentam os riscos de contaminação. Porque a
desterritorialização implica não apenas a deslocação, mas também o seu
contrário complementar, os mais variados ajuntamentos de “pessoas sós”, que se
encontram nas gares ferroviárias ou nos festivais de música. Cancelaram-se
eventos de toda a espécie, proibiram-se saídas e passeios. Numa palavra,
reterritorializaram-se os indivíduos nas suas casas, incentivando-os a cultivar
um tipo de vida esquecido, por assim dizer “arcaico”, familiar e mais “humano”,
que o regime habitual de trabalho havia sempre impedido.
O confinamento
universal e a reactivação de modos de vida supostamente harmoniosos, mas já
erodidos e ineficazes, levam à formação de novas subjectividades, mais
adaptadas à “economia numérica”. A generalização do teletrabalho, a
digitalização máxima dos serviços e a virtualização das deslocações e das
relações sociais terão, muito provavelmente, consequências drásticas nas
transformações da sociedade.
Se, até aqui, se
alargava a desfasagem crescente entre o desenvolvimento da economia financeira
global e os processos de subjectivação – que misturavam subjectivações digitais
e subjectivações arcaicas, estas ligadas ainda às sociedades industriais e
pré-industriais -, agora o vazio parece poder ser preenchido. A época de
transição chega ao seu fim.
A nossa ideia é
simples: a pandemia será o agente mediador da passagem de uma fase histórica do
capitalismo (o capitalismo industrial-financeiro) – cada vez mais perturbada e
caótica, cada vez menos viável no contexto geral da sociedade e do Estado –
para uma outra fase em que se procuram os ajustamentos necessários entre as
exigências económicas e as subjectividades que, em todos os domínios, do
teletrabalho às práticas de lazer, lhes correspondam adequadamente.
Conseguir-se-ia,
assim, um equilíbrio, sem dúvida precário, mas que asseguraria o
desenvolvimento sem entraves do capitalismo digital: eis o que está inscrito,
eis o que visa o impulso imparável da dinâmica capitalista. Evidentemente,
serão precisas subjectividades apropriadas, com o máximo de consenso colectivo
e individual, e o mínimo de conflito.
Terá sido
necessário o surgimento de uma pandemia mortífera para adaptar as
subjectividades às novas exigências do capitalismo global. A Covid-19 seria o
trampolim a catapultar a colectividade para um nível superior, o da sociedade
digital. Em vez de progredir gradualmente, passando por fases mediadoras, a
pandemia vai obrigar a um salto brutal, impondo indiscriminadamente a
digitalização de todas as actividades. Inverter-se-ia a ordem de subordinação:
o digital, que estava submetido à hegemonia de hábitos ligados ao corpo físico
(a desterritorialização obrigava os corpos a deslocarem-se ou a
desapropriarem-se de si próprios), tornar-se-ia dominante, condicionando os
outros actos sociais, quando não os suprimia.
O que se
procurava, afinal, era que as gerações pré-pandémicas, com a sua cultura
humanista, os seus hábitos jurídicos, a sua consciência judeo-cristã, não
entravassem mais o livre funcionamento da economia. Só pelo número de mortos
idosos, a pandemia já ajudou a limpar o horizonte. Mas foi sobretudo pela
construção de novas práticas, novos constrangimentos, novos hábitos de prazer a
que obrigou o isolamento social, que as subjectividades digitais poderão
florescer e dominar. Serão subjectividades desterritorializadas, de certo modo,
nómadas e transparentes, mas reterritorializadas no digital.
A inteligência
artificial terá sem dúvida um papel decisivo neste processo de sedentarização.
As novas subjectividades caracterizar-se-ão pela submissão e adequação dos
corpos às (ou mesmo a sua exclusão das) tarefas da economia digital, e a
permeabilização das mentes às ordens e necessidades da vida virtual. A nova
subjectividade comportará capacidades passivas de obediência voluntária e
capacidades activas de funcionamento programado. Estas características estavam
já presentes na subjectividade digital pré-pandémica, que descrevemos acima.
Vivemos, neste
momento, dois tempos diferentes, em simultâneo: o nosso presente da vida
confinada e o tempo da espera que a pandemia acabe. Nem um nem outro, nem os dois
sobrepostos, ajudam a agir. Alguns pensam que este período de isolamento deverá
ser aproveitado para tomar consciência da necessidade de mudar de vida,
recusando voltar à “normalidade”. A normalidade representa o tecno-capitalismo
e a vida caótica que ele engendra.
Através das
fragilidades e insuficiências das políticas de saúde, esta crise revelou in
vivo a desigualdade que condena tendencialmente os pobres à contaminação e à
morte, a indiferença dos sistemas económicos perante o sofrimento e a doença,
ou a falta de solidariedade e de coesão dos Estados membros da União Europeia.
Mas mais profundamente, ela mostrou, segundo muitos, a futilidade e o vazio da
vida sem sentido em que os povos viviam antes da pandemia. Apareceram então – e
continuam a aparecer – certos pensadores, laicos e religiosos, que afirmam ser
esta pandemia a ocasião única para operar “revoluções” ou “reformas interiores”
ou “conversões” radicais que trouxessem uma mudança radical no modo de vida da
humanidade.
A verdade é que
este período de luta pela sobrevivência física não gerou até agora nenhum
sobressalto político ou espiritual, nenhuma tomada de consciência da
necessidade de mudar de vida. Não gerou esperança no futuro. No nosso país, a
unidade nacional foi reforçada apenas no sentimento colectivo de compaixão
pelos mortos e doentes, e pela gratidão para com os médicos e enfermeiros.
Talvez um pouco, também, pela adesão geral à política do governo.
Não se conceberam
nem novos valores éticos, nem novos programas económicos ou práticas políticas.
E nem a violência brutal do sofrimento e da morte nos hospitais, escancarada no
espaço público mediático, conseguiu varrer as imagens enganadoras com que nos
habituámos a lidar com a realidade. O confinamento não favoreceu a reflexão e a
acção, pelo contrário, suspendeu o tempo, a vida activa e o pensamento. O
contágio temido, imaginado, alucinado, foi o único acontecimento que
condicionou as emoções e os gestos quotidianos.
Se, com o
confinamento, fugimos à desterritorialização desabrida que vivíamos antes da
pandemia, não nos reterritorializaremos, afinal, senão no digital. Quando se
diz “estamos todos juntos nesta luta” ou “só com o esforço de todos poderemos
vencer o vírus”, este “todos” que compreende sobretudo os confinados constitui,
no fim de contas, uma realidade virtual. Estamos, virtualmente com todos e com
a comunidade, em que participamos à distância, separando-nos dela. É toda a
vida que se virtualiza.
De resto, o
confinamento não foi e não é um tempo de expansão e alegria. Com as ruas
desertas, as cidades silenciosas e o sofrimento gritante dos doentes, a casa em
que nos fechámos não constitui, propriamente, um lugar de entusiasmo e criação.
Nem propício à meditação metafísica, nem à elaboração de grandes projectos de
vida. Afinal, a grande maioria das pessoas quer “voltar à normalidade” (ou, a
uma “nova normalidade”, como diz Cuomo, o governador do estado de Nova Iorque).
Ao ver o desejo
premente e angustiado dos políticos de certos países da Europa, de acabar,
neste mês de Abril, com o isolamento obrigatório para pôr a economia a
funcionar, constata-se que se está a preparar tudo para voltar e retomar – por
mais difícil que venha a ser – o estado de coisas anterior. A economia versus a
saúde, como se tem dito, ou a vitória da economia contra a saúde (nos vários
sentidos da palavra). O tecno-capitalismo voltará a funcionar, talvez não como
dantes, talvez como “capitalismo numérico”, construindo rapidamente novas
subjectividades digitais. Não escaparemos ao seu poder de preservação,
auto-regeneração e metamorfose.
Resta-nos ver
mais longe, e prepararmo-nos, com o máximo das nossas forças de vida: esta
crise não é independente da crise ecológica que estamos já a viver e que em
breve atingirá um patamar irreversível. Aí, e porque para ela não haverá
vacina, teremos todos de pôr radicalmente em questão o tecno-capitalismo e os
seus modos de vida, se quisermos ter um (outro) destino na Terra.
Sem comentários:
Enviar um comentário